NOTÍCIA
Cultivar as nossas memórias é a única garantia de um futuro autônomo e de um projeto próprio de nação
É interessante colocar inicialmente como referência a vivência pessoal, como acontece no caso do Alzheimer. Uma pessoa, quando perde a memória, deixa de existir, apesar de fisicamente presente.
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É como o caso de uma senhora que era uma católica radical, do tipo que não pisava em outros templos cristãos, e isso era um problema entre os familiares. Por uma série de circunstâncias, com a doença já avançada, ela foi com sua sobrinha em um culto presbiteriano e achou o máximo. Aquilo entristeceu a sobrinha, porque não era mais a tia — por mais que a sua crença fervorosa irritasse, ela tinha deixado de ser a pessoa com quem a família havia convivido por toda a vida.
Essa passagem nos faz pensar em como as nossas memórias definem quem nós somos, o nosso caráter e forma de agir.
Com um país ocorre o mesmo. Um povo sem memória não tem identidade; sem passado, não há futuro, não sabemos que caminho seguir. Sem um caminho a seguir, nos tornamos facilmente manipuláveis e dominados. Cultivar as nossas memórias é a única garantia de um futuro autônomo e de um projeto próprio de nação.
Por essa razão, professoras e professores têm, pela natureza da profissão, uma responsabilidade social com a verdade, mesmo ela sendo às vezes nefasta, dolorosa e vergonhosa. Mesmo que cause furor ou certa contrariedade, é importante trazermos as memórias para nossos cotidianos na sala de aula. O estranhamento com o tema surge justamente da nossa falta em tratar das profundidades da nossa história.
Nessa perspectiva, a Ditadura Civil-Militar Brasileira foi um período do nosso país sob o qual vivemos sem o direito de conhecer a verdade. Seja na falta de identificação, como no caso dos corpos da vala clandestina de Perus, ou pelos tantos desaparecidos, contar a história do nosso país deste período é um terreno até hoje árido, justamente por mobilizar dores; ao mesmo tempo, fora da sala de aula, essa agenda foi sendo cooptada por um discurso negacionista que culminou nesse último grande silêncio do Estado Brasileiro frente os 60 anos do Golpe Civil Militar.
Buscando reverter esse desconhecimento sobre o período, em 2012, foi instituída a Comissão Nacional da Verdade, com a responsabilidade de ouvir, registrar e analisar todos os materiais e depoimentos sobre o período. O lema era “para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”, exatamente indicando a função da Comissão e seus objetivos humanitários.
Ao longo de dois anos foi realizado um trabalho árduo, profundo e doloroso, mas crucial para a busca pela verdade. Não temos uma resposta simples desse processo, uma vez que o abrir dos armários que estão repletos de esqueletos levou a uma crise institucional e um novo Golpe, desta vez jurídico midiático, que levou em seguida a um governo miliciano.
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Mas, sem dúvidas, a Comissão da Verdade cumpriu um papel histórico ímpar e nos ajudou, assim como segue nos ajudando nos últimos 10 anos, a trazer à tona as memórias sobre o período ditatorial. São verdades muitas vezes dolorosas e cadavéricas, mas que traçam em nós o que somos — ou, fazendo uma referência ao pensamento de Darcy Ribeiro, “o Brasil é um moinho de gastar gente”, e a ditadura foi mais uma safra tolhida e moída nas pedras desse moinho.
Só há um caminho se queremos encontrar uma saída desses ciclos repetidos de necropolíica: uma educação comprometida com os direitos humanos. E por isso cada professora e professor precisa ter esse mesmo compromisso, trazendo esses valores éticos para a formação discente. É um dever com a ética, com a responsabilidade humana, relembrar mesmo os lados sombrios da nossa história, para que nunca mais aconteça.
Além dessas frentes, é importante chamar a atenção também para os museus da resistência, que constroem acervos focados em grupos que resistiram e resistem até hoje, sejam pela diversidade, gênero, sexualidade e origens. Essas questões e suas reflexões também ajudam a construir nossa memória coletiva, de maneira complexa e profunda.
Por fim, não se trata, aqui, de uma simplificação de debate, mas de um ensaio para convidar cada uma e cada um para pensarmos sobre nosso papel cotidiano com a memória que construímos, em especial a tão necessária memória sobre a Ditadura Civil-Militar Brasileira.
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