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Entrevistas

Fiscais da educação

Autoras de "A criança e o marketing" alertam para o impacto do consumismo na infância e dizem que os pais esperam coerência entre o discurso e as práticas escolares

Publicado em 03/07/2012

por Juliana Holanda

Luciene (esq.) e Ana Maria: as crianças estão vulneráveis aos apelos do marketing

Quando, há cinco anos, a psicóloga Ana Maria Dias da Silva reuniu pais de alunos em uma escola infantil para discutir o impacto do consumo exacerbado na infância, Luciene Ricciotti Vasconcelos, administradora com formação em marketing, percebeu que seu conhecimento profissional poderia ajudar os outros pais a lidar com o tema, até então pouco discutido nas escolas. Hoje, elas garantem, o assunto é motivo de preocupação na família, razão pela qual as escolas devem estar atentas: está nascendo um novo consumidor, que exige coerência entre o discurso e a prática escolar.

A parceria resultou no livro O criança e o marketing, recém-publicado pela editora Summus. Na obra, as autoras discorrem sobre as estratégias de venda dos produtos infantis e as possíveis maneiras de proteger as crianças desse assédio. Tarefa também da escola, defendem. Pais, professores, gestores escolares e as próprias crianças têm sido ouvintes atentos das palestras realizadas em escolas públicas e privadas. A mensagem é clara: é responsabilidade de todos educar na infância para formar adultos consumidores conscientes do que precisam, por quê compram e para quê. E, para isso, é preciso que pais e escolas mudem. Leia, a seguir, entrevista concedida pelas autoras por ocasião do lançamento do livro em São Paulo.

O livro que vocês acabam de lançar trata, de forma bastante didática, como os pais podem enfrentar o apelo do consumo entre as crianças. Em que medida o marketing infantil atinge a escola?
Ana
– Diretamente. No livro citamos o exemplo do “Dia do Brinquedo”, em que as crianças, para sentirem que são importantes, que pertencem ao grupo, querem levar o brinquedo da moda, que o grupo tem. Essa questão mexe diretamente com a sensação de pertencimento das crianças. Por isso defendemos que esse é um questionamento para os professores e para a própria escola fazerem: talvez seja a hora de trocar o “Dia do Brinquedo” pelo “Dia de Brincar”.

Quais são os impactos de ações escolares como o “Dia do Brinquedo”?
Ana
– O que acontece na prática é que as crianças levam brinquedos caros, que não podem quebrar e o professor tem de ficar tomando conta dele, quando na verdade o objetivo do brinquedo é poder brincar. O que questionamos é: há necessidade de levar esse tipo de brinquedo para a escola?

Que outras situações podem ilustrar o reflexo do consumismo no ambiente escolar?
Luciene
– Em tudo. No uso do celular, na questão do sapato, sandália, uso do uniforme. Eu tenho de usar o uniforme e por que ninguém usa? É uma questão ampla relacionada aos valores de se cumprir as regras da nossa sociedade. Se você pensa que na escola a criança está recebendo educação, é um conflito muito grande.

Algumas escolas permitem a divulgação de produtos para crianças dentro do ambiente escolar, sob uma abordagem pedagógica. Mesmo assim essa ação pode ser considerada  perniciosa?
Luciene
– A única forma de uma empresa sobreviver é oferecer um produto que atenda a necessidade das pessoas, e isso é bom. Nós temos necessidades de locomoção, de alimentação, saúde, e é bom que existam empresas que estão preocupadas em nos atender. Agora, uma vez que é permitido entrar na escola, podemos estar justamente comprometendo toda uma base de valores do que é certo e errado. Mesmo que isso esteja num contexto “pedagógico”. Que escola precisa que a empresa vá lá dentro dar educação ambiental para a criança? Não é necessário.

No livro vocês mencionam pesquisas que mostram maior impacto do apelo de consumo em pais menos instruídos. No caso da escola pública, como isso se reproduz?
Luciene
– As secretarias de Educação estão preocupadas com isso, têm nos chamado para falar com os professores. É um assunto de extrema importância porque está diretamente relacionado com o futuro das pessoas. É a força do consumidor que regula a economia, e quanto mais uma sociedade se desenvolve e cria essa consciência de que nós, enquanto consumidores, determinamos o que nos vai ser oferecido, saímos de uma posição passiva, de olhar e aceitar o que nos é oferecido, para uma participação ativa na sociedade.

O professor está consciente desse apelo do marketing e suas consequências? Qual a importância dele nesse processo?
Ana
– O professor, assim como os pais, é um modelo. As crianças estão olhando o tempo todo para ele. Não pode haver uma distinção tão grande entre a figura pública e a privada. Como professora, ou como qualquer outro profissional dentro da escola, não posso levar cadernos com propaganda, biscoitos com personagens, etc. É preciso ter coerência. O professor tem de se questionar: que modelo eu sou para o meu aluno? Eu tenho segurança e certeza em relação aos meus próprios valores? Quais são os valores centrais que eu tenho enquanto profissional, mas principalmente enquanto pessoa? Em sua maioria, eu acho que os professores não estão preparados para isso. Mas é necessário que eles percebam que precisam buscar esse preparo.

E as escolas, estão preparadas para lidar com a influência do consumo dentro do espaço escolar?
Luciene
– Eu percebo que muitas vezes a escola pensa: “isso não é assunto da escola, não tenho nada a ver com isso”. Ou parece que, se mexer nessas questões, a escola vai entrar no hábito da família. Então, eu vejo certa permissividade, acomodação, como se a escola não pudesse intervir. Mesmo no caso de escolas que orientam as crianças a não levarem brinquedos caros, a criança leva, criando mais um problema do que um benefício para ela.

No livro vocês enfatizam o conceito de consumidor consciente. Mas, ao tratar a criança como consumidor, isso não implicam em uma reprodução desse discurso do mercado?
Luciene
– Não é o caso de tentar criar uma criança como consumidora consciente, mas de educar na infância para criar adultos consumidores com mais consciência do que precisam, por que compram e para quê.

Como o marketing atua para atingir o público  infantil?
Luciene
– O marketing praticado para produtos infantis hoje é o mesmo que era praticado na pós-revolução industrial, ou seja, produção e comunicação de massa. Depois disso, o marketing já evoluiu para o que chamamos de marketing de relacionamento com os clientes, em que a empresa quer saber quem eu sou como consumidor, o que desejo. Mas, no caso das crianças, não existe nem uma proposta de relacionamento com a família. Como mãe, nunca nenhuma empresa entrou em contato comigo para saber se eu havia gostado do produto que comprei para a minha filha. Porque logo aquele brinquedo saiu do mercado e eles já desenvolveram outro. E usam a comunicação de massa para que as crianças já peçam outro.

Vocês descrevem que 80% das compras de uma casa são determinadas pelas crianças. Ao mesmo tempo, vê-se o aumento dos quadros de depressão infantil. Em que medida esse lugar privilegiado das crianças na sociedade atual está relacionado a esse mal-estar?
Ana
– Estudos estão sendo realizados para comprovar essa associação. Mas nos perguntamos: não parece que as crianças antigamente eram mais felizes? O mundo está com muitos quereres que estão sendo satisfeitos. Acho que a criança está angustiada e não feliz. Então ela quer mais para cobrir esse vazio. Ou seja, é um saco sem fundo.

Luciene – Muitos pais pensam “eu vou dar para o meu filho o que eu não tive”. Mas, então, vamos dar educação e base para ela ser um adulto feliz, capaz, consciente, equilibrado. A projeção de necessidades emocionais no consumo leva à depressão porque você não atende a sua necessidade. É um constante vazio que nunca vai ser preenchido por um produto. No caso da criança, ela pode ser preenchido até por limites. Às vezes, a criança ganha o presente e brinca com a caixa. Depende de nós conhecermos essa criança. A criança não abstrai. Então, na hora em que ela está na frente da TV vendo uma propaganda, e ela fala “eu quero”, cabe ao adulto esperar. Ela pode não ter nem reparado no produto que está ali. Ela quer o cenário. Ela quer a mágica.

Dentro da teoria do marketing, evoluímos da prática 1.0, de produção e consumo em massa, para a 3.0, em que o consumo passa a estar relacionado a valores. Vocês acreditam que o consumidor 3.0 vai atropelar o 1.0?
Ana
– Esperamos que sim. E isso só nos dá força enquanto consumidores. Acreditamos mesmo nessa possiblidade de mudança. Quem está mais vulnerável neste momento é a criança. Então, cabe a nós, pais, escola, sociedade, protegê-la.

Luciene – No fundo é um grande divisor de águas. Como consumidores adultos, estamos mais atuantes. Mas não percebemos que temos de atuar pela criança. Porque, enquanto isso, a indústria infantil está acomodada num processo. Enquanto pais temos de dizer: não quero que você fale com o meu filho desse jeito. Não quero que você queira vender para o meu filho produto de limpeza que eu compro para a minha casa. Ele não tem critérios, não tem conhecimento para escolher o produto que vai ser usado para desinfetar a casa. Temos de nos posicionar: se você falar com o meu filho, eu não vou comprar de você.

A escola deve se preparar para esse novo pai?
Ana
– O consumidor está mudando, ele está denunciando rapidamente na internet, então as empresas estão precisando ter coerência entre discurso e prática, senão são imediatamente denunciadas. Não vai ser diferente em relação à escola. A escola tem de se perguntar se está com os valores bem definidos. Porque é bonito botar no papel missão, valores, mas eles são reais?

Autor

Juliana Holanda


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