ARTIGO
Práticas pedagógicas que educam para o exercício da cidadania são tão importantes quanto o aprendizado de conteúdos técnicos voltados ao alto desempenho
Maria Gabriela Souza é professora de matemática dos anos iniciais na rede pública de Porto Alegre, RS, mas parte de sua trajetória profissional foi dedicada à alfabetização, quando ela precisou lidar com desconfianças sobre seus métodos de ensino, de seu fazer docente. “No meu planejamento, sempre apostei na contação de histórias e nas brincadeiras como dispositivos para aprendizagem. Contudo, existia uma intensa cobrança da escola e das famílias sobre ‘ter a matéria no caderno’. Quando [nossos encontros] eram brincantes e o caderno ia vazio para casa, no outro dia, recebia um bilhete dos pais perguntando se eu não tinha dado aula”, conta. Diante disso, ela explica que procurava dar conta do que as famílias acham que é a escola e o aprender, sem perder de vista o olhar para uma aprendizagem real e significativa.
A professora também atua na mediação de leitura para todas as etapas do ensino fundamental. Segundo Maria Gabriela, o início dessa fase foi mais um momento desafiador no que diz respeito às suas práticas pedagógicas: “Sofri uma imensa pressão de toda a comunidade escolar quando comecei a trabalhar com os alunos na biblioteca. Dizia-se que lá era o lugar do silêncio e da pesquisa”, revela.
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Nas avaliações institucionais, os colegas retornavam dizendo que a biblioteca estava virando ‘um palco’ e, de tanto falarem, ela quase adoece, pensando que sua postura era equivocada. “Porém, como diria a escritora bell hooks, eu busquei nos livros, nas narrativas literárias e na teoria o remédio pedagógico. A escola precisa estar atenta aos estudos científicos sobre educação e compartilhar esses conhecimentos para conscientizar a respeito da importância de romper com os acordos antigos de aprender. Então, no início do ano letivo, chamo as famílias para uma reunião e explico minha forma de trabalhar”, elucida Maria Gabriela.
Segundo a educadora, a forma como aprendemos no passado foi importante para chegar ao momento que vivemos hoje, porém, a humanidade teve avanços em suas relações sociais. “Mas, e na educação, devemos ficar parados no nosso tempo antigo?”, questiona. Esse pensamento vai ao encontro da reflexão que faz Mirian Cèlia Castellain Guebert, pedagoga, especialista em educação especial, doutora em educação, história, política e sociedade, professora do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Políticas Públicas da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e do curso de pedagogia da PUCPR, sobre a relação da educação com a sociedade. “A escola e a sociedade estão sempre em articulação, em comunicação, em colaboração. Isso faz com que essa educação reflita na sociedade ao mesmo tempo que a escola reflete os processos educativos”, comenta Mirian. Por outro lado, ela pondera que o discurso de que o ‘antigo é ruim’ não é verdadeiro. “Há um avanço na compreensão de como as pessoas aprendem e como a sociedade se desenvolve, enquanto a escola vai acompanhando esse movimento.”
Os relatos da professora Maria Gabriela, de cobranças por um lecionar conteudista e, muitas vezes, sem a liberdade de explorar o diferente e criar, contraria o que se espera de uma formação humana e cidadã. A pedagoga Mirian se apoia no sociólogo Raymond Williams para caracterizar essa formação como uma experiência de conhecimento relacionada às situações vivenciadas pelos alunos, que são pensadas e ressignificadas para experimentar algo prático e expressar novas aprendizagens.
De acordo com Fontoura, mestre em educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), docente, pesquisador e extensionista na área da didática no campus de Três Lagoas da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), também é possível se apoiar em Paulo Freire para entender que uma educação humana e cidadã garante que as pessoas compreendam quem são, como são e transformem para melhor as relações entre os próprios humanos. No entanto, para que isso aconteça, ou seja, para que se conecte teoria e prática, no contexto brasileiro, Fontoura lembra a necessidade primeira de uma boa formação de professores e de melhorar a qualidade das escolas. “Por exemplo: ainda não conseguiram universalizar a presença da biblioteca. Como é que uma escola humaniza e encaminha as pessoas para o exercício crítico da cidadania sem ter esse espaço fundamental para a formação cidadã que é a biblioteca?”, questiona o pesquisador.
Ainda sobre a prática, ele argumenta que, do ponto de vista da educação, formal ou não, as práticas pedagógicas se guiam pela humanização, o que se diferencia são os objetivos dos projetos de cada instituição, que estão mais afeitos a uma perspectiva humanizadora ou não. Nessa relação intencional de objetivo, metodologia, avaliação, ensino e aprendizagem que o professor desenvolve, Fontoura exemplifica situações que poderiam ser desenvolvidas.
“Nos anos finais do ensino fundamental é possível abordar o eixo trabalho. A escola pode ouvir os trabalhadores do seu entorno, entender quais são as suas dificuldades, as suas rotinas e as suas reivindicações. E isso mobilizaria o currículo da língua portuguesa à química. Para os anos iniciais, vale trazer as memórias das pessoas da comunidade, fazer com que venham até a escola contar como era o bairro no passado, quais são as conquistas e o que ainda precisa ser feito”, indica.
No ensino médio, o professor pode usar o cinema na escola. “Com filmes trabalhados não para ocupar o tempo das turmas, mas para mobilizar conteúdos curriculares de várias disciplinas, começando pela história política do Brasil… principalmente após a recente tentativa de negar elementos da história social do país. Por fim, na educação infantil, há projetos didáticos que mobilizam as crianças para lidar com as diferenças e aprender a respeitá-las. [Tudo isso] é trabalho de formação humana”, descreve Fontoura.
Guilherme Falcão Porto é professor de ciências e biologia da rede pública no município de Santa Lúcia, SP. Atuando principalmente nos anos iniciais e finais, ele conta que a liberdade pedagógica e a autonomia para desenvolver atividades em sala de aula sempre estiveram guiadas pela exigência de um projeto vinculado ao currículo paulista. “Sei de relatos de colegas que vivem muitas cobranças nesse contexto, mas fui privilegiado. Há uma expectativa sobre o desempenho na Prova Brasil, no Saresp, mas sempre encontrei espaço para chegar às crianças pelo lúdico ou por outro meio necessário”, conta Guilherme.
Em sua passagem pelo ensino integral, o professor desenvolveu com seus alunos um jornal da escola para as disciplinas eletivas de jornalismo e tecnologia, que também teve a participação da professora de português. “A gente criou uma área de imprensa, fizemos uma cobertura dos Jogos Abertos da região, em que as alunas puderem entrevistar quem estava participando, adicionamos curiosidades sobre ciências, esporte, Copa do Mundo Feminina, etc.”, resume.
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Mas o projeto, segundo ele, foi elaborado a partir de várias etapas que olhavam diretamente para a formação cidadã dos estudantes. “Nós começamos a eletiva procurando colunista, então os ‘contratamos’ e passamos a estimular entre eles o senso crítico, a investigação científica, a leitura, a interpretação de texto e todos os elementos do universo jornalístico que era possível trabalhar dentro da escola”, completa Guilherme. Ainda na perspectiva da liberdade pedagógica, ele lembra das aulas em que os alunos produziram sabonetes e fizeram folhas de papel com a planta espada-de-são-jorge. “Essas vivências, que fogem dos materiais didáticos e instrumentos que engessam a criatividade do professor, são um privilégio”, acredita.
A pedagoga Mirian Cèlia Castellain Guebert afirma que a falta de liberdade que alguns educadores enfrentam e a quantidade excessiva de técnicas que provocam a instrumentalização dos professores, “com estratégias e recursos que são, no ponto de vista da formação do pensamento, política e cultura da escola, são perfumarias. Então, não adianta ter uma sala de aula com os processos mais desenvolvidos tecnologicamente e o professor não fazer o aluno pensar”. Mirian complementa que, muitas vezes, se tem acesso a muita informação, mas sem criticar ou aprimorar um determinado conceito, sem contextualizar, criar argumentos e se posicionar. “Esse é um aspecto bastante negativo da instrumentalização ou [do excesso] de técnicas, porque passa a ideia de que são esses recursos tecnológicos que enriquecem o processo do pensamento”, alerta.
Maria Clara de Paula Leite Bossetto, professora de literatura no ensino médio e coordenadora da área de língua portuguesa do 9º ano do ensino fundamental ao 3º ano do ensino médio no Colégio COC Vila Yara, em Osasco, SP, acredita que a educação básica brasileira ainda está voltada às cobranças das mais variadas naturezas, como números, metas e resultados. “Talvez, um dos grandes responsáveis por isso ainda seja o ingresso no ensino superior desenhado, prioritariamente, sob esse viés. Mesmo as escolas que dizem não ter o vestibular como objetivo final, estabelecem suas metas e cobranças burocráticas”.
Ainda assim, ao longo dos mais de 30 anos de docência, Maria Clara revela que encontrou incentivo para práticas autônomas e metodologias diversas em sala de aula. E no contexto da busca por uma formação cidadã e humana, ela diz que é essencial priorizar práticas que promovam não apenas o conhecimento acadêmico, mas também o desenvolvimento integral dos indivíduos.
“Como educadores e coordenadores, temos a responsabilidade de criar ambientes de aprendizado que valorizem não apenas o intelecto, mas também a ética, a empatia, a troca de experiências (positivas ou não) e a colaboração. É fundamental cultivar o diálogo aberto, no qual as ideias são debatidas de forma construtiva, sem julgamentos ou preconceitos”, diz.
Na Escola Vera Cruz, que tem unidades de ensino infantil, fundamental e médio em São Paulo, a diretora pedagógica Regina Scarpa conta que esse diálogo é fomentado desde a formação dos professores. “Toda semana nos reunimos para discutir não apenas as questões curriculares das áreas do conhecimento e as expectativas de aprendizagem, mas também os valores nos quais acreditamos e a formação para uma consciência ética no ambiente escolar.” Ainda entre os diferenciais no tratamento dos educadores com as turmas está o trabalho de orientação por toda a jornada do indivíduo e o acompanhamento de sua evolução. “Nós cuidamos das questões pedagógicas e educacionais a partir do trabalho de um corpo técnico de orientadores que interagem com os alunos e suas famílias. Porque a gente acredita que, para colocar uma educação cidadã em prática, as subjetividades precisam ser vistas, a gente tem de saber como está a relação do aluno com o conhecimento, com os colegas e com ele mesmo”, explica Regina.
Na perspectiva das subjetividades, é necessário abordar também as diferenças. Conforme afirma o docente e pesquisador Fontoura, a educação cidadã é aquela que prepara as pessoas para o enfrentamento das mazelas, como a má distribuição de renda e o racismo. Existe na Escola Vera Cruz o Projeto para as Relações Étnico-Raciais, iniciativa referência e que adota uma pedagogia antirracista para todas as turmas com oferta de bolsas de estudo para alunos pretos, pardos e indígenas. “Além dessa política afirmativa para os estudantes, temos outra de contratação de professores e gestores negros ou indígenas. Hoje esse número é de 25%, mas ainda falta bastante”, conclui Regina.
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A educação cidadã parte da ideia de que as pessoas são diversas, aprendem de maneiras variadas, sem se prender a receitas únicas para o fazer docente. Diante disso, a diretora pedagógica do Vera Cruz, Regina Scarpa, acredita que estabelecer diferentes agrupamentos em sala de aula é uma metodologia eficaz. “É possível partir de alguns critérios, por exemplo, uma hora o professor propõe atividades com alunos em níveis próximos de conhecimento e, em outro momento, coloca os que vão melhor ao lado dos que precisam de ajuda”, pontua.
Maria Clara Bosseto, professora no Colégio COC Vila Yara, por sua vez, sugere a prática de fóruns de discussão com a comunidade escolar e o incentivo à formação de grêmios estudantis. “Analisar a escola da qual eles, alunos, fazem parte, levantar aspectos positivos e negativos, além de construir propostas de intervenção são excelentes exercícios de cidadania.”
Por fim, na Escola Vera Cruz, no contexto do ensino de cultura afro-brasileira há a revista Zumzum, que existe desde 2022 e se apresenta como a ‘revista de educação antirracista do Vera’, cuja instituição mostra os trabalhos que cada turma tem desenvolvido sobre a pauta.
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Revista Educação: referência há 28 anos em reportagens jornalísticas e artigos exclusivos para profissionais da educação básica
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