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Entrevistas

Sem equidade não há qualidade

Com o atual desenho das políticas educacionais, e com a normatização de sistemas distintos, a América Latina nunca terá educação pública de qualidade, diz o colombiano

Publicado em 12/01/2015

por Marta Avancini

Isabela Martini
Bernardo Toro: nosso sistema está construindo a fratura social

O problema da educação na América Latina não é a falta de dinheiro, nem a precariedade da formação ou da carreira dos professores. É um problema de “desenho”, ou seja, do tipo de educação que se forjou em nossas sociedades, modelada por conjunturas histórias e culturais. Portanto, se nossa educação fomenta a desigualdade, este é o resultado de escolhas que fizemos enquanto sociedade. Considerado um dos pensadores-chaves para compreender as relações entre educação e democracia, o filósofo e educador colombiano Bernardo Toro esteve em Campinas (SP), em outubro último, para participar da abertura da 5ª Semana de Educação e falou com Educação. Veja a entrevista a seguir.

Como o senhor está vendo a educação pública na América Latina na atualidade?
Eu creio que, com o atual desenho das políticas educacionais, a América Latina não vai chegar a ter uma educação pública de qualidade. Nem o Chile, nem a Colômbia, nem o Brasil. Porque aceitamos como normal a existência de dois sistemas educacionais. Quando se aceita que exista um sistema educacional com um nível de qualidade e outro, com outro nível de qualidade, nunca a sociedade terá um sistema educacional de alta qualidade. Se não é totalizante, a excelência é sempre excludente.

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Ou seja, continuamos construindo a desigualdade?
Quando dizemos que a educação está contribuindo para a desigualdade, isso é um juízo sobre o problema. Mas é preciso entender por quê. O problema é que continuamos a acreditar que é bom ter dois sistemas educacionais. Os nossos filhos são educados de uma maneira, e os filhos dos outros são educados de outra. Imagine que uma cidade como Campinas tenha um sistema de água potável de boa qualidade para um grupo e outro sistema que fornece água de pior qualidade para outro grupo. Campinas nunca teria água potável de qualidade. Podemos fazer o que quisermos para resolver esse problema: aumentar salários dos professores, formar professores, usar tecnologia, que não vai adiantar. Porque o desenho foi feito para separar. É um sistema que está construindo a fratura social.

A falha é na estrutura?
Insisto: o problema é o desenho. Tomemos um país como a Suécia. Onde você acha que estuda o filho do presidente da Volvo? Ele estuda numa escola pública do bairro. Onde estuda o filho do dono da peixaria do bairro onde mora o presidente da Volvo? Na mesma escola. Quando isso acontece, podemos falar que existe educação pública. Na América Latina, não existe isso. Temos educação estatal e educação privada, mas não temos educação pública. A educação é publica quando atende a todos, sem distinção. A água de Campinas é pública porque a água que chega à casa da pessoa mais rica e a água que chega à casa da pessoa mais pobre têm a mesma qualidade. A qualidade é includente. Quando há duas qualidades, há exclusão.

Hoje em dia existem as avaliações externas e em vários países busca-se aumentar os investimentos e implantar diversos tipos de programas e políticas voltadas para a melhoria da educação. O que, na sua visão, colabora mais para a melhoria da qualidade da educação?
Eu respondo com outra pergunta: o que aconteceria no Brasil se a partir de hoje, para ser presidente da República, vice-presidente, prefeito, fosse obrigatório que o candidato tivesse os filhos numa escola do Estado? Provavelmente haveria uma mudança radical. Se as elites não se comprometem colocando seus filhos numa escola estadual ou municipal, nunca existirá uma escola de qualidade.

O que se pode considerar como qualidade educacional?
O aspecto formal não é o essencial. Uma escola na Finlândia é muito parecida com uma escola no Chile. Do ponto de vista formal, elas são iguais. Qual é a diferença? Em política educacional é preciso buscar proposições que façam a diferença, que não repitam os problemas. Aumentar a cobertura, ampliar o volume de recursos, etc. são medidas que podem cair no vazio. O problema está em outro lugar: um país não tem mais educação do que aquela que é capaz de definir. É preciso perceber que tipo de educação um país é capaz de oferecer.

Na América Latina cometemos enganos, como levar os alunos para escolas afastadas dos locais onde moram em nome da segurança, para protegê-los. Quando tiramos a escola do bairro, as crianças permanecem, boa parte do dia, afastadas de onde moram, e as famílias do bairro para onde elas vão não têm vínculo com essas crianças. Uma sociedade tem as crianças que quer. Se a escola está no bairro, os pais, a comunidade estão protegendo as crianças. É outra relação entre escola e comunidade, os vínculos e a educação emocional se fortalecem.

É preciso perceber que os filhos da sociedade são filhos da sociedade. Não são filhos das famílias. E a pergunta é: qual é a educação que queremos para esses filhos? Nessa medida, a educação de qualidade é a educação que responde ao projeto dessa sociedade para seus filhos, suas crianças. Para que estamos formando nossos filhos? Para ganhar muito dinheiro? Para ocupar altos cargos nas empresas? Para o consumo? Estamos sendo bem-sucedidos nisso, nesse sistema excludente.

Temos a educação que definimos. E temos a qualidade que queremos porque assim a definimos. Pensar outro tipo de educação significa dizer que somos capazes de definir outro tipo de educação. A visão de educação tem a ver com o tipo de crianças que queremos formar.

Em que medida esse desenho desigual está relacionado com a atuação dos grandes grupos educacionais internacionais na América Latina?
Nenhum grupo econômico tem mais dinheiro do que um governo como o Brasil. E quem é mais poderoso: um grupo econômico ou a sociedade? Se amanhã as donas de casa resolverem que não vão mais comprar num determinado super­mercado, ele quebra, por maior que seja seu poder econômico. Porque é o cidadão comum quem legitima e valida todas as instituições públicas e privadas. Se a sociedade considerar que a educação de qualidade é a educação oferecida pelo Estado, os grupos econômicos não terão poder. O problema da América Latina não é insolúvel, temos tudo para oferecer uma educação de qualidade.

Gostaria que o senhor falasse um pouco sobre os sete códigos da modernidade. Por que, ao definir o que é necessário para a educação do século 21, o senhor dá tanta ênfase à informação?
As pessoas acreditam que a internet é a solução para tudo. Mas ,na América Latina, um dos problemas mais sérios que enfrentamos é o baixo nível de leitura e escrita das crianças. Na média, metade das crianças não aprende a ler. A leitura é uma habilidade fundamental para usar a internet, pois a capacidade de leitura define o tipo de uso que as pessoas fazem da internet. Elas vão buscar a informação de acordo com a sua capacidade de leitura e de categorização. Se nossas crianças continuarem a sair da escola com os baixíssimos níveis de escrita e leitura, como vem acontecendo, a internet não serve para nada.

Se não melhorarmos os níveis de leitura e escrita das crianças na América Latina, toda a riqueza e o potencial do conteúdo da internet será perdido. Somente aqueles que chegam a níveis 3 ou 4 de leitura, segundo as avaliações internacionais, têm capacidade de tomar decisões complexas. Este é um problema estratégico e, mais do que isso, é um problema político.

Por que a leitura e, sobretudo, a escrita são um problema na América Latina?
Porque no passado, na América Latina, escrever era um delito. Só a Coroa podia publicar. É uma cultura diferente da dos países protestantes, onde a leitura e a escrita são essenciais para o projeto de país. Por quê? É preciso lembrar que os protestantes fugiram para a América do Norte ou para o norte da Europa porque não podiam ler nem interpretar a Bíblia. Eles foram em nome da liberdade de consciência. O projeto protestante é um projeto de país. Isso repercutiu num modelo de educação de alto nível, numa ciência de alto nível. Eles não são mais inteligentes do que nós – porque saber ler e escrever é uma questão de destreza, não de inteligência. Repito: os códigos educacionais estão ligados à maneira como um país compreende a ele próprio.

Quais outras características são essenciais para serem aprendidas na escola do século 21?
Aprender a trabalhar em grupo é outra habilidade importante no século 21. A capacidade de uma pessoa inovar numa sociedade depende de sua capacidade de trabalhar em grupo. Isso se aprende, como se aprende um idioma. A escola é que ensina a trabalhar em grupo. E como se aprende a trabalhar em grupo? Trabalhando. É dessa maneira que uma criança aprende sobre solidariedade, participação, democracia, a importância da diversidade. E isso acontece num sistema educacional com enfoque no trabalho cooperativo. Muitos países asiáticos – China, Japão etc. – adotam modelos pedagógicos baseados no trabalho cooperativo. E nós seguimos enfocando o trabalho individual em aulas convencionais as crianças aprendem a copiar. Nossas crianças não aprendem a conversar, nem a pensar, nem a debater, nem a reconhecer o pensamento do outro. Mas isso não quer dizer que sejamos piores ou melhores. Simplesmente não optamos por isso. E continuamos a formar professores neste modelo.

O senhor vê saída para a situação da educação na América Latina?
Vários países mudaram sua educação. A Finlândia é um deles. Mas não adianta imitar – não podemos copiar nada de outros países –, temos de aprender com os outros, não imitá-los. Mas, para aprender, precisamos saber o que queremos. Se o Brasil não sabe o que quer como país, não é capaz de aprender com a experiência dos outros.

Autor

Marta Avancini


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