NOTÍCIA
O universo dos games pode ser também ferramenta pedagógica. Jogos criados no Brasil pelo estúdio Salve Games se voltam à inclusão e impacto social
Uma plataforma gamificada serviu de ferramenta pedagógica para jovens da periferia de São Paulo aprenderem educação financeira tendo como gancho a produção cultural. Com idade entre 15 e 17 anos, os alunos frequentadores do Centro da Juventude do Instituto Anchieta Grajaú, que fica na região de Capela do Socorro, zona sul de São Paulo, participaram de encontros no contraturno escolar com foco em seu desenvolvimento pessoal e profissional. As atividades fizeram parte da última edição do EconoArte, projeto da Muda Cultural. Em Belo Horizonte, as oficinas aconteceram na Escola Estadual Walt Disney, no bairro Casa Branca.
Ao longo do curso, três turmas tiveram acesso a conteúdos elaborados por pessoas que são da área de produção cultural e atuam no mercado, com orientações sobre orçamentos, escrita e levantamento de conceito, curadoria de arte, design, divulgação em mídias sociais etc. Quem ministrou essas aulas foram Marina e Edson Passos, que estão à frente da emPassos Consultoria. “O projeto parte de um arco de aprendizagem que culmina na condensação de todo o conteúdo em um jogo baseado no Fortnite [plataforma de jogos eletrônicos que em menos de um ano alcançou mais de 125 milhões de jogadores], onde, de forma lúdica e com significado, os participantes puderam aplicar o que aprenderam”, descrevem os consultores.
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Esse jogo se chama RealFest e foi desenvolvido pelo estúdio paulistano que desenvolve jogos eletrônicos, a Salve Games, que, há apenas dois anos na indústria, vem marcando presença em iniciativas na área da educação — pouco aderida nesse setor. Alexandre de Maio, proprietário e desenvolvedor na Salve e sócio do site Catraca Livre, conta que foi justamente o potencial educativo e a presença dos games na vida das pessoas que o motivaram a pensar em uma produção com identidade brasileira.
Oficina de educação financeira tendo o game como ferramenta pedagógica. Atividades aconteceram durante o EconoArte, projeto da Muda Cultural (Foto: emPassos Consultoria)
O RealFest é gratuito, com classificação indicativa de 10 anos, e já está disponível para qualquer usuário do Fortnite. Marisa e Edson Passos explicam que o game foi utilizado no contexto de projeto final das oficinas com o objetivo de unir teoria e prática: “O jogo traz toda a estrutura dos conteúdos que foram trabalhados durante o curso, sendo não apenas uma forma lúdica de aplicar o que aprenderam, mas também de avaliar o que viram em todo o percurso. Eles só conseguiam ultrapassar as fases/etapas a partir da aplicação do conhecimento que adquiriram nas aulas, isso aliado à mecânica do jogo, que é extremamente interativa. [Acredito] que traz um resultado a ser estudado, porque, de fato, eles tiveram que criar um festival cultural, fazer a divulgação do evento, levantar custos, parceiros, fornecedores, tudo isso dentro do Fortnite, com os personagens”, contam os Passos.
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Ainda sobre sonhos e possibilidades
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Dentro da estrutura do curso, de 18 encontros, tudo se encaminhou para o fechamento com a utilização do jogo nas duas últimas aulas. “Os alunos sabiam que eles jogariam algo criado exclusivamente para eles, criando uma expectativa. Além disso, uma característica importante do RealFest é o fato de ser jogado de forma cooperativa, já que o grupo de jovens, dentro do ambiente virtual, tinha acesso a esses desafios. Juntos, cada um fazia a sua parte e concluía um objetivo do jogo”, destacam Marina e Edson. Ou seja, as decisões tomadas por cada um dos jogadores tinham consequências diferentes no resultado e no festival como um todo.
Os educadores que aplicaram (e jogaram) o RealFest afirmam que ter acesso a essa ferramenta foi algo enriquecedor para eles e os alunos. Acreditam também que a experiência “dá uma certa esperança de que é possível aliar a educação com novas formas de conhecimento, como inteligência artificial e demais tecnologias”.
Oficina de educação financeira tendo o game como ferramenta pedagógica (Foto: emPassos Consultoria)
Segundo Alexandre, a Salve Games se inspira no hip-hop e no rap, os quais mostram, há muitos anos, que é possível unir arte, protesto e a busca por conhecimento. Nesse contexto, ele comenta alguns desafios: “Eu criei uma empresa inclusiva, só com pessoas pretas e de periferia, e foi um desafio encontrar esses profissionais. A gente tem um lado ligado a causas, e conseguir grana para projetos de causas ou para projetos educacionais também é desafiador. Eu estava ciente dos desafios de trabalhar com inovação, mas também há a parte legal que é propor novas ideias”, diz.
Exemplos disso, além do RealFest, são outros jogos da Salve Games, como Sonho TrapStar, que simula a carreira de um artista de hip hop, e Zumbi dos Palmares, feito em parceria com a Feira Preta, para criar um mapa inspirado no herói do movimento negro, ambos construídos também dentro do Fortnite.
Alexandre relata algumas possibilidades de aprendizado existentes: “No modo de exploração, você anda e vai recebendo informações sobre como funcionava a política, a economia e a cultura em Palmares. Mas também tem o gameplay em que você defende o local da invasão, é uma aprendizagem mais gamificada, com o jogador na pele de um integrante do quilombo. E aí entra toda uma interpretação. Porque, muitas vezes, ao contar sobre essa parte da história do Brasil, a gente quer que as pessoas se sintam naquele lugar, que entendam como é. E ainda existe um pensamento educativo de mostrar que Palmares não foi uma aldeia de refugiados, mas, sim, uma das capitais do Brasil que sofreu ataques”, argumenta ele.
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Conforme lembra o proprietário da Salve Games, os jogos do estúdio já integraram diversos cursos em São Paulo, nas regiões de Heliópolis, Paraisópolis, Santana, Diadema, além de terem passado por cidades como Belo Horizonte, Manaus e Teresina. Para Alexandre, até o momento, o universo dos games, em sua maioria, tem visado o entretenimento, apesar de todo o potencial educacional que tem. Ele ainda reforça a importância de se apoiar em novas tecnologias para tentar diminuir a desigualdade social.
“Para mudar alguma coisa na sociedade, você precisa dar exemplo. Nosso sonho é conseguir dar aulas regulares nas quebradas em que a gente atua. Mas espero que iniciativas como as da Salve Games inspirem os grandes nomes da indústria a aproveitarem seus jogos com milhões de jogadores para inserir, de fato, conteúdos educativos e, assim, levar uma proposta que agregue mais que o simples entretenimento na vida das pessoas”, conclui Alexandre de Maio.
Jogos educativos permitem que o jovem aprenda se colocando no lugar do outro, destaca o fundador da Salve Games, Alexandre de Maio (Foto: arquivo pessoal)
*Todos os jogos citados na matéria podem ser acessados por PC, videogames ou celular dentro do Fortnite
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