NOTÍCIA

Opinião

Autor

Redação revista Educação

Publicado em 23/05/2025

Tem caroço nesse angu

Qual o interesse de grandes empresas e fundos estrangeiros na educação brasileira?

Por Celso Napolitano, presidente do Sindicato dos Professores de São Paulo (SinproSP) e da Federação dos Professores do Estado de São Paulo (Fepesp) | Minha intenção neste texto é propor uma reflexão livre sobre a presença cada vez maior de grandes empresas educacionais mercantis no ramo do ensino básico no Brasil. 

Há tempos tenho pensado muito nesta questão e, confesso, me intriga o modo com que esses grandes grupos, fundos internacionais com ações em Bolsa, estão entrando aqui no país para comprar escolas e sistemas de ensino. Claro que estamos falando de um negócio, aliás, muito lucrativo. Mas estou convencido de que, para além do interesse financeiro, há outra motivação. 

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Minha hipótese é que, para além de um negócio altamente lucrativo que é comprar escolas, vender sistemas de ensino e material didático, a real motivação dos conglomerados educacionais mercantis no controle de grande parte da rede básica de ensino privado no Brasil é a escravidão intelectual.

Mas, vamos nos ancorar, primeiramente, no mundo do mercado. Vamos considerar que a motivação maior desses grupos seja apenas financeira.   

A fidelização do cliente, no ramo da educação, é muito grande. Refiro-me a grau de fidelidade porque estamos trabalhando aqui com conceitos empresariais. Afinal de contas, em se tratando do ensino básico, um aluno matriculado significa que a escola terá um cliente por, no mínimo, 12 anos. 

É esta a primeira fase da escolaridade — que abrange a educação infantil, o ensino fundamental e o médio —, formação inicial obrigatória para crianças e adolescentes e que, em tese, tem o objetivo de prepará-los para o desenvolvimento integral e a vida em sociedade.   

Trajetória traz garantia

A escola em que a criança está matriculada desde a tenra idade é ponto central na questão da fidelização porque ela se adequa às condições sociais nas quais está, às relações sociais que constrói, se apega às amizades, aos professores, ao ambiente escolar. Há também o enfoque educacional — os pais elegem uma linha educacional que entendem ser a mais adequada para a formação de seu filho ou de sua filha; por isso, sempre a troca de escola, para uma família, é um tanto quanto penosa. E com razão, pois estamos tratando de valores que vão balizar a formação de um ser humano.   

Então, dado o contexto, esta escola tem a garantia de um cliente fidelizado por 12 anos. E, nesse período, como é que essa escola vai atuar em relação à educação desse ser humano? O que interessa a essas grandes corporações é um projeto educacional ou um projeto financeiro? 

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Quando as organizações mercantis de educação se instalaram no Brasil no início dos anos 2000, na gestão Lula, chegaram via ensino superior. Havia, nessa época, uma demanda represada de vagas em universidades ocasionada, sobretudo, pelo processo de universalização do acesso à educação nos níveis fundamental e médio promovido na década anterior pelo governo FHC. 

Fato é que o governo federal, à época, tinha como missão expandir vagas no ensino universitário. Além do programa de expansão de universidades públicas por todo o país, foram criados projetos sociais muito interessantes de financiamento da educação – o ProUni (Programa Universidade para Todos) e o Fies (Fundo de Financiamento Estudantil), basicamente bancados pelo governo federal em um acordo com faculdades privadas — vaga em troca de impostos e tributos não pagos.   

grupos educacionais

Foto: Shutterstock

O caso Fies

A história do Fies é um capítulo à parte. Em 2015, o Estadão mostrou em uma série de reportagens de autoria de José Roberto de Toledo, Paulo Saldaña e Rodrigo Bulgarelli — aliás, vencedora da principal categoria do Prêmio Esso daquele ano —, as fragilidades da União para reaver o investimento, com alto índice de inadimplência dos beneficiários, o que de fato acabou acontecendo. 

Em 2014, o gasto ultrapassava 13 bilhões de reais. Dados divulgados em janeiro de 2025 por esse mesmo jornal apontam que, em 2024, o saldo devedor do Fies chegou a 114 bilhões e os contratos em atraso correspondiam a mais da metade do total. 

Os números surpreendem, mas a operação é simples de entender: o governo federal comprava vagas no atacado a preço de vitrine, o que despertou a cobiça de grandes empresas do ramo da educação, que passaram a investir no ensino superior. Muitos desses grupos empresariais voltaram sua atenção também ao ensino básico.             

Em tempos incertos, esse mercado continua consolidado

Hoje, a educação básica privada é um mercado consolidado, com diversos grupos empresariais atuando em diferentes segmentos e escalas, em nível nacional, e diversos grupos regionais e locais. A consolidação desse mercado tem atraído o interesse de fundos de investimento e grupos estrangeiros, que buscam maior participação e crescimento no setor. 

Empresas como Cogna e Yduqs, listadas em Bolsa, são grandes players no mercado de educação básica e superior e têm uma atuação diversificada em diferentes segmentos e níveis de ensino, incluindo a educação infantil, ensino fundamental e médio.  

A Cogna Educação é a empresa brasileira líder no setor educacional. Atua desde a educação básica até o ensino superior, incluindo cursos de idiomas, materiais didáticos e soluções digitais para escolas. Atualmente, opera quatro unidades de negócios: Cogna Educação, que oferece um portfólio de serviços e soluções personalizadas e flexíveis para a educação básica, passando por idiomas, materiais didáticos, ensino técnico, livre e profissionalizante, cursinhos preparatórios, até o ensino superior e a pós-graduação; Kroton, que investe no ensino híbrido e digital e em marcas como a Faculdade Anhanguera e as universidades Unic Cuiabá e Uniderp Campo Grande, por exemplo. 

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Ao todo, são 112 campi e 3.000 polos EaD. Atua também no ensino médico por meio da KrotonMed; Somos Educação, holding de educação básica que comercializa produtos educacionais como sistemas de ensino, editoras, soluções de ensino complementar, além de uma plataforma de aprendizado digital e de e-commerce, atuando como parceira integral das escolas, e Saber, responsável por desenvolver conteúdos e soluções inovadoras para o mercado de educação em frentes como ensino de idiomas, ensino superior e educação básica para a rede pública. A marca se destaca ainda como líder no Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD). 

Yduqs é uma holding de capital aberto fundada em 1970, no Rio de Janeiro, e atualmente a segunda maior empresa de educação superior em receita. É mantenedora de 18 instituições de ensino espalhadas pelo país, dentre as quais IBMec, Estácio, Damásio Educacional, Unitoledo e Qconcursos.  

O Inspired Education Group tem sede em Londres e mantém mais de 80 escolas em cinco continentes. No Brasil, é mantenedor da rede Escola Eleva, com unidades em São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ), Brasília (DF), Recife (PE), Salvador (BA) e Vitória (ES). Oferece educação bilíngue em período integral para alunos de idades entre dois e 18 anos, inclusive o Programa de Diploma de Bacharelado Internacional. 

Brasil e mundo

Salta, SEB, Santillana, Ânima e outros grupos controlados por fundos de investimentos estrangeiros também têm se dedicado à aquisição de escolas e expansão de seus portfólios no Brasil. Todos têm em comum a busca de crescimento por meio de aquisições, expansão de cursos digitais e aprimoramento das plataformas de ensino híbrido. 

Analistas da área avaliam que a consolidação deste mercado tem como consequência a diminuição do número de escolas independentes e o aumento da influência dos grandes grupos internacionais nas redes de ensino no Brasil.

Há ainda outros grupos investindo na venda de material didático — o material entra nas escolas públicas com um determinado viés ideológico e, nesse sentido, há que ter cuidado nessa grande massificação do sistema de ensino.

Em outras palavras, o sistema de ensino é vendido para prefeituras e os alunos aprendem o que esses sistemas de ensino querem ensinar. Os professores, por sua vez, são treinados para ministrar aulas naquele sistema e não podem fugir do script. As aulas vêm prontas, as avaliações vêm prontas, alunos e professores têm que seguir aquele esquema. Repito: os grandes grupos estão atuando nessas escolas para ganhar dinheiro e interferir na cabeça da criançada vendendo material de sistema de ensino, que é material escolar apostilado. Não tem mais livro. 

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Vale destacar que esses grupos estão se instalando para atender o ensino básico para a classe A, enquanto no ensino superior os grupos vieram para atender as classes C, D e E. Agora, estão se especializando em EaD — uma massificação, mas estão pouco se importando com o que vai acontecer com a qualidade do ensino superior porque a bola da vez é conquistar a elite econômica e intelectual do país por meio do ensino básico. Eu acho que essa é a questão. Eles fizeram um ensaio no ensino superior para chegarem ao ensino básico.

Exemplos não faltam. Se pensarmos no ambiente educacional que esses grupos internacionais estão começando a introduzir aqui em nossas escolas, esses ingleses, americanos, estadunidenses estão ‘fazendo a cabeça’ cultural e acadêmica de nossas crianças desde a mais tenra idade. 

Por isso, repito que custo a acreditar que o objetivo desses grupos seja só financeiro e isso precisa ser estudado. Há algum objetivo cultural de massificação, como já acontece no ensino superior? 

É óbvio que no superior eles não querem formar pessoas com capacidade crítica. A eles não interessa criar uma elite intelectual. Mas, quando analisamos o ensino básico, nossas principais cabeças estão sendo levadas para fazer universidade no exterior. O objetivo é que o conhecimento fique lá fora e não aqui dentro. Talvez seja isso. Ou talvez eu esteja pensando muito em teoria da conspiração — daí a importância de mais estudos sobre esse tema.

Aculturação 

Outro aspecto que destaco: atualmente, a classe média alta e a classe alta, com todo o problema de segurança que existe no Brasil, cultivam a aspiração de terem seus filhos cursando faculdade no exterior. Com isso, muitos se estabelecem por lá. Mesmo porque diplomas de graduação de universidades estrangeiras nem sempre se equivalem às brasileiras; muitos precisam passar por revalidação em universidades públicas que ofereçam cursos do mesmo nível ou área. E quando esses jovens voltam — quando voltam — vão trazer a cultura de lá fora para cá. 

Essa aculturação é uma questão, a meu ver, complexa. Certamente vai haver uma fissura de interesse pelo seu país de origem, pela sua nação. No fundo, é o capitalismo atual que está comprometendo o planeta. Esses grupos, na minha concepção, cumprem esse papel. São parte do jogo do ultracapitalismo.  

Por fim, o que me intriga nessa questão é isso: por que esses fundos internacionais com ação na bolsa estão entrando com tanta voracidade em nossos sistemas de ensino, em especial na rede básica? O ticket é alto. Será mesmo que o retorno financeiro é tão compensador assim? 

E qual é o payback desses grupos quando compram uma instituição de ensino a um preço tão alto? Qual tempo de retorno desse investimento? 

Tem alguma coisa por trás disso que a mim ainda não está claro. Tem caroço nesse angu. 

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