NOTÍCIA
O centenário de nascimento de um dos maiores intelectuais brasileiros é uma boa oportunidade para repensar o Brasil, seus sonhos, derrotas e vocação como país
Publicado em 29/09/2022
“Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, em vão. Tentei fazer uma universidade séria, desde a sua base, fracassei. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente – e fracassei. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem venceu.”
Esta é a mais conhecida declaração feita por Darcy Ribeiro. É, na verdade, uma compilação adaptada de seu histórico discurso na Universidade de Sorbonne, quando, em 1978, recebeu o título de doutor honoris causa da conceituada instituição francesa. A perenidade dessa retórica se destaca, apesar do tom sombrio, sem falsa humildade ou autocomiseração, por elencar, de forma engenhosa, algumas das grandes obras perpetradas (e não concluídas inteiramente) por um dos maiores pensadores, educadores e políticos brasileiros.
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O centenário de nascimento desse cidadão do mundo nascido em Montes Claros, em Minas Gerais, se completa neste 26 de outubro. Partiu em 17 de fevereiro de 1997, vítima de câncer, deixando um legado que nem seus inimigos e detratores podem ousar chamar de fracasso. Dentre as múltiplas atividades que encampou, sempre de forma superlativa, estão a de antropólogo, historiador, sociólogo, romancista, etnólogo, indigenista, professor, idealizador e primeiro reitor da Universidade de Brasília (UnB), membro da Academia Brasileira de Letras, ministro da Educação do governo parlamentarista que sucedeu a Jânio Quadros, chefe da Casa Civil no governo João Goulart, secretário de Estado da Cultura e coordenador do Programa Especial de Educação do Rio de Janeiro (na gestão Leonel Brizola) e senador da República. Darcy foi um gigante, e isso é uma constatação.
Além da UnB (e da Universidade Estadual do Norte Fluminense), deixou heranças monumentais, como o Parque Nacional do Xingu, pensado e implantado junto com os igualmente lendários irmãos Villas-Bôas. Quando secretário de Brizola, criou também a Biblioteca Pública Estadual, a Casa França-Brasil, a Casa Laura Alvim. Contribuiu para o tombamento de 98 quilômetros de belíssimas praias e encostas, além de mais de mil casas do Rio antigo. Convidou Oscar Niemeyer para projetar o sambódromo da Marquês de Sapucaí, estrutura sob a qual foram instaladas 200 salas de aula, hoje desativadas. O sambódromo, posteriormente, recebeu o nome de Passarela do Samba Professor Darcy Ribeiro.
Seu trabalho no MEC o levou a ser convidado a participar de reformas universitárias no Chile (sob Salvador Allende), Peru (de Velasco Alvarado), Venezuela, México e Uruguai, depois de deixar o Brasil, cassado e expulso pela ditadura militar de 1964. Escreveu nesse período os cinco primeiros volumes dos Estudos de Antropologia da Civilização (O processo civilizatório, As Américas e a civilização, O dilema da América Latina, Os brasileiros: Teoria do Brasil e Os índios e a civilização), livros que atingiram mais de 90 edições em diversas traduções. A essa coleção viria se somar (e encerrar o sexteto) O Povo Brasileiro, publicado em 1995 e desde sempre fonte de consulta obrigatória sobre a identidade nacional.
Foi responsável pela criação e pelo projeto cultural do Memorial da América Latina, centro cultural, político e de lazer, inaugurado em 1989, em São Paulo, assim como articulou o projeto de lei que deu origem à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, sancionada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1996. A LDB, então, recebeu o nome de Lei Darcy Ribeiro.
Mas o que deveria ser sua maior façanha remonta ao lamento indignado do discurso em Sorbonne. Os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) hoje não mais existem, fora escombros. Aí, sim, uma derrota – segundo o próprio Darcy, resultado da perversão do Brasil: “Nosso país é enfermo de desigualdade, de brutalidade, de perversidade. Escravocrata”.
O desmonte dos CIEPs foi um massacre cuja vítima maior foi o pensamento pedagógico mais inclusivo, audacioso, responsável e idealista da melhor geração de educadores deste país. Houvesse na educação brasileira uma Santíssima Trindade, seria composta por Paulo Freire, Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro. Amém. Contemporâneos, sonharam juntos uma escola universal, integral, democrática, acolhedora e, sim, libertária. Uma sala de aula de onde sairiam cidadãos letrados, críticos e bem alimentados de corpo e alma. Uma utopia.
Sim, Darcy era, sobretudo, um utópico assumido (“por todos os lados, de cima a embaixo”). Muito mais que a acidez nas falas, a coragem nos enfrentamentos aos poderosos, a resiliência diante de inimigos, a firmeza no isolamento (ficou nove meses preso, em 1968), Darcy Ribeiro era um homem movido a utopia – que ele resumia, enfaticamente, assim: “emprego para todos, comida na mesa e criança na escola”.
”Utopia (na sua origem etimológica, ‘em lugar nenhum’, ‘que não existe’) é inventar o país que você quer.” E os CIEPs eram o alicerce dessa nação. O conceito dessa base é de uma obviedade até hoje constrangedora: o ensino de crianças e jovens tem de ser integral, assim como o comprometimento de todos os profissionais envolvidos.
E o projeto pedagógico de Darcy (considerado por muitos como visionário e revolucionário) previa assistência das 8 da manhã às 5 da tarde, com atividades escolares regulares, horários para reforço, educação física, iniciação esportiva, projetos culturais, aulas de música, artes plásticas e teatro. O básico, incluídas todas as refeições do período (café da manhã, lanche da manhã, almoço, lanche da tarde e jantar).
Foram implementados 500 CIEPs durante o governo Brizola. O projeto arquitetônico ficou a cargo do companheiro de sempre, Oscar Niemeyer, e era concebido em módulos pré-fabricados, o que barateava o custo final da obra. Dali, nenhuma criança sairia sem “ler, escrever e contar”.
Os críticos e futuros desmanteladores dessas unidades alegavam que o custo de manutenção era muito alto. De fato, eram. “Se os governantes não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios”, rebatia Darcy. Dessa época, Darcy só lamentava ter desapropriado, para erguer as escolas, “muitos terrenos que eram usados como campo de pelada na periferia. Eu me arrependo”.
“A escola pública é desonesta, feita para os 20% de classe média e que abandona os 80% de pobres.” Nesse modelo, são despejados das escolas milhares de semiletrados, analfabetos funcionais e gente despreparada para o mercado de trabalho e para a própria cidadania. Não faltam exames, testes e avaliações nacionais e internacionais que comprovam que esse descaso governamental é o responsável pelo fracasso como nação.
De acordo com o Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp), 96,6% dos alunos da rede estadual paulista concluíram o ano letivo de 2021 com desempenho abaixo do adequado em matemática. Alunos do 3º ano do ensino médio apresentaram nota de proficiência adequada à de um estudante de 7º ano do ensino fundamental, uma defasagem de quase seis anos. “A crise educacional no Brasil não é uma crise, é um projeto”, eis outro lema de Darcy. Impossível discordar.
O esforço pelo ensino público integral não foi de todo abandonado. Ainda há governos que trabalham, de maneira esporádica, por escolas que atendam a esse objetivo. A gestão Marta Suplicy, quando ainda no Partido dos Trabalhadores, no início deste século, construiu 200 CEUs (Centros Educacionais Unificados) e deixou 24 planejados, por exemplo. Mudou o nome, esse vício da política brasileira, mas estava lá o pensamento de Darcy. Governos estaduais, pontualmente, investem em unidades de ensino com horários estendidos. Mas nenhum deles carrega o sonho de tornar escolas a principal referência arquitetônica e comunitária em seus bairros e cidades.
No ideário de Darcy Ribeiro, desenvolvimentista e nacionalista, grandiosa também era sua paixão pelo povo brasileiro, que ele colocava em uma perspectiva maior, de uma identidade latino-americana, visão que influenciou diversos estudiosos do século 20. Essa leitura começa em 1946, após formar-se em antropologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo. O início de sua vida profissional foi dedicado ao estudo dos indígenas do Pantanal, do Brasil Central e da Amazônia. Foi um mergulho profundo. Etnólogo do Serviço de Proteção aos Índios (atual Funai), entrou em contato com dezenas de povos indígenas, escreveu uma vasta obra etnográfica e fundou o Museu do Índio, do qual foi diretor.
Essa vivência despertou a inquietude que forjaria em Darcy o entendimento de que o Brasil é vocacionado a ser “uma nova Roma, lavada em sangue índio, lavada em sangue negro”. Essa grandiloquência se sustenta na convicção de que, apesar de uma imensa diversidade, temos uma unidade nacional cultural, a qual se baseia, justamente, na mistura de raças, origens e lutas incessantes.
A colonização, o longo período escravocrata, a industrialização com a mão de obra imigrante europeia, a urbanização desenfreada e caótica, a globalização selvagem a que o país foi submetido, os golpes institucionais sofridos, as rupturas na democracia ainda claudicante, nenhuma dessas contínuas adversidades foi capaz de anular a cultura brasileira única, resultante de vários processos de miscigenação e de progressos civilizatórios. Civilização, à brasileira, que começou há mais de dez mil anos, com os povos que habitavam esse continente. Era essa a ideia central e visceral do professor Darcy.
Após terminar o ensino médio em Montes Claros, Darcy começou a estudar medicina. Nessa época, sempre fez questão de dizer, pensou seriamente em suicídio. Não via razão para viver. Foi quando viajou a São Paulo e começou a atuar na área de ciências políticas. Segundo ele, conhecer o Brasil, nele se embrenhar e daí sonhar com um país tão gigantesco quanto o tamanho de seu território, lhe deu o ímpeto para lutar pelos indígenas, pelos negros, pelo povo, construir instituições, elevar museus, erguer grandes escolas, escrever leis e arquitetar utopias. Ao final, deixa por escrito e na memória de todos os brasileiros a história de um grande homem. Vitorioso.
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Darcy produziu diversas obras e ensaios nas áreas de antropologia, sociologia e educação.
• Culturas e línguas indígenas do Brasil (1957)
• A política indigenista brasileira (1962)
• A Universidade necessária (1969)
• Os índios e a civilização (1970)
• Os brasileiros – Teoria do Brasil (1972)
• Configurações histórico-culturais dos povos americanos (1975)
• O dilema da América Latina (1978)
• Nossa escola é uma calamidade (1984)
• América Latina: a pátria grande (1986)
• O povo brasileiro (1995)
• Maíra (1976)
• O Mulo (1981)
• Utopia Selvagem (1982)
• Migo (1988)
*Marco Antonio Araujo é jornalista e foi editor da revista Educação