NOTÍCIA
Em entrevista exclusiva, educadora argentina referência em alfabetização analisa parte das neurociências como pseudomodernidade; os processos da aprendizagem entre diferentes alunos também são abordados
Com a presença da psicóloga e epistemóloga argentina Ana María Kaufman, será lançado nesta quinta-feira, 24 de julho, o livro Leitura e escrita – 31 perguntas e respostas, (ed. Diálogos Embalados), parceria de Kaufman com a educadora Adriana Gallo, também argentina. O evento acontece no Auditório da Vila das Juventudes, rua Raul Saddi, 15, no Butantã, São Paulo (SP).
A obra busca sintetizar as principais dúvidas dos professores e professoras que trabalham com alfabetização, tendo como ponto de partida as noções de que esse processo resulta da confluência das duas práticas e da compreensão que as crianças vão adquirindo, com ritmos diferentes, dos textos que lhes são apresentados e que constroem.
Parceira, ao longo dos anos, de Emilia Ferreiro, autora de Psicogênese da língua escrita (com Ana Teberosky), Kaufman tem sido presença frequente no Centro de Formação da Vila, entidade que comemora 45 anos de vida. Ela fará uma exposição de apresentação e autografará a obra.
Um dia antes de vir a São Paulo, a autora conversou com o repórter da revista Educação. Confira, a seguir.
Psicóloga e epistemóloga argentina Ana María Kaufman (Foto: divulgação)
Gostaria de começar enfatizando que Adriana Gallo é coautora deste livro e para mim é muito importante a sua difusão também no Brasil. Ela faleceu há dois anos, ainda muito jovem, aos 55 anos, e eu a admiro muito. Por esse motivo, gostaria que esse livro, ao qual ela se dedicou muito, esteja presente no país.
As perguntas que você fez [previamente encaminhadas a Ana María] e de que o livro trata têm muito que ver com um tema que se relaciona com todas elas — a saber, que eu sou também membro da Rede Latino-americana de Alfabetização e algumas premissas da rede estão muito relacionadas ao que você me pergunta.
Uma das premissas é que todos os grupos [de aprendizes] são heterogêneos, e que todos os alunos têm de avançar em suas aprendizagens. Em geral, isso não é muito lembrado ou reconhecido. Costuma-se falar das crianças de primeiro ano, de segundo ano, de terceiro ano. Todos são de primeiro, de segundo, de terceiro ano. E são todos diferentes e se aproximam de diferentes formas da leitura e da escrita. Isso também tem a ver com a origem social de cada um e de como são as práticas de leitura em suas casas.
Outra premissa que temos na rede é que se aprende a ler lendo, e se aprende a escrever, escrevendo. Essas duas questões estão interligadas. As crianças são pessoas pensantes e buscam entender o mundo que as rodeia. Para isso, formulam hipóteses, tentam comprová-las.
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O epistemólogo e pedagogo Jean Piaget defendia que o crescimento intelectual não se dá da mesma forma como alguém constrói uma parede, colocando primeiro uma fileira de tijolos, depois outra, e mais outra e quando termina a última fileira a parede está pronta. O crescimento intelectual, em termos de aquisição de conhecimentos, tem outra dinâmica. A criança busca dar significado ao mundo que a rodeia, e às vezes vai ressignificando esses sentidos de diferentes maneiras a partir dos sistemas que vai construindo para entender o mundo.
Então, se aprendem a ler lendo, se aprendem a escrever escrevendo, e essa heterogeneidade das crianças é vista a partir da nossa perspectiva em salas de aula, como tendo quatro situações didáticas fundamentais através das quais as crianças podem ler ainda que não tenham nenhum conhecimento. São elas: a criança lê por intermédio do professor, a criança escreve por intermédio do professor, a criança lê por si própria e escreve por si própria.
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Quando dizemos que as crianças leem por meio dos professores, eles [os professores] sabem, todo mundo sabe, que se deve ler muito com as crianças, contos, diferentes tipos de texto. Mas não se deve pensar numa relação estática, em que os professores leem e as crianças apenas escutam.
Quando dizemos ler por intermédio ou através do professor, dizemos que a criança, na medida em que ouve, vai aplicando estratégias leitoras para entender o texto.
O que quer dizer que ela é uma leitora, mesmo que ainda não reconheça as letras, pois pode reconstruir um texto narrativo, saber o que acontece antes ou depois nesse texto, o que é importante, e é capaz também de inferir o que não está escrito.
Com essas quatro situações didáticas fundamentais conseguimos ter acesso a todas as crianças, porém com diferentes maneiras de intervir quando se trata de ela ler ou escrever por si própria. O que queremos dizer é que as crianças vão lendo e escrevendo de diferentes maneiras até que cheguem a ler e escrever como nós.
E a tarefa do professor é saber em que nível de conhecimento está essa criança para que sua intervenção a ajude a avançar. Para isso é preciso ter clareza, conhecer o processo.
Livro escrito por Ana María Kaufman e Adriana A. Gallo (Foto: divulgação)
A angústia fundamental dos professores é que as crianças não aprendem tão rápido quanto eles gostariam. Essa velocidade depende das experiências prévias que as crianças trazem. Se uma criança vem de uma casa em que se lê e escreve constantemente, esse professor não irá se angustiar, porque essa criança vai aprender rápido, independentemente do método que ele utilize.
O problema é com as crianças cuja aproximação com a leitura e a escrita ainda é muito rudimentar e os professores muitas vezes não sabem como trabalhar com elas. Porque aquilo que permite que as outras aprendam não funciona para essas. Então a angústia maior são as crianças que aprendem mais lentamente; as diferenças que essas crianças mostram.
Hoje, antes dessa nossa entrevista, estava vendo um material e me deparei com uma frase de uma pedagoga canadense, discípula de Piaget, que escreveu um artigo que dizia: ou é cedo demais para que possam me entender, ou é tarde demais e já sabem. Então, a partir dessa perspectiva, trabalhamos com as quatro situações didáticas fundamentais que mencionei anteriormente.
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Algumas delas são boas para todos; outras vezes trabalhamos com pequenos reagrupamentos na classe e com intervenções específicas que ajudam aqueles que mais necessitam, sem deixar de fazer avançar aqueles que já estão mais avançados, porque não há razão para que, em função de quem demora mais, não se permita aos que sabem mais avançar.
Por isso dizíamos que todos devem avançar, e isso se faz por meio de determinados momentos em que esses reagrupamentos permitem que as crianças façam intercâmbios em relação ao que estão pensando. São momentos que demandam a intervenção dos professores e são muito ricos.
É fatal. Não é só a exposição às imagens, temos também as redes sociais com formas de escrever que não tem nada que ver com a linguagem escrita, são breves e concisas, prescindem da gramática, são praticamente outro idioma.
O que está acontecendo não é que a maioria das crianças lê pouco, mas que todos (adolescentes, adultos) leem pouco, pois estão todos muito entretidos com esse dispositivo que, por sorte, está ajudando a que nos comuniquemos, mas que muitas vezes leva as pessoas a estarem sozinhas ou falando sabe-se lá com quem, fazendo-se sabe-se lá o quê.
Eu acredito que o entorno não ajuda de maneira alguma, e que as comunicações são cada vez menos verbais, há menos relação com a leitura e com a escrita, a menos que se dê à leitura uma significação mais ampla, tão ampla, tão ampla que poderíamos dizer algo como: ‘ah, agora estou lendo a tua expressão, mesmo que você não me conte o que está pensando’.
Não falo de leitura nesse sentido. Na escola, trabalha-se para construir a significação de um texto, compreendê-lo para construir seu significado. Nesse sentido, o que há é uma presença cada vez menor de textos, e a presença maior de imagens que ocupam o tempo e não ajudam a que se leia, o que não contribui para a cultura letrada.
Acredito, sim, que isso pode afetar o pensamento, mas não é algo que eu tenha pesquisado. Posso falar do que investiguei, isso eu apenas creio que seja assim, por lógica, pelo senso comum, creio que sim, que deve incidir no pensamento. Me lembro de um programa que passou aqui na TV tempos atrás, com a apresentação de videoclipes, imagem e som, nada mais. E um jornalista, ao comentar [não muito animado, deduz-se], disse que seguia lidando com aquilo que tem sujeito e predicado, aquilo que efetivamente constitui a linguagem.
Nos anos 70, Emilia Ferreiro começou, nos primeiros trabalhos que então fizemos, numa favela, a ter contato com muitas crianças que repetiam de ano. Muitas delas, depois de repetir mais de uma vez, deixavam a escola. Quando fomos perguntar aos pais o porquê, nos diziam que o que acontecia é que não conseguiam aprender. Diziam que o mesmo havia acontecido com eles, também não tinham conseguido.
O que ficou muito claro é que, nesse caso, a responsabilidade era da escola, porque os professores estavam ensinando de uma maneira tão distante daquelas crianças, que elas não podiam aprender. Com as investigações da psicogênese da escrita, foram ficando claros os diferentes níveis pelos quais as crianças vão passando em seu processo de aprendizagem. E, com o tempo, com um grande grupo de estudiosos do Brasil, da Argentina, começaram a haver muitas investigações didáticas, que tinham a psicogênese como base e que nos permitiram melhorar muito, aprender muitas coisas, entre outras, como aproximar o ensino aos aprendizes.
Se eu sei o que a criança está pensando, e sei como lhe dar a informação, ou incomodá-la, perturbá-la com isso, para que ele possa passar para um nível mais alto, aí estou aproximando o ensino das aprendizagens.
Habitualmente, acontece o contrário: o professor se coloca numa posição de ensinar as letras e os sons correspondentes, porque isso é o que acredita ser fundamental. Quando isso acontece, alguns aprendem muito rápido; outros de modo bem mais lento. E outros nunca vão entender. E repetem de ano, fracassam. Esses, normalmente, são os pobres.
Dos mais ricos, haverá um ou dois que não aprenderão. Mas, entre aqueles que vem de uma realidade em que ninguém nunca lê nada, onde não há livros e em que não existe a ideia de cultura letrada, essa é sua sentença de morte.
Porque o professor não pode achar que o caminho para o aluno do primeiro ano é um só, pois não há um aluno-padrão, e sim vários alunos diferentes.
E aí é preciso saber o que fazer com os meninos e meninas. As pesquisas de Emilia Ferreiro nos ajudaram a ter outras estratégias didáticas que nos permitem, de algum modo, mexer com eles para que possam avançar. Há uma escritora argentina, Graciela Montes, que tem um livro chamado La frontera indômita – en torno a la construcción y defensa del espacio poético (em tradução livre, A fronteira indômita – acerca da construção e defesa do espaço poético), em que, em dado momento, ela aborda o tema da alfabetização e fala que o desconforto é um grande ponto de partida, pois nos obriga a mudar de posição. E há intervenções que provocam desconforto nas crianças, porém, é um desconforto motivado pelo fato de sabermos que o que a criança está pensando pode conter perturbações, e então as provocamos [aqui, fica subjacente a ideia de que esse desconforto motiva e provoca o salto que propicia a aprendizagem, ou um novo sentido para o que estiver em questão].
Há muitas investigações psicogenéticas, psicolinguísticas e sociolinguísticas em que baseamos nossas práticas didáticas e as temos feito faz muito anos. E, efetivamente, conforme avançamos, temos mais insumos. No Brasil, vou participar de um trabalho sobre avaliação e como avaliar, o que há de avanços nesse processo.
Mas há modas muito fortes relacionadas às neurociências, a ponto de parecer que as neurociências conhecem tudo. Entendo que saibam muito sobre o cérebro e que descobriram coisas interessantíssimas acerca de como o cérebro de uma pessoa alfabetizada começa a fazer certas questões que aquelas que não estão alfabetizadas não fazem. Porém, daí a dizer que sabem tudo e que estejam convencidos de que o que sabem por intermédio da neurociência é tudo, isso é falso.
Um livro de uma neurocientista entre as mais reconhecidas, ‘O cérebro leitor’ [de Maryanne Wolf], me provoca certa inquietude a partir do título, pois não é o cérebro que é leitor, é a pessoa, que utiliza o cérebro para ler. E o que acontece é que mesclaram questões das neurociências com questões de alfabetização que são muito antigas, e consideram que agora o processo de ensinar a ler e escrever tornou-se muito simples.
As neurociências se tornaram o guarda-chuva para todos aqueles que estão debaixo do que se denomina consciência fonológica, que acreditam que basta ensinar as letras e os sons e pronto. Isso é muito mais complexo. As crianças podem até aprender a fonetizar, mas isso não está conectado à possibilidade de que desenvolvam estratégias leitoras, para o que temos de encontrar um significado. Então, temos diferenças muito grandes com essa pseudomodernidade.
Ana María Kaufman é Professora de Psicologia e Epistemologia da Universidade de Buenos Aires e pesquisadora do Programa Escuelas para el Futuro, da Universidade de San Andrés, na Argentina. Também assessora a área de Línguas do Colégio Alas de Palomar.
Na década de 70, participou de pesquisas sobre a alfabetização ao lado de Emilia Ferreiro, Ana Teberosky, Alicia Lenzi, Suzana Fernandez e Lílian Tolchinsky.
Entre outros títulos, é autora de Escola, leitura e produção de textos (ed. Penso), Alfabetização de crianças: construção e intercâmbio (ed. Penso) e A escrita e a escola (ed. Artes Médicas).
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