NOTÍCIA
STF na Escola e novo programa do MEC reforçam a necessidade de inserir a temática na escola de modo interdisciplinar e transversal
“Alguém aqui já leu o Estatuto da Criança e do Adolescente [ECA]?” Como, em geral, poucos alunos levantam a mão, a juíza-ouvidora do Superior Tribunal Federal (STF), Flávia Martins de Carvalho, escolhe algum detalhe que chame a sua atenção para pregar uma peça nos alunos. “Sabiam que o ECA proíbe o uso de copos pretos em sala de aula?” A reação mais comum é que os estudantes com o objeto citado fiquem consternados ou tentem escondê-lo, considerando a autoridade da juíza. É então que Flávia revela que acabara de inventar aquele artigo do Estatuto apenas para demonstrar o quão importante é conhecermos os nossos direitos. Mas, naquele dia, foi diferente. O aluno que bebia água no copo preto, ainda sem saber que era uma brincadeira, não se intimidou e ainda questionou as motivações da afirmação da juíza: “olha, isso é racismo!”, bradou o garoto.
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Educação cidadã precisa de prática e sentido
O papel da escola no educar para a democracia e cidadania
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“Busco trazer exemplos de coisas que estão próximas a eles, para envolvê-los. Nesse dia, me surpreendi. Além de não cair na piada, ele ainda exigiu seus direitos como menino negro. Esse despertar já está acontecendo, o que me deixa muito feliz”, comenta a coordenadora do STF na Escola, ação de educação cidadã do Tribunal, que visa explicar, de forma didática e simples, aos estudantes de ensino fundamental e médio o papel da Suprema Corte, da Constituição Federal e da democracia. Voltado às redes pública e privada, o programa já passou por 38 escolas em 15 estados e no Distrito Federal, chegando a mais de 3 mil estudantes.
As atividades do programa estimulam a reflexão de valores que os jovens, na maioria das vezes, já têm. Assim, eles reconhecem que a Constituição e a democracia não são ideias distantes, e sim parte do dia a dia. “Quando simulo uma eleição de representante de turma e pergunto se o candidato que perdeu pode sair quebrando a escola, os alunos logo dizem que não. Entendem que o certo é melhorar as propostas e tentar de novo no pleito seguinte”, explica Flávia, que é doutora em direito pela USP.

Visitar o STF vai além da teoria, avalia a diretora administrativo-pedagógica Denise De Felice, da ONE School (Foto: arquivo pessoal)
Embora tenha resistido a sucessivas crises desde a redemocratização, dados mostram que o sistema democrático brasileiro permanece vulnerável, especialmente no que diz respeito ao engajamento cidadão. Segundo a última edição da pesquisa global World Values Survey (WVS), feita entre 2017 e 2020, apenas 40% dos brasileiros disseram ter muito ou bastante interesse por política, número bem inferior ao de democracias consolidadas, como a Alemanha, onde esse índice se aproxima dos 80%. Outro ponto crítico é que 40% da população afirma não fazer diferença viver sob um regime democrático ou outro, de acordo com o mesmo estudo. Essa indiferença não necessariamente reflete posições antidemocráticas, mas revela uma desconexão preocupante com os valores e práticas da vida pública.
Além da apatia, ainda segundo a WVS, a desconfiança nas instituições também é sintomática: apenas 16,17% dos brasileiros confiam no Congresso Nacional e somente 13,76% confiam nos partidos políticos. Entre os jovens, esse afastamento também é acentuado.
Uma pesquisa do instituto Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica (Ipec), em parceria com a Fundação Tide Setúbal e a Avaaz, apontou que um em cada cinco jovens brasileiros de 16 a 34 anos não compreende o conceito de democracia; outros 92% afirmam confiar pouco ou nada em partidos políticos; e 57% dizem evitar debates sobre política nas redes sociais por medo de serem cancelados. Esses números expõem um déficit formativo em temas estruturantes de sociedades democráticas.

Atividade sobre democracia na Escola Estadual Ulisses Guimarães, em Porto Velho (RO) (Foto: Gustavo Moreno/STF)
Nesse contexto, cresce o reconhecimento da necessidade de integrar a educação para a cidadania como uma política pública de Estado. O documento Caminhos para a universalização da educação cidadã: a formação para a cidadania como uma política pública nacional, da Rede Nacional de Educação Cidadã, defende a necessidade de que “os jovens brasileiros em idade escolar tenham acesso a uma educação cidadã de qualidade, entendida como o tipo de educação que estimula um desenvolvimento integral de competências, virtudes e hábitos de uma cultura democrática”.
Iniciativas como o STF na Escola e o recém-lançado Programa Educação para a Cidadania e para a Sustentabilidade surgem como resposta política e pedagógica. Instituído pelo Ministério da Educação por meio da Portaria nº 642/2025, em setembro, o Programa visa fortalecer, em todas as etapas da educação básica, a formação cidadã prevista na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). São propostas práticas pedagógicas interdisciplinares, conectadas à realidade dos estudantes e com ênfase na valorização da democracia, do voto universal, dos direitos humanos e da sustentabilidade. A adesão dos entes federativos é voluntária, mas a expectativa é que o Programa se torne um catalisador nacional da cultura democrática nas escolas.

“Provocamos aquilo que eles [estudantes] já sabem, para que percebam como o que vivem no dia a dia se conecta com a Constituição”, diz a juíza-ouvidora do STF Flávia Martins (Foto: Gustavo Moreno/STF)
Na Escola Estadual Ulisses Guimarães, em Porto Velho (RO), a curiosidade dos alunos do ensino fundamental 2 diante do projeto STF na Escola chamou a atenção da professora Vanda Machado, que acompanhou a atividade. “Sempre convidamos órgãos para vir falar na escola. Os estudantes têm muito interesse em participar”, afirmou a docente de língua portuguesa, que atua há 28 anos na rede estadual.
Ao conhecerem de perto o funcionamento das instituições e a trajetória profissional da juíza Flávia, “os alunos perceberam que esses espaços não são inalcançáveis e que eles são capazes de chegar à magistratura ou onde quiserem por meio do estudo”, segundo a professora. Para ela, ações como essa conectam a teoria da cidadania à prática, traduzindo a democracia em algo real e cotidiano e são especialmente importantes para jovens de periferia, que, muitas vezes, não se veem como parte ativa do processo democrático.
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A quem ainda interessa a democracia?
Dos fios da escola às tramas da democracia
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Já na particular ONE School, em Brasília (DF), o STF na Escola se deu por meio da visita dos alunos do ensino fundamental 1 ao Tribunal e representou a chance de transformar o conteúdo da BNCC já trabalhado em sala de aula em algo real. “Para crianças dessa idade [3º ano], visitar o STF e caminhar por seus corredores é uma experiência única. Vai além da teoria: ajuda a entender a importância das instituições, desperta curiosidade, senso de pertencimento e respeito e torna conceitos como cidadania e democracia mais concretos”, avalia a diretora administrativo-pedagógica Denise De Felice.
Para a juíza Flávia Martins de Carvalho, o desafio de formar cidadãos conscientes começa por reconhecer que valores como justiça, ética e democracia já estão presentes no cotidiano dos jovens e precisam apenas ser cultivados com cuidado e diálogo. “Não vamos até às escolas para ensinar o que é certo ou errado. Provocamos aquilo que eles já sabem, para que percebam como o que vivem no dia a dia se conecta com a Constituição”, explica. Mais do que transmitir conteúdo, ela acredita que o essencial é criar espaços de escuta, onde crianças e adolescentes se sintam capazes de compreender e transformar o mundo ao seu redor.
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