Alexandre Le Voci Sayad é jornalista, educador e escritor. Mestre em inteligência artificial e ética pela PUC-SP e apresentador do Idade Mídia (Canal Futura)
Publicado em 11/10/2023
Lei inglesa de segurança online entra em vigor ainda este ano com punições financeiras e criminais às empresas de tecnologia. Proposta é “tolerância zero, e as crianças em primeiro lugar”
Após desenvolver um sistema público de comunicação referência em todo o mundo (a BBC, British Broadcast Company), e também se colocar na vanguarda no controle social de programação, agora a Inglaterra está voltando de vez suas políticas ao universo digital e algorítmico. Ao que parece, a ilha está determinada a tornar-se pioneira em uma legislação mais rígida no que diz respeito à proteção das crianças nas redes sociais.
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Podemos entender como ‘rigidez’ não só o poder de coibição, investigação, perseguição, incriminação e prisão a quem gerar conteúdos que violem os direitos das crianças; a Online Safety Bill, que entrará em vigor ainda este ano, se consolida na base de um artigo de lei de proteção à infância de 1989 — que, por sua vez, foi validado com o mesmo peso e rigor no universo digital há alguns anos. Na prática, é uma lei que se desenvolve e se aprimora no processo de sua estruturação — um conceito conhecido como ‘by design’.
No Brasil, o excesso de fisiologismo político impede que os próprios projetos de lei sejam desenvolvidos também ‘by design’, e acabam por incorporar exigências e demandas que os transformam em ‘jabutis’, distante da ideia inicial. De certa maneira, é o que presenciamos com o PL 2630. A lei poderia, juntamente com o marco civil da internet e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, compor uma tríade promissora na garantia de direitos dos brasileiros — afinal, as transformações no mundo digital e seus impactos na educação exigem celeridade nas legislações. Na prática, o PL 2630 caminha para se tornar um símbolo de gasto público inócuo.
O que está em jogo na Online Safety Bill são punições financeiras e criminais sem precedentes às empresas de tecnologia que não retirarem imediatamente conteúdos que estimulem ou provoquem ações de bullying, assédio ou desrespeite leis comerciais relativas às crianças e também adultos. As chamadas ‘big techs’ já estão se mexendo, porque o ônus será inteiramente delas: terão que alterar interfaces, algoritmos e ações de marketing digital que coloquem as crianças como alvo. O TikTok já modificou a programação de alguns serviços oferecidos às crianças, o Google habilitou novos controles parentais e o Facebook reforçou as camadas de proteção contra identidades falsas de usuários. O YouTube, por sua vez, desativou o ‘autoplay’ em contas de menores de 18 anos.
A ideia do projeto de lei, que nasceu no Ministério de Ciências e Tecnologia e passou por diversas consultas públicas antes de chegar à aprovação no Parlamento inglês, é “tolerância zero e as crianças em primeiro lugar”.
Um dos pontos que geraram mais controvérsias na lei é o que obriga que sites com material pornográfico garantam que seus conteúdos não cheguem a crianças e adolescentes. Desde 2019, o governo britânico tenta requerer algum tipo de controle de idade para quem acessa conteúdo pornográfico, mas a questão da privacidade de dados tem sido um entrave para se exigir dados como identidade, ou outro documento. Há alguns sistemas em desenvolvimento e há um prazo para que sejam instalados.
No caso de material inadequado compartilhado em redes sociais como TikTok e Instagram, a lei exige uma camada especial de proteção nos buscadores quando crianças forem os usuários. Esse é também um ponto polêmico porque algumas empresas de tecnologia tendem a se defender abertamente como apenas ‘fóruns de compartilhamento’ e não produtoras de conteúdo, se esquivando de responsabilidades. Em outras esferas, a Online Safety Bill tratou de atualizar legislações anteriores e deixá-las mais severas, por exemplo, aquela que define punição a quem compartilhar conteúdo íntimo sem consentimento dos envolvidos.
Todo o debate global sobre como o universo digital impacta a qualidade de vida e os direitos das crianças e adolescentes estimulou também pesquisas no meio acadêmico da Inglaterra. Uma das mais ativas e influentes pesquisadoras da London School of Economics (LSE), Sonia Livingstone, tem se dedicado a desenvolver técnicas de design de produtos digitais que, durante o processo, garantam os direitos das crianças. O princípio do ‘by design’ mais uma vez é aplicado, ou seja, acertar pontos durante o processo de desenvolvimento é mais eficaz do que consertar o produto já pronto.
Sonia, que é membro da Comissão de Futuros Digitais, acaba de lançar um guia prático para que o cotidiano, acesso e direito das crianças sejam garantidos nos produtos digitais. A ideia é que os modelos de negócios baseados em dados, que regem a economia digital, passem a dedicar aos usuários menores de 18 anos uma proteção especial.
São 11 os princípios do Children rights by design:
1. Equidade e diversidade;
2. Interesse das crianças em primeiro lugar;
3. Escuta às crianças durante o processo;
4. Adequação do produto às idades adequadas;
5. Responsabilidade com a legislação;
6. Participação das crianças no processo;
7. Respeito à privacidade de dados;
8. Respeito à segurança online;
9. Respeito ao bem-estar das crianças;
10. Atenção ao aprendizado e imaginação;
11. Ação contra o consumismo exagerado.
O aprofundamento de todos os pontos foi disponibilizado em forma de guias e infográficos para desenvolvedores e executivos de empresas. A criadora insiste para que as tabelas sejam fixas nas paredes de quem cria sites, algoritmos e outros produtos e sirvam como um mantra para esses desenvolvimentos. De fato, os ‘think tanks’ ingleses têm experiência e conhecimento de sobra para compartilhar com países como o nosso — no cenário internacional, a vaga para ‘párias digitais’ está vacante; é questão de tempo para alguém ocupá-la.