NOTÍCIA

Olhar pedagógico

Autor

juliana

Publicado em 11/07/2025

Educação no século 21: entre a revolução científica e o risco de estagnação cognitiva

Quando a IA pensa pelo estudante, ele corre o risco de deixar de aprender com ela

Por Gisele Alves* | Vivemos uma das maiores revoluções científicas da história da humanidade. A inteligência artificial (IA) transformou profundamente a maneira como nos comunicamos, trabalhamos, consumimos informação e nos relacionamos. Essa revolução, no entanto, parece encontrar resistência em um dos espaços mais fundamentais para o futuro de qualquer sociedade: a escola. 

Embora a retórica sobre inovação educacional seja frequente, muitas vezes ela se reduz à ideia de introdução de tecnologias superficiais, como tablets, lousas digitais, ou plataformas digitais, sem rever, de fato, os fundamentos pedagógicos, as formas de ensinar e aprender, ou o papel do estudante como agente ativo na construção do conhecimento. 

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As tecnologias podem, e devem, ocupar um lugar mais central na educação, não apenas fornecendo novos instrumentos e motivações, mas se aliando a ciências que ofereçam evidências sobre como aprendemos, o que promove o pensamento de longo prazo e como desenvolver habilidades essenciais para o século 21.

A questão central não é se devemos usar tecnologias, incluindo a IA, na educação, mas como usá-las de forma ética, eficaz e consciente, reconhecendo tanto seu potencial transformador quanto os riscos que podem comprometer o desenvolvimento pleno e a autonomia dos estudantes. 

Estagnação cognitiva em alerta

Recentemente, um estudo amplamente divulgado na mídia lançou um alerta importante sobre os efeitos imediatos do uso da IA generativa no processamento cognitivo. Divididos em três grupos, 54 participantes escreveram redações sob diferentes condições: com apoio exclusivo do ChatGPT, com uso apenas de ferramentas de busca, ou sem nenhum auxílio externo. 

Os exames de eletroencefalografia revelaram que aqueles que usaram apenas a IA apresentaram conectividade cerebral mais fraca (ou seja, menos atividade neural distribuída) em comparação aos que confiaram apenas em suas próprias capacidades. 

Mesmo após a troca de grupos, aqueles que passaram da IA para o esforço mental autônomo mantiveram padrões reduzidos de ativação cerebral, sugerindo um impacto persistente (Kosmyna et al, 2024). 

Usar ferramentas de IA com intencionalidade

Afinal, quem diria que ao usar menos o nosso cérebro, ele começaria, de fato, a funcionar menos? [contém ironia] 

O estudo também mostrou que o senso de autoria foi significativamente menor entre os que usaram IA, reforçando a ideia de que o vínculo entre pensamento e produção se enfraquece quando o esforço é terceirizado.  

Apesar desses dados serem oriundos de um estudo relativamente pequeno e com desenho que não nos permite fazer tantas generalizações com segurança, eles podem sinalizar um ponto de atenção: o uso acrítico da IA pode enfraquecer processos fundamentais para o aprendizado, como a memória de trabalho, a recuperação ativa de informações, a autorregulação e a construção de sentido. 

Não se trata de demonizar a IA, mas de entender que o desenvolvimento de habilidades não pode ser terceirizado. A IA pode apoiar o aprendizado desde que o estudante continue a pensar

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Esse alerta encontra eco em dados de pesquisas internacionais que incluem participantes do Brasil. A OCDE, ao divulgar os resultados da avaliação de pensamento criativo do Pisa 2022, apontou que muitos estudantes, mesmo em sistemas educacionais avançados, têm dificuldade em gerar ideias originais, adaptar soluções a novos contextos ou argumentar de forma consistente (OECD, 2024). 

O pensamento criativo, assim como o pensamento crítico, é cada vez mais reconhecido como uma competência essencial em tempos de sobrecarga de informações, desinformação e automação acelerada. 

Nesse cenário, promover o desenvolvimento de pensamento crítico torna-se uma estratégia não apenas desejável, mas urgente (Primi et al, 2024). A habilidade de questionar fontes, avaliar evidências, argumentar com coerência e revisar opiniões diante de novos dados torna-se uma defesa contra os riscos de passividade mental diante de respostas prontas geradas por algoritmos. 

Escola, iniciativas já conhecidas — mas fundamentais

Em vez de suprimir o esforço mental, a IA pode ser usada para provocá-lo: propondo hipóteses a serem testadas, apresentando múltiplas perspectivas sobre um tema, ou servindo de interlocutora para a argumentação dialógica em sala de aula. 

O uso educacional da IA deve, portanto, se alinhar a princípios de desenvolvimento humano, autonomia intelectual e engajamento ativo. É possível e desejável que estudantes usem IA para ampliar seu repertório, revisar conceitos, experimentar ideias. Contudo, isso deve ser feito em contextos mediados pedagogicamente, que priorizem o raciocínio próprio, a metacognição e o senso de autoria. 

A revolução científica que molda o mundo precisa chegar à escola, mas não como uma substituta da cognição e desenvolvimento de habilidades diversas e, sim, como uma ferramenta de expansão das capacidades humanas. 

Precisamos preparar os estudantes não apenas para consumir respostas, mas para interpretá-las de forma adequada e para formular boas perguntas. Não se trata de adaptar a escola à tecnologia, mas de orientar a tecnologia para que ela sirva à missão educativa com vistas ao desenvolvimento pleno do estudante: formar sujeitos críticos, criativos e éticos, capazes de agir com discernimento em um mundo cada vez mais complexo. 

Caso contrário, corremos o risco de comprometer nosso potencial de desenvolvimento, desencadeando uma série de outras consequências negativas.  

estagnação cognitiva

A IA pode apoiar o aprendizado desde que o estudante continue a pensar (Foto: Shutterstock)

Para saber mais:   

Primi, R., Nakano, T. C., McGrew, K., Schneider, J., & Instituto Ayrton Senna. (2024). Educação no século XXI: Inteligência, pensamento crítico e criatividade (1ª ed.). Hogrefe; Instituto Ayrton Senna.https://institutoayrtonsenna.org.br/app/uploads/2024/07/Miolo.pdf  

Kosmyna, N., Hauptmann, E., Yuan, Y. T., Situ, J., Liao, X.-H., Beresnitzky, A. V., Braunstein, I., & Maes, P. (2024). Your brain on ChatGPT: Accumulation of cognitive debt when using an AI assistant for essay writing task [Preprint]. arXiv. https://arxiv.org/abs/2506.08872  

Organisation for Economic Cooperation and Development. (2024). PISA 2022 Results (Volume III): Creative Minds, Creative Schools (PISA Results Volume III). OECD Publishing. https://doi.org/10.1787/765ee8c2-en  

*Gisele Alves é gerente executiva do eduLab21, laboratório de ciências para educação do Instituto Ayrton Senna. Chairholder da Cátedra Unesco de Educação e Desenvolvimento Humano na mesma Instituição. Psicóloga, mestre em Psicologia com ênfase em Avaliação Psicológica pelo Programa de Pós-Graduação Stricto-Sensu em Psicologia da Universidade São Francisco. Consultora em avaliação psicológica, construção de instrumentos, adaptações transculturais e treinamento na área de avaliação psicológica. 

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