Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)
Publicado em 28/03/2023
São Gabriel da Cachoeira, 29 de janeiro de 2043
Darcy traduzira “tudo o que o Brasil poderia ser e ainda não era”. A escrita de O povo brasileiro, reflexo do convívio com as comunidades do Xingu, era uma mistura de experiências colhidas num criativo caldo cultural, num enorme e sincrético potencial de humanização, que foi historicamente “entravado pela medíocre classe dominante, que impedia o desenvolvimento da civilização brasileira”.
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Imigrado no Hemisfério Sul, português herdeiro de um peculiar cosmopolitismo horizontal, eu passei longas temporadas entre os Xavante, Tupinambá e Pataxó. Visitei culturas pré-colombianas, como os Mapuche do sul do Chile. Reaprendi a aprender, a descolonizar a mente, a mitigar um etnocentrismo, que me impedia de compreender Darcy.
Adentrei a Amazônia, a partir da Boca do Acre. Viajei a partir de Santarém. Mas a incursão que me levou ao seu extremo foi aquela que me mostrou que, após cinco séculos, o genocídio dos povos originários não cessara. A Amazônia contida nas representações paulistanas ou brasilienses não correspondia à realidade que eu observara – a Amazônia era uma ilustre desconhecida dos brasileiros.
As escolas que por lá encontrei eram armazéns de crianças, em que imperava o modelo educacional lancasteriano, que Bolívar e Santander tinham introduzido em Nova Granada, no início do século 19. Apesar de algumas ‘adaptações’ – pois já não eram utilizadas as videoaulas enviadas de Manaus –, garimpeiros, pastores e professores completavam a destruição de culturas milenares.
A obra de Cândido Rondon não fora suficiente para obstar à cobiça e à maldade humana. Proliferavam variantes escravocratas e réplicas do rapto das seringueiras, cujas sementes migraram para a Malásia. E bastou que bonsais humanos chegassem ao poder, para que grandes laboratórios multinacionais se apropriassem de curadoras misturas de ervas, para que o que restava da cultura de povos sem propriedade privada fosse transformada em mercadoria, e para que a Amazônia remota fosse transformada em terra de ninguém.
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Os indígenas ficavam abandonados à sua sorte, transformados em peças de caça do agronegócio, de madeireiros e garimpeiros. Ao longo de quatro anos, o rebaixamento moral e ético aliou-se a extremismos de uma direita fascizante. E as imagens da tragédia humanitária dos indígenas Yanomami correram o mundo, expondo as chagas da ideologia do descarte de indesejáveis.
Faz, agora, 20 anos que a sociedade brasileira despertou para a dura realidade de uma tragédia há muito anunciada. Com o cessar de tempos sombrios, os brasileiros começaram a tomar consciência da dimensão da catástrofe. Nos idos de 23, os primeiros contatos escancaram a dimensão de uma crise causada pela corrupção generalizada, por interesses escusos, pela boçalidade dos políticos e a ignorância daquilo que ocorria no norte do território.
Da pauta da transição governamental de 22 constava a proteção das comunidades de povos originários. Mas quem as protegeria de uma escola alheia às suas culturas e necessidades? Aquilo que eu vira nessas comunidades fora a prática de um modelo educacional desumanizador, a que eram colados ‘projetos de inclusão social’ e paliativos instrucionistas.
A sobralização do ministério viria a mostrar-se incapaz de reverter a trágica situação. Entretanto, dei conta de que algo esperançoso acontecia. Discretamente, à margem do desgoverno educacional, havia quem tivesse consciência da necessidade de trocar o nortear sobralense pelo suliar freiriano.