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Adeus à nossa queridíssima Emilia Ferreiro

Por Sônia Barreira*: – Señores, yo no soy una cantante! Incrédula com as mais de 800 pessoas que lotaram o auditório do Teatro Sérgio Cardoso naquela noite, Emília Ferreiro deixou claro, com essa frase, seu espanto e incômodo com a popularidade súbita que alcançara no […]

Publicado em 28/08/2023

por Redação revista Educação

Por Sônia Barreira*: – Señores, yo no soy una cantante!

Incrédula com as mais de 800 pessoas que lotaram o auditório do Teatro Sérgio Cardoso naquela noite, Emília Ferreiro deixou claro, com essa frase, seu espanto e incômodo com a popularidade súbita que alcançara no Brasil, em meados dos anos 80.

Habituada aos espaços acadêmicos, aos ambientes de congressos e debates teóricos, demorou um pouco para acostumar-se à fama absoluta que alcançou entre as professoras e professores brasileiros. Muito maior do que a de muitos “cantantes”, para nós, educadores, ela foi rapidamente do desconhecimento (como a maioria dos pesquisadores acadêmicos) à intimidade, como uma conhecida de longa data. De “Dra. Ferreiro” à Emilia, sem nenhuma cerimônia.


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E como isso aconteceu?

Seu livro, a Psicogênese da língua escrita, quando publicado por aqui, já havia sido devorado por professores e estudiosos do processo de alfabetização ainda na versão em espanhol, em xerox que passou de mão em mão, de escola em escola. Para os leitores iniciais, o efeito foi imediato. O resultado das pesquisas de Ferreiro e Teberosky produziram a experiência do desvelamento, seguido de encantamento. De leitores, passaram a ser divulgadores em grupos de estudos, cursos, reuniões pedagógicas e outros inúmeros eventos que ajudaram a transformar essa pesquisa acadêmica na “bíblia da alfabetização”, antes mesmo de sua versão em português alcançar as livrarias.

A primeira e mais forte razão para o alastramento sem igual dessas pesquisas iniciais entre os professores brasileiros foi o fato inconteste delas oferecerem explicações sólidas para fenômenos fartamente conhecidos por todos nas salas de aula: a “escrita espelhada”, as palavras “faltando letras”, o “alfabetizar-se sozinho”, o “fingir que está lendo”, a “pseudoleitura”, o “escrever com letras aleatórias”, a aparente resistência à aprendizagem da ortografia… Tudo isso pode ser compreendido! Tanto sua existência quanto a resistência aos métodos usuais.

Para além de explicações plausíveis, as conclusões apresentadas no livro tornaram as práticas dominantes de ensino da escrita amplamente questionáveis. “Ler não é decifrar, escrever não é copiar”. Essa frase célebre de Emilia Ferreiro tornou-se um mantra poderoso no combate às abordagens mecânicas da escola, que reduziam a escrita a um código e sua aprendizagem a um mero treinamento.

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Processo de aprendizagem

Para os professores, do chão da escola, finalmente o que viam em sala de aula cotidianamente passou a fazer sentido. O fracasso escolar poderia ser combatido por eles com as armas do conhecimento. Esta foi a segunda razão fundamental para o sucesso desses conhecimentos e, consequentemente, para a fama de suas autoras: o fortalecimento do professor.

A articulação entre o conhecimento acadêmico e a sala de aula finalmente tornou-se acessível aos professores. E devolveu a esta categoria profissional desacreditada e desprestigiada socialmente a autoestima suficiente para retomarem práticas de estudo, formação continuada e atividade intelectual. A capacidade de tomar decisões fundamentadas em sala de aula vinha sendo atacada sistematicamente pelo boom dos sistemas de ensino, cuja principal premissa é o professor como reprodutor de uma prática guiada pelo material didático. O acesso à Psicogênese da língua escrita deu então ao professor alfabetizador uma teoria para compreender, impulsionar e fundamentar a mudança de seu fazer.

Emilia Ferreiro (1937-2023)
Foto: Gustavo Morita/Revista Educação

O séquito de admiradores formado nos anos 80 foi engrossado nas décadas seguintes e novas publicações, pesquisas, palestras e debates protagonizados por esta brilhante pesquisadora seguiram sendo devorados pelos atores do setor educacional. Por meio dessa farta produção acadêmica, os ensinamentos piagetianos, densos e de difícil assimilação, ganharam, neste contexto, maior divulgação e fortaleceram a ideia da criança como sujeito ativo de sua aprendizagem.

“Por trás da mão que escreve, dos olhos que veem, há uma cabeça que pensa” foi outra frase importante dela, que virou outro mantra repetido à exaustão. Foram ideias que ajudaram professores e familiares a reconhecerem a capacidade das crianças, sua inteligência ousada e a curiosidade inquieta que as leva a pensar e aprender, sem pedir licença ou esperar autorização.

Ensinamentos

Assim, revolucionando os paradigmas da alfabetização, Emília Ferreiro ajudou a mudar o lugar do aluno e do professor nesse processo e a superar a querela dos métodos, jogando luz aos processos de aprendizagem e não ao ensino em si.

Seu compromisso maior foi com a diminuição da injustiça social e das desigualdades de oportunidades que deixam de fora justamente aqueles que mais precisam da escola, as crianças mais pobres. Suas preocupações recaiam sempre sobre a escola pública e seus desafios.

Suas muitas vindas ao Brasil nunca foram para desfrutar da incômoda, mas inevitável fama, e sim para travar a batalha com o que lhe trazia grande pesar: o fracasso escolar e o analfabetismo. Perdemos um grande intelectual e também a maior militante pelo direito à alfabetização. Perdemos uma amiga querida.

*Sônia Barreira é diretora pedagógica da Bahema Educação e fundadora da Escola da Vila

Escute nosso episódio de podcast:

Autor

Redação revista Educação


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