NOTÍCIA
Se aprovado, modelo de atuação em rede deve articular esforços entre governo federal, estados e municípios para coordenar trabalhos e gerar resultados que vão da formação docente, infraestrutura e até aprendizagem dos estudantes
Publicado em 29/10/2024
A educação brasileira opera em redes, com responsabilidades atribuídas a diferentes esferas governamentais — municipal, estadual e federal — que muitas vezes se sobrepõem. Para articular todas elas, promovendo a colaboração e a aplicação mais eficiente de recursos, o Brasil precisa ter um Sistema Nacional de Educação (SNE). Sonhado por educadores desde a década de 1930, sua criação está prevista no Plano Nacional de Educação (PNE) e, atualmente, há projetos em discussão no Congresso. A ideia central é que os destinos da educação nacional sejam decididos de forma conjunta, em um regime colaborativo organizado em câmaras. Enquanto o Sistema não chega, iniciativas pontuais mostram quanto o país ganharia com uma melhor coordenação das redes.
Se ficasse cada um sozinho seria impossível, mas, em conjunto, um grupo de quatro pequenos municípios do interior do Piauí conseguiu fazer avaliações diagnósticas, montar estratégias pedagógicas, dar formação para professores e gestores e, dessa forma, melhorar a qualidade da educação básica local. De 2013 a 2023, a média no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) das quatro cidades — Arraial do Piauí, Cajazeira do Piauí, Francisco Ayres e Santa Rosa do Piauí — subiu de 3,5 para 5,2. “São municípios com poucos recursos e o processo de formação continuada é caro. No sistema de colaboração, o financiamento é otimizado”, explica o professor Antonio Silva, coordenador de dois arranjos educacionais no estado.
A colaboração começou quando Silva era Secretário de Educação de uma rede municipal, conheceu um arranjo feito por um grupo de secretarias no oeste paulista e passou a convidar colegas de cidades vizinhas a fazer acordos. “Fui até os municípios próximos apresentando a proposta. Nossa primeira ação foi criar jogos estudantis regionais, para a gente perceber que era possível fazer um trabalho em conjunto e promover a integração. Depois partimos para o pedagógico propriamente dito”, recorda-se sobre o início do processo, em 2014.
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Além do trabalho de convencimento à época, cada vez que há eleições municipais ou um quando um novo secretário de Educação toma posse, os acordos precisam ser repactuados. “Temos de apresentar os indicadores e impactos numa reunião técnica com quem assume, elencar as metas e obrigações, fazer assinar uma carta-compromisso. Num dos grupos, tivemos alteração de 100% dos prefeitos, mas conseguimos manter o trabalho”, comemora o coordenador. Porém, se houvesse um sistema instituído oficialmente, esse tipo de colaboração seria a regra, e não dependeria da boa vontade dos eleitos.
Outra vantagem se houvesse um sistema é que a rede estadual piauiense também entraria no acordo. Talvez o caso de maior sucesso de articulação na educação brasileira seja o Programa de Alfabetização na Idade Certa (Paic) do Ceará, um programa de cooperação entre governo estadual e municípios que mais tarde serviu de inspiração para uma iniciativa federal, o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic). Segundo o Sistema Permanente de Avaliação da Educação Básica do Ceará (Spaece) 2015, 86% das crianças encontravam-se alfabetizadas ao término do 2º ano; em 2007, esse percentual era de apenas 39,9%.
“Hoje, os acordos dependem de características regionais e interesses; não é uma política instituída. Seria importante ter um espaço oficial de pactuação, com câmaras para os estados dialogarem com seus municípios e todos eles com o governo federal”, afirma Eliziane Gorniak, diretora-executiva do Instituto Positivo, que fomenta a criação de arranjos municipais enquanto o país espera pelo SNE.
Embora seja um tema ligado à gestão, a instituição de um sistema teria impacto direto na vida dos estudantes e suas famílias. Na Grande Florianópolis, por exemplo, é comum que famílias migrem para o litoral no verão por causa de trabalhos temporários, fazendo com que as matrículas flutuem ao longo do ano letivo. Em conjunto, as redes municipais vêm tentando lidar com essas trocas para manter a sequência de aprendizados, independentemente da cidade em que estejam as crianças. “De forma geral, no Brasil, a gente não tem nem mesmo a unificação de currículos. Se uma criança muda no meio do ano, ela pode ser reprovada simplesmente por não ter visto certo conteúdo”, diz Eliziane Gorniak.
A instituição do SNE pode levar a um salto de qualidade na educação, defende a diretora, mas não se deve esperar que tenha efeitos práticos imediatamente. “Existem dois projetos em tramitação, mas há uma intenção no Congresso de compatibilizar os dois para podermos avançar. Depois de uma possível promulgação, o país vai então ter de organizar os conselhos, as câmaras, e pode demorar um pouco para os efeitos chegarem até a ponta, mas sem dúvidas será benéfico”, afirma.
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Apesar de haver bastante apoio à criação do Sistema Nacional de Educação, na generalidade, a discussão do modelo em que ele vai operar não é simples. “Para uma medida ser aprovada, será preciso haver consenso, ou bastará contar com a aprovação da maioria? E qual vai ser o peso de voto de cada ente federado? Uma rede municipal vai ter o mesmo voto que uma estadual ou que o governo federal?”, questiona Eduardo Deschamps, professor da Universidade de Blumenau, ex-presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE) e Secretário de Educação de Santa Catarina (2012-2018).
Foi a discordância em torno do poder das câmaras em decidir sobre verbas discricionárias do orçamento (as que não vêm carimbadas para uma ação específica) que derrubou iniciativas anteriores de se criar o Sistema. “Algum lado vai sempre ter de abrir mão de poder, mas vai chegar uma hora em que haverá um acordo porque o país precisa”, defende Deschamps, que é conselheiro editorial da revista Educação. De acordo com ele, quem mais terá de abrir mão de poder será o Ministério da Educação (MEC), que hoje tem muita força econômica para definir projetos, passando aos estados e municípios apenas a execução.
Independentemente da queda de braço, o tamanho e a diversidade do país exigem políticas menos centralizadas, mas que garantam certa unidade. “Quanto mais próximo eu estiver da escola, do professor e do estudante, mais fácil fica fazer a aplicação dos recursos de forma bem direcionada, para aquilo que realmente faz diferença”, diz Eduardo Deschamps. A diversidade brasileira, contudo, não deve significar desigualdade de direitos. Portanto, não adianta apenas transferir a gestão, sem uma articulação nacional.
A aprovação do SNE parece mais próxima porque o país está chegando ao consenso de que o modelo atual está se tornando disfuncional. Nem a suposta divisão de atribuições por esferas, com governo federal respondendo pelo ensino superior, os estaduais pelo ensino médio e os municípios pela educação infantil e fundamental, é uma realidade. O governo federal oferece ensino médio nos Institutos Federais, há governos estaduais e municipais que mantêm faculdades, sem contar a sobreposição estadual e municipal na educação básica, que acontece sobretudo em cidades grandes.
“Em muitos lugares, você tem uma escola municipal próxima a uma estadual oferecendo exatamente a mesma etapa de ensino. Como a população está caindo, elas começam a disputar alunos, porque mais matrícula significa mais verba do Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação]. Já vi casos de escola sorteando bicicleta para quem fizesse matrícula”, relata Deschamps. Mais do que uma competição saudável, essa duplicação gera um desperdício de recursos públicos, pois é necessário manter duas bibliotecas, refeitórios etc.
Para cidades pequenas, o SNE poderia ajudar a educação a operar segundo uma lógica regional. “Temos municípios pequenos em que sua escola de ensino médio tem só uma turma por ano, o que torna caro manter laboratórios, mas também professores. Um professor de sociologia precisa de 16 turmas para preencher a carga horária”, exemplifica o ex-presidente do CNE. Um olhar regional poderia concentrar estudantes e trazer os que moram mais longe. “Com uma gestão coordenada, teríamos uma educação verdadeiramente nacional, com melhores condições de ensino e aprendizagem para todos”, diz.
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