ARTIGO

Olhar pedagógico

Aprende mais quem aprende matemática de forma cooperativa

No sertão do Piauí ou em Harvard, trabalhar junto, com discussões entre colegas, melhora a aprendizagem

Publicado em 09/04/2024

por Luciana Alvarez

Aluna matemática “O professor deixa a gente livre para se movimentar, então vou conversar com quem pede”, conta Janayna Lopes, da Augustinho Brandão, que já ganhou duas medalhas de bronze na Obmep. Aos 14 anos, a jovem quer ser professora de matemática (Foto: Arquivo pessoal)

Tudo começou por causa de uma competição nacional, mas logo a disputa despertou o espírito de equipe e de trabalho colaborativo, virando norma na Escola Estadual Augustinho Brandão, de Cocal dos Alves, Piauí. O caso começou em 2005, na primeira edição da Olimpíada Brasileira de Matemática da Escola Pública (Obmep), quando vários estudantes passaram para a segunda fase e o professor Antônio do Amaral criou um grupo de estudos para prepará-los. 

Segundo Antônio, o grupo era de estudos para todos, inclusive ele mesmo, porque conta não ter tido uma formação inicial muito forte. “Tinha muito exercício que a organização da Obmep nos mandou treinar que mesmo eu não sabia como resolver”, lembra-se. Iam assim, professor e alunos aprendendo juntos. Se levou a bons resultados? A ótimos. Logo no primeiro ano da Olimpíada, estudantes da pequena cidade de 5 mil habitantes ganharam três medalhas. De lá para cá, todos os anos Cocal dos Alves tem alguns de seus alunos laureados.   

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O professor Amaral, assim como outros professores da escola, estimula os estudantes a se ajudarem mutuamente. Essa colaboração se dá de múltiplas formas. “Cada professor tem sua forma de agir, mas de forma geral, a escola se organiza de modo que os estudantes laureados sejam monitores, liderem grupos de estudos, ou projetos de nivelamento”, explica o docente, que hoje atua como coordenador de projetos na Secretaria Estadual do Piauí.  

Antonio Amaral

O professor de matemática Antônio do Amaral estimula os estudantes a se ajudarem mutuamente. Hoje é coordenador de projetos na Secretaria Estadual do Piauí (Foto: Divulgação)

Os estudantes que se destacam na Obmep acabam servindo de modelo positivo para os demais. É uma figura, contudo, diferente da figura do professor. “Esse aluno premiado se torna exemplo pelo interesse e dedicação que apresenta. Fica sim com uma certa autoridade entre os colegas, por ser alguém que valoriza seus estudos”, explica. E cabe aos docentes apresentarem a proposta de trabalho de um jeito que todos se sintam bem. “O estudante que se esforça sente-se reconhecido. É uma interação que promove o conhecimento. Temos na escola um clima muito propício para estudar e melhorar”, garante.  

Estudante estimulada 

Aluna da Augustinho Brandão, Janayna Lopes, de 14 anos, já ganhou menção honrosa e duas medalhas de bronze na Obmep. Continua se dedicando com a esperança de aumentar a coleção de prêmios. Mas não pensa só no seu sucesso pessoal; também aproveita para ajudar os colegas com a matemática. “Em geral, eu faço os exercícios de matemática muito rápido, e no resto do tempo da aula, aproveito para ajudar. O professor deixa a gente livre para se movimentar, então vou conversar com quem pede”, relata. 

Segundo a estudante, os colegas gostam muito de tirar dúvidas com ela, porque a linguagem é mais próxima entre dois estudantes do que entre professor-aluno. Janayna diverte-se ao contar que, no 9º ano, eram tantos que pediam ajuda que ela nem conseguia ‘dar conta’ de atender a todos. “Mas não sou só eu; tem mais alunos que ajudam nas aulas”, diz ela, que pretende ser professora de matemática no futuro. Além da matemática, é comum que as aulas de redação na escola sigam esquemas semelhantes, onde alunos circulam em sala para discutir suas ideias uns com os outros.  

Os resultados continuam sendo positivos para todos. O Ideb — uma das principais avaliações do país — do ensino médio na cidade é de 5,8, dois pontos acima da média brasileira para escolas estaduais, que é de 3,8. Em matemática, a nota do Saeb — outra avaliação importante — dos estudantes de ensino médio de Cocal dos Alves foi de 330, bem superior à média nacional, de 262.    

O exemplo da cidade do Piauí mostra na prática algo que estudos na área de educação vem mostrando também: aprende-se mais quando se aprende de forma cooperativa. “Quando se trabalha por grupos, mesmo a criança que ensina também aprende. O diálogo é produtivo para todos, porque discutem, contestam, falam suas próprias ideias. Dessa forma, estão processando as informações, não só ouvindo a professora falar”, afirma Tatiana Hochgreb, senior fellow na Escola de Educação da Universidade Stanford, nos Estados Unidos.  

O papel do professor nesse processo 

E, claro, não se deve ficar restrito à matemática. É possível promover estudos cooperativos em todas as disciplinas, em várias idades. Estratégias de aprendizado com os pares podem render frutos até mesmo no ensino superior. A Faculdade de Medicina de Harvard, uma das melhores do mundo, adota estudos cooperativos em grande parte da carga horária — chamam de metodologia Case-Based Collaborative Learning (CBCL), que significa aprendizagem cooperativa baseada em casos. Em palestras, o diretor da escola, George Daley, costuma dizer que os estudantes aprendem mais uns com os outros do que com os docentes.  

Em qualquer etapa da educação, cabe ao professor planejar atividades apropriadas. “O ideal são propostas que não tenham só uma maneira certa de fazer, que deem espaço para o grupo tomar decisões, argumentar. O professor precisa fazer perguntas que levem os estudantes a discutir e explorar”, explica Tatiana.  

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O docente, porém, precisa estar atento para perceber as dinâmicas dos grupos de estudantes. Para Tatiana, o educador se torna uma espécie de engenheiro criativo e observador. “É um desafio, mas o papel do professor é mais de planejar e, na sala de aula, ir observando e fazendo intervenções. Ele precisa circular, para ouvir o que os alunos dizem, como está a compreensão”, diz a pesquisadora de Stanford.  

Os docentes que desejem promover a aprendizagem colaborativa já têm à disposição um grande arcabouço teórico para nortear boas práticas, seja em livros como os de Rachel Lotan, pesquisadora do tema, ou mesmo em cursos como os oferecidos pela rede PED Brasil, no qual um dos módulos trata do “trabalho em grupo em salas de aula heterogêneas”. “É importante ter estratégias de como organizar os grupos. O ideal não é deixar juntos só os ‘bons’, ou os amigos. Deve-se mudar a configuração a cada projeto. Outro ponto é estabelecer normas para o trabalho, coisas como ‘todos têm de contribuir’ e ‘ninguém termina enquanto todos não terminam'”, cita Tatiana sobre pontos de atenção.  

Mudança cultural 

O desafio de promover mais aprendizados cooperativos não é apenas para o professor, mas para a própria estrutura escolar. Embora seja uma prática que dispense investimentos financeiros em tecnologias ou mudanças de infraestrutura, é preciso uma mudança cultural. “Está dentro da nossa cabeça que eu, adulto, preciso manter o controle. E muitos se preocupam: e se um aluno ensinar errado para o outro? Mas eu sempre pergunto de volta: e se o professor ensinar errado? Todos podemos errar”, afirma Ciça Melo, cofundadora do Movimento Paratodos e parte do conselho diretor do Instituto Apontar.  

Ciça Melo

“Está dentro da nossa cabeça que eu, adulto, preciso manter o controle”, expõe Ciça Melo, cofundadora do Movimento Paratodos (Foto: Arquivo pessoal)

Ela conta que, com boa vontade, qualquer escola é capaz de incluir ao menos algum tempo para os estudos em grupo, nem que sejam em horários no contraturno. “Às vezes se trata simplesmente de oferecer um espaço físico da escola, que já está disponível. É sempre bom que tenha algum funcionário por perto, mas dependendo da idade, nem é preciso ser supervisionado 100% do tempo”, diz Ciça. Ela cita que na Escola Municipal Pará, na cidade do Rio de Janeiro, a diretora fez projetos que deram ótimos resultados, no qual alunos com altas habilidades ajudaram nos estudos dos colegas. 

Para Ciça, especialmente na adolescência, esse tipo de abordagem é sadia e pode trazer bons resultados até mesmo do ponto de vista emocional. “Biologicamente, é o momento em que o indivíduo precisa se afastar um pouco do adulto que ele tem de referência, e sentir que ele também é capaz”, explica. 

Por trabalhar com inclusão, ela vê ainda que são estratégias que promovem a empatia e o respeito mútuo. “Nossa inteligência é múltipla. Às vezes, uma certa criança sabe mais e ajuda as outras. Mas o professor pode encontrar algo em que o outro, o que precisou de ajuda, também seja bom e possa ensinar aos colegas. Que seja a receita de um biscoito que ele conhece, por exemplo”, cita a conselheira do Apontar. (LA) 

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Luciana Alvarez


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