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Formação docente

Autor

The Hechinger Report

Publicado em 07/01/2025

“Foi a coisa mais injusta”: desobediência, disciplina e disparidade racial nos EUA

Em Ohio, estudantes negros são suspensos com mais frequência por infrações de menor gravidade do que brancos

Por Meredith Kolodner, do The Hechinger Report | Toledo, Ohio | O som do professor batendo em sua mesa fez Marquan despertar de repente, e sua cabeça se levantou bruscamente. “Acorde”, disse o professor.

Marquan não havia dormido muito na noite anterior, e as palavras saíram antes que ele estivesse totalmente coerente. “Cuidado, antes que você me deixe bravo”, ele disse.

O professor se virou e perguntou se aquilo era uma ameaça. O garoto de 16 anos respondeu que não, que estava apenas assustado, mas já era tarde demais — ele foi colocado para fora da sala de aula e suspenso por dois dias.

O que o professor entendeu como ameaça era, para Marquan, uma reação instintiva, e ele falhou em ajustar o comportamento naquele momento de sonolência.

“Eu não estava ameaçando ele, foi apenas algo alto e que aconteceu de repente”, disse Marquan, que agora tem 17 anos e está no segundo ano na Jesup W. Scott High School em Toledo, Ohio (o sobrenome dele está omitido para proteger sua privacidade). “Foi a coisa mais injusta.”

Em Ohio, estudantes negros como Marquan são suspensos por incidentes como esse com muito mais frequência do que seus colegas brancos. Nos últimos seis anos, Ohio emitiu quase 885.000 suspensões e expulsões por comentários e comportamentos classificados como desobediência ou perturbações. Quase metade dessas punições foi destinada a estudantes negros, embora eles representem apenas 17% da população da escola pública. Em média, estudantes negros em Ohio são retirados das aulas por essas ofensas a uma taxa quatro vezes e meia maior do que estudantes brancos.

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Uma análise do Hechinger Report em 20 estados revelou que esses tipos de categorias são citados como justificativa em quase um terço de todos os registros de suspensão e expulsão. Em muitos estados, incluindo Indiana, Maryland e Rhode Island, estudantes negros são suspensos mais frequentemente por esses tipos de incidentes, que podem incluir violações de código de vestimenta, responder aos professores e fazer muito barulho na sala de aula.

Os estados utilizam diferentes termos para descrever as ofensas — desrespeito, insubordinação, desafio — dependendo de seus códigos disciplinares. Mas o que todos têm em comum é a natureza subjetiva da decisão do educador; especialistas dizem que isso é o que leva às disparidades raciais. O que parece desrespeitoso e ameaçador em uma sala de aula pode ser totalmente aceitável em outra, dependendo de quem está ouvindo e de quem está falando. É nesse ponto que as diferenças raciais e culturais entre educadores e estudantes podem entrar em jogo. O preconceito também desempenha um papel.

“Desobediência é identificada, em grande parte, por experiências vividas”, disse Jennifer Myree, que foi diretora e diretora assistente em Cincinnati por sete anos e agora trabalha para o Departamento de Educação de Ohio. “Se você tem uma criança que vem de um lar onde é permitido que ela fale sobre injustiças, por exemplo, dizendo ‘isso não é justo’, e o professor ou os administradores acreditam que a criança não deveria falar sobre essas coisas, eles podem considerar isso como desobediência.”

Pesquisadores dizem que disparidades raciais nas escolas tendem a refletir o que está acontecendo na sociedade como um todo e que o nível de renda não explica essas discrepâncias.

“Professores não são mais enviesados do que outras pessoas, mas também não são menos enviesados”, diz Russell Skiba, professor do programa de psicologia escolar da Universidade de Indiana e diretor do Projeto de Equidade da universidade. “Raça é um fator muito mais importante para prever se uma criança será suspensa do que a pobreza.”

Uma porta-voz do Departamento de Educação e Trabalho de Ohio, Lacey Snoke, não respondeu diretamente às perguntas sobre as disparidades raciais no estado. E disse que o departamento “apoia escolas e distritos no enfrentamento de barreiras não acadêmicas à aprendizagem.” O Departamento de Educação de Indiana afirmou que as políticas disciplinares escolares são estabelecidas em nível local. Rhode Island disse que ajuda os distritos escolares a definir políticas disciplinares que “sejam conducentes a um ambiente seguro e acolhedor que promova o sucesso acadêmico”. A agência estadual de educação de Maryland disse apenas que disponibiliza dados anuais para os distritos escolares analisarem.

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Snoke também observou que o estado exige que as escolas utilizem um sistema de suporte estudantil conhecido como Intervenções e Suportes Comportamentais Positivos, ou PBIS. “Quando o PBIS é implementado com fidelidade, escolas e distritos veem uma redução nas suspensões fora da escola e na disciplina excludente”, ela disse.

Como muitos distritos escolares estadunidenses, as escolas públicas de Toledo lutam há anos para manter a disciplina racialmente equitativa. Em 2020, após uma investigação federal de direitos civis, o distrito concordou com um acordo com o Departamento de Justiça federal “para abordar e prevenir a disciplina discriminatória de estudantes com base na raça ou deficiência”. Na primavera de 2023, o governo estendeu seu monitoramento por mais um ano depois de constatar que o distrito não estava em total conformidade com os termos do acordo.

Parte do problema em Toledo, o quinto maior distrito escolar de Ohio com mais de 21 mil alunos, é que professores e administradores ainda não descobriram o que está na raiz da disparidade, de acordo com um relatório de monitoramento federal enviado ao distrito em maio de 2023 e obtido pelo Hechinger Report como parte de sua investigação sobre o uso generalizado de suspensões para temas como desafio e perturbação em todo o país.

“Respostas especulativas sobre os motivos pelos quais as indicações disciplinares seriam maiores para estudantes negros em comparação com estudantes brancos variaram de culpar o desempenho inferior dos alunos em matemática e artes da língua inglesa a culpar ‘pais que não têm orgulho’ ou que estão, de outra forma, desvinculados da vida de seus filhos”, de acordo com o relatório. “Educadores de uma escola opinaram que não estão utilizando estratégias que engajem crianças negras; aqueles de outra escola disseram que precisavam desenvolver atividades para que os alunos sentissem mais senso de pertencimento.”

Em 2023, houve mais de 12 mil suspensões nas escolas públicas de Toledo por desafio ou perturbação e mais de 7.700 foram dadas a estudantes negros, acima dos 7 mil do ano anterior. Estudantes negros receberam 65% das suspensões relacionadas a desafio e perturbação no último ano, embora representem cerca de 46% da população estudantil em Toledo.

O motivo dos altos números é multifacetado, e as soluções também precisam ser, disse Amerah Archer, diretora executiva interina do Departamento de Equidade, Diversidade e Inclusão das escolas públicas de Toledo.

“Entendemos que às vezes há um descompasso cultural entre professores, alunos e suas origens”, contou Archer. “Então oferecemos treinamento culturalmente responsivo, para ajudar nossos professores a entender como construir relacionamentos e alunos entre culturas.”

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O distrito também trouxe provedores externos de saúde mental e — em todas as suas 57 escolas — montou equipes de bem-estar socioemocional para examinar os dados de disciplina e buscar tendências, incluindo disparidades raciais nas escolas e salas de aula. Educadores recebem treinamento sobre como responder a estudantes que enfrentaram traumas e podem estar agindo como resultado disso, com respostas que podem levar a alternativas às suspensões.

Sheena Barnes, presidente do conselho escolar até janeiro de 2024, aponta para uma cultura que vê algumas crianças como mais perigosas do que outras. Ela também está preocupada com educadores que têm dificuldade em interpretar adequadamente o comportamento de uma criança.

Barnes, que é negra, recebeu uma ligação em 2023 para ir imediatamente à escola de seu filho. O filho dela, que está no espectro do autismo e estava no terceiro ano na época, tentou misturar tintas para fazer uma cor específica. A professora acidentalmente pegou uma das cores, frustrando o menino, que jogou o pincel e espirrou um pouco de tinta. Depois que Barnes chegou e ajudou a acalmar a situação, ela disse que a professora perguntou se elas poderiam conversar.

A mãe relata que a professora a confessou: “Ele simplesmente me assusta”.

“Então eu perguntei a ela: ‘O que ele fez? Ele te mordeu, chutou, jogou algo em você? Ele te xingou?’ Eu passei por toda a lista de coisas que poderiam justificar o medo de uma criança de nove anos’. E ela disse: ‘É o jeito que ele olha para mim.’”

“E eu simplesmente desmoronei”, lembrou Barnes. “Se você tem medo dele no terceiro ano, o que você fará quando ele estiver no nono ano?”

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Momentos como esses — quando adultos veem crianças como ameaçadoras — podem influenciar decisões tomadas em situações de tensão na sala de aula. O relatório do Departamento de Justiça sobre as escolas de Toledo na primavera de 2023 concluiu que “infrações subjetivas sujeitas a viés, como ‘comportamento disruptivo’ e ‘falha em seguir instruções’” desempenham um papel nas discrepâncias raciais quando se trata de disciplina.

Oficiais das escolas de Toledo observaram que o relatório afirmou que o distrito havia “feito progressos significativos” em algumas áreas e que a pandemia de covid-19 “prejudicou e atrasou a capacidade do distrito de executar certas disposições em tempo hábil.”

Barnes, que continua no conselho escolar, disse que acolhe o monitoramento contínuo do governo porque, segundo ela, “ainda temos trabalho a fazer.”

“Não existe uma criança má — existe uma criança reagindo a uma má situação”, disse ela, sentada em um café no centro de Toledo, observando as muitas questões sérias enfrentadas pelos jovens, como violência armada e insegurança alimentar.

“Talvez eu não saiba ler. Então, vou perturbar a aula, porque não quero me envergonhar”, disse Barnes. “Ou se você me perguntar onde está meu dever de casa, vou fazer algumas piadas bobas e ser expulso, porque não quero que as pessoas saibam que eu não tinha uma casa para dormir na noite passada, ou que não consegui fazer minha lição de casa porque não tínhamos energia.”

Às vezes, o comportamento disruptivo começa com um pequeno incidente — como um estudante falando alto na sala de aula. Se um professor tem dificuldade em redirecionar a criança, isso pode se intensificar, e a sala de aula pode se tornar caótica. Professores às vezes concluem que remover a criança que está fazendo barulho é o melhor para o interesse da classe como um todo.

disparidade racial

Em 2023, houve mais de 12 mil suspensões nas escolas públicas de Toledo por desafio ou perturbação e mais de 7.700 foram dadas a estudantes negros (Foto: Shutterstock)

Experiência e treinamento podem fornecer aos professores ferramentas para lidar com o comportamento dos alunos sem recorrer a suspensões.

 

Um estudo realizado na Califórnia e publicado em 2023 descobriu que, frequentemente, eram os professores menos experientes que mais recorriam à remoção de alunos disruptivos da sala de aula, e que até mesmo três anos de experiência de ensino resultaram em uma queda substancial no número de alunos encaminhados para medidas disciplinares.

O mesmo estudo revelou que, entre os professores que removiam alunos da sala de aula e os enviavam à sala do diretor para ações disciplinares, os 5% que mais adotavam essa prática o faziam com tanta frequência que eram responsáveis pela maior parte das disparidades raciais nesses encaminhamentos — efetivamente dobrando essas lacunas.

Essas lacunas são amplamente impulsionadas por incidentes que exigem uma interpretação mais subjetiva, como “desafio”, em vez de categorias mais objetivas, como uso de drogas ou faltar às aulas, segundo Jing Liu, professor assistente de educação da Universidade de Maryland e um dos autores do estudo.

Outros pesquisadores argumentam que ambientes estressantes podem amplificar as desigualdades raciais.

“Quando as pessoas estão estressadas, quando estão sob pressão, quando não têm tempo para pensar em uma resposta, elas estão mais propensas a recorrer a preconceitos raciais”, disse Juan Del Toro, professor do departamento de psicologia da Universidade de Minnesota, Twin Cities, que estudou o impacto das políticas disciplinares em estudantes negros.

Del Toro argumenta que mais apoio aos professores poderia reduzir o número de suspensões por infrações de baixo nível, o que, por sua vez, poderia ajudar mais alunos a terem um bom desempenho acadêmico. Sua pesquisa mostrou que, quando os alunos cometiam pequenas infrações de comportamento, aqueles que foram suspensos enfrentaram consequências acadêmicas negativas significativas, em comparação com os alunos que apenas receberam uma advertência pela mesma infração.

Em Toledo, Jamarion, um aluno do 10º ano da E. L. Bowsher High School, estava cumprindo uma suspensão dentro da escola em dezembro de 2023 por ter se envolvido em uma discussão com outro aluno, quando recebeu mais três dias de suspensão por conversar na sala de suspensão.

“Nós estávamos apenas conversando sobre como estávamos nos sentindo, entediados e tudo mais. Você fica lá o dia todo olhando para a parede ou fazendo sua lição de casa”, disse Jamarion, que tem 15 anos (o sobrenome dele está omitido para proteger sua privacidade). “Você deveria pelo menos receber um aviso ou algo assim.”

“Não é justo”, ele disse. “Eu estava bravo, chateado.” E ele disse que estava preocupado em perder mais aulas de matemática e ficar para trás.

Educadores e administradores enfatizam que simplesmente proibir suspensões para infrações de baixo nível não mudaria a cultura escolar nem ajudaria os educadores a encontrar alternativas. “Isso poderia consertar os dados”, disse Myree, ex-diretora de Cincinnati, “mas talvez não resolva o que está acontecendo na escola”.

Alguns distritos em Ohio, como o Cleveland Municipal, reduziram o número de suspensões por desobediência de crianças negras no último ano, mas o número total em Ohio subiu para mais de 78.400 em 2022-23, um aumento de 16% em relação ao ano anterior.

Izetta Thomas passou 18 anos como educadora nas escolas públicas de Columbus, em Ohio, e agora é a organizadora de justiça educacional da Columbus Education Association, o sindicato que representa os educadores de Columbus.

Ela acredita que cada professor tem responsabilidade por suas ações, mas que os programas de formação de professores e o próprio sistema escolar poderiam fazer mais para controlar o uso excessivo de suspensões.

“É difícil para os educadores porque muitos de nós podemos sentir que isso [decisões disciplinares] não é o que eu me propus a fazer, não é o que eu aprendi na minha sala de aula na faculdade”, disse Thomas. “Mas por que isso não faz parte do treinamento de professores nas faculdades? Por que o entendimento dos nossos próprios preconceitos e lentes, e daqueles que são diferentes dos nossos, por que não somos ensinados desde cedo sobre o que isso é?”

“Todo mundo precisa de band-aids”, ela acrescentou, “mas band-aids só duram por um tempo”.

*Nota: Fazil Khan, do The Hechinger Report, quase havia concluído a análise de dados e o relatório para este projeto quando faleceu em um incêndio em seu prédio. Doug Caruso, editor sênior de dados do USA TODAY, completou as visualizações de dados para este projeto com base no trabalho de Khan.

**Essa matéria sobre disparidades raciais na disciplina escolar foi produzida pelo The Hechinger Report, uma organização de notícias independente e sem fins lucrativos focada em desigualdade e inovação na educação.

***Essa reportagem foi publicada originalmente em 1º de abril de 2024.

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