É professor de Língua Portuguesa e orientador educacional
Publicado em 26/03/2024
Se os diálogos não forem saudáveis, teremos estudantes birrentos, autocentrados, mimados e egoístas
As crianças e os adolescentes são excelentes observadores da vida adulta. Buscam, nessa observação, compreender melhor o mundo, para, com segurança, escolher um jeito próprio de viver.
O fato de os jovens serem bons espectadores não significa que sejam esponjas porosas prontas para absorver tudo o que lhes é proposto e ensinado. A moçada é também excelente espreitadora crítica dos mais maduros. E está pronta também para questioná-los na tentativa de impor alguma novidade provocadora. Entretanto, de modo geral, são sempre bons intérpretes dos adultos e normalmente não deixam de perceber a divergência do que está sendo proposto na teoria com o que está sendo praticado na lida diária.
Por isso, cabe aos adultos educadores (todos o são) uma autorreflexão sobre a solidez de suas práticas e sobre a congruência entre o que se preconiza com o que se realiza de verdade, ainda que a garotada não compre tudo o que pais e professores lhe apresentam como ‘verdade absoluta’.
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Não há dúvida de que a família e a escola são ainda dois sustentáculos fortes de reprodução social. Digo ainda, porque as redes sociais vêm ganhando espaços inimagináveis como instrumentos de formação de crianças e adolescentes. Mas ambas, família e escola, por serem basilares, instruem, formam e deformam os jovens. E, ao contrário do que se pensa por aí, a discordância entre essas duas instituições é interessante e até desejável, porque gera um espaço bom de conflito saudável para que os educandos possam criar para si algum senso crítico razoável e independente. Ou aquilo a que se chama de autonomia possível.
Creio que nem professores nem pais consistentes desejam que os alunos e os filhos sejam reprodutores cegos da vida dos adultos, prontos a repetir o passado com seus acertos e erros a despeito de um mundo que gira, roda e muda.
Todavia, uma comunidade educativa deve cumprir sua função, que é oferecer aos jovens instrumentos para atuar no mundo com competência, ética e altruísmo. E para compreender que vivem em uma sociedade da qual dependem e que também depende deles para funcionar de forma justa, tranquila e duradoura. Isso é inegociável em qualquer processo educativo sério.
As guerras, as mudanças climáticas, as epidemias, os desempregos, as reciclagens, os esgotamentos dos recursos naturais comprovam a necessidade de uma aprendizagem que vise à convivência coletiva. Se a função não for essa, vislumbra-se uma derrocada grotesca da educação em casa e nos colégios.
Para encampar esse desafio educativo de lutar contra as ameaças que podem fraturar o coletivo e a convivência em nosso planeta, a relação harmoniosa entre pais e escola é necessária e bem-vinda, porém se a discordância não for saudável (e, por vezes, não vem sendo), teremos jovens birrentos, autocentrados, mimados e egoístas buscando a escola como trampolim para se dar bem na vida e para ser bem-sucedidos — seja lá qual for a direção da trajetória individualista que possam trilhar.
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Entende-se por discordância saudável aquela que não se incomoda com o contraditório nem impõe carteiradas aos professores quando o que se discute em aula e nos corredores caminha em direção oposta ao que se é ensinado em casa. Ideologias conflitantes que não desrespeitam os direitos humanos são salutares e fornecem àqueles que estão descobrindo a vida um percurso cheio de bifurcações estimulantes.
Algumas famílias, talvez temerosas da própria inconsistência, temem opiniões contrárias às suas e se rebelam contra a escola, esperando que professores rezem na mesma cartilha ideológica. Creem que os alunos sofrem, entre os muros da escola e na rotina escolar, alguma ‘lavagem cerebral’. Subestimam a capacidade dos jovens de analisar, de abraçar e de refutar o que lhes é ensinado, no colégio e também em casa.
Além disso, não é incomum pais atravessarem os filhos no afã de lhes proteger das frustrações diárias, como se isso fosse possível, ligando para a escola para determinar onde e perto de quem a criança vai se sentar nas turmas. Sob a ideia equivocada de zelo, há uma sobreposição da vida dos responsáveis sobre a dos jovens. Sem contar o perigoso discurso de desejar que os filhos sejam felizes. Ora, é mais fácil conseguir uma vaga na universidade e curso mais concorrido do que ser feliz vida afora. Não percebem os genitores que o peso de ser feliz é o grande responsável pela enxurrada de dor e de tristeza da meninada que vive a carregar pedra na busca sisífica de atingir o inalcançável projetado pelos protegedores.
Nessa toada de inconsistência, professores e coordenadores aplicam na escola a teoria da ‘pedagogia positiva do acolhimento’, que consiste basicamente em não constranger ou incomodar o aluno; evitando-se, assim, apontar seus erros acadêmicos, procedimentais e relacionais. Cheios de dedos e receios, primeiro os educadores inventam um elogio qualquer e depois buscam caminhos tortuosos para endireitar o que não está adequado ou correto. Evidentemente, mais infantilizam do que contribuem para o refazer condutas — outra tarefa de Sísifo que a vida nos cobra.
Um indivíduo minimamente maduro compreende que negatividade e insatisfação são fundamentais para a reconstrução da vida adulta. Mimados negativos sentam, choram e reclamam. Maduros insatisfeitos buscam transformações e contribuições para mudar o estado das coisas. Não há dúvida de que as contradições, os fracassos e os momentos de dor e de desespero nos ensinam bem mais do que o sucesso fácil preparado em chão macio e fantasioso.
Negar metodicamente a contradição e a negatividade na experiência da formação e não buscar a conciliação dos acordos coletivos que visem a transformações sociais e ao bem comum não só são os caminhos maciços para retardar o amadurecimento dos jovens como também são a trajetória mais consistente para transformar a rotina escolar em um espetáculo farsesco e perigoso.
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