NOTÍCIA
Autoconhecimento, habilidades socioemocionais, atitude empreendedora: o Projeto de vida, eixo transversal do novo ensino médio, vai muito além da escolha da profissão
Dentre as mudanças promovidas pelo novo ensino médio, atualmente sendo implantado em escolas de todo o país, está o Projeto de vida – presente também na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) –, eixo transversal dos conteúdos de todas as etapas do ensino e disciplina específica na grade curricular. O objetivo é propiciar ao aluno momentos de reflexão acerca de si mesmo, de suas decisões pessoais, profissionais e de seu futuro. Uma profissão que traga realizações é uma excelente meta, mas não é o único fator a determinar uma vida satisfatória. Além disso, ao desafio de fazer escolhas, soma-se a complexidade do atual mundo do trabalho, repleto de incertezas, com a tecnologia que gera novas profissões, elimina e transforma outras.
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Nesse contexto, a educação integral, bastante citada no BNCC, é valiosa. “É aquela que busca o desenvolvimento harmônico de todos os potenciais do aluno”, afirma Simone Cristiane Azevedo, professora e psicanalista. Ela ministra aulas para crianças do 2º ano do ensino fundamental, no Colégio da Companhia de Maria, no bairro Vila Nova Conceição, capital paulista. Ela conta que não houve mudanças significativas em sua atuação, pois a educação integral, a formação humanística, sempre foi o fundamento da metodologia aplicada no colégio.
“No ensino fundamental, nos anos iniciais, trabalhamos o reconhecimento do eu, do espaço físico ao qual pertenço e das próprias emoções. Isso vem como uma base, é uma construção, para quando chegar o momento de tomar decisões o jovem tenha maturidade emocional.” Os trabalhos em grupo e os projetos propiciam o autoconhecimento e o desenvolvimento das habilidades socioemocionais. “Por exemplo, vamos fazer uma maquete: uma criança tem mais facilidade para elaborar a sequência das etapas do trabalho, outra desenha, outra é mais hábil na construção. As habilidades ficam visíveis. As crianças também já se percebem – ‘Ah, vou fazer o cartaz, eu gosto de desenhar’ –, elas vão se conhecendo e conhecendo as demais. Nesse contexto, percebem, também, que não pode ser tudo como elas querem.”
Por meio de projetos desenvolvem-se também a responsabilidade, a autonomia e o empreendedorismo. Simone estava com esses mesmos alunos no ano anterior, com os quais tratou do tema animais domésticos. A conversa levou à questão da adoção de animais. A responsável pela ONG Anjo dos Bichos esteve com as crianças e contou que a organização se sustenta por meio de doações. Como ajudar? As crianças fizeram releitura de obras, fabricaram brinquedos e casinhas de gato. Essa produção foi colocada à venda na escola durante sua feira cultural anual e os recursos arrecadados foram entregues à ONG: “foi um projeto simples, mas muito enriquecedor na perspectiva do Projeto de vida e uma de suas competências, o empreendedorismo”.
A disciplina Cultivo da Interioridade cria mais oportunidades: “eu estava falando sobre as várias histórias acerca do início do mundo e trouxe um conto indígena sobre o dilúvio. Quando perguntei quem sabia o que era dilúvio, um aluno que veio do Recife mencionou as inundações em sua cidade – ‘Estou muito triste com o que aconteceu lá’. As crianças conversaram, prestaram solidariedade; elas são muito afetuosas. Aqui, são as emoções que estão sendo trabalhadas, além do aspecto social”.
O Colégio Inovar Veiga de Almeida, na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio de Janeiro, passou por reestruturação em 2018. Antecipando as premissas do novo ensino médio, introduziu o programa Humanamente, para alunos do 1º ao 8º ano e a disciplina Projeto de vida, a partir do 9º ano até o fim do ensino médio. Luinha Magaldi, diretora pedagógica, detalha: “o Humanamente conta com uma disciplina na grade curricular; uma vez por semana, a professora entra na sala de aula para promover reflexão, debate, escuta, investigação e questionamento. O objetivo é desenvolver nos alunos as competências e habilidades socioemocionais”. Nesse momento, o aluno é orientado para reconhecer suas emoções, pensamentos, sua maneira de escutar e o posicionamento do outro. Já nos anos finais do ensino fundamental, o conhecimento se amplifica, graças à abordagem da consciência social e das habilidades de relacionamento. “Fazemos certas provocações, por exemplo, ‘como o consumismo impacta meu projeto de vida?’”
A partir do 9º ano e no ensino médio, um profissional da área de psicologia positiva, comportamental, com formação em orientação vocacional, reúne-se uma vez por semana com os alunos. O objetivo é desenvolver o projeto de vida. “Não é só orientação vocacional, os encontros semanais abordam ansiedade, resiliência, personalidade e, também, carreira profissional.” Uma das atividades ministradas no ensino médio tem como ferramenta a linha do tempo, quando o adolescente projeta sonho para dali 20 anos e o que ele precisa fazer para alcançá-lo. As frustrações, as mudanças de rumo num mercado de trabalho cada vez mais em ebulição também são discutidas. “A ideia é que os alunos estejam preparados para tomar decisões quando estiverem próximos ao vestibular. Gosto de dizer que o educamos para que estejam preparados, mas não prontos. Não fazemos vassouras, educamos gente, e gente nunca está pronta”, ressalta Luinha.
O empreendedorismo, competência também relacionada ao Projeto de vida, pode ser exercitado nas festas juninas, quando as barracas ficam sob a responsabilidade dos alunos. São momentos para aprender a relação custo/benefício, precificação, partilha de dividendos, com direito, inclusive, a aulas gratuitas disponibilizadas pelo Sebrae. O 9º ano conta, ainda, com aulas de educação financeira.
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Fernando Damián Cruz Lopes é pedagogo e teólogo, coordenador da Formação Cristã e Pastoral do Colégio São Francisco Xavier, no Ipiranga, na Zona Sul de São Paulo. Mexicano, está há 10 anos no Brasil. Para ele, “o contexto brasileiro e o da maioria dos países da América Latina desanimam a juventude, que deixa de ter esperanças, sonhos, ideais; os jovens ficam à deriva. Não é mais como nas gerações passadas, em que abraçávamos os ideais e lutávamos por eles. O que podemos fazer é utilizar ferramentas sólidas para que o jovem descubra o seu verdadeiro e mais profundo desejo e, com ele, fazer sua opção fundamental”.
Responsável por estruturar o novo eixo transversal para todas as faixas etárias, Fernando detalha as etapas: descoberta da história pessoal, compreensão da realidade social e histórica, revisão da atuação – como estou agindo agora? – e das relações pessoais, tomada de consciência dos sonhos, desejos, vocação e, finalmente, a descoberta de um horizonte, do futuro. No colégio, os exercícios espirituais, legado do fundador da Companhia de Jesus, Inácio de Loyola, é a base da pedagogia e da ação educativa, portanto, também norteiam o Projeto de vida.
No ensino fundamental, os temas são contemplados na disciplina Educação para a Cidadania. No ensino médio, a disciplina Projeto de vida, uma vez por semana, traz para os alunos do 1º e 2º ano do ensino médio os elementos contidos nos exercícios espirituais. O professor da disciplina é o educador mais antigo, que conhece os alunos desde o ensino fundamental; com ele, podem estabelecer um laço de confiança e honestidade. “Eu gosto muito da imagem do peregrino; o projeto de vida se inicia com uma peregrinação interna.” A meta é alcançar o autoconhecimento e a compaixão. “Uma palavra bem interessante é magis; de origem latina, significa ‘mais, maior, melhor’. Ser magis é ter a capacidade de se questionar, de saber seus desejos mais profundos e, com esse entendimento, tornar-se uma pessoa melhor”, diz Fernando Damián.
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