NOTÍCIA

Edição 283

Itinerários formativos e o desafio da lei de chegar para todos

No Brasil das desigualdades escandalosas e de dimensões territoriais continentais, o currículo flexível do novo ensino médio começa a valer este ano com divisões claras: há escolas e professores muito bem orientados enquanto há aqueles que se sentem perdidos

Publicado em 15/04/2022

por Laura Rachid

É no coração da Amazônia que está localizada a Escola Zaida de Melo Freire Viana, no Seringal Jaminawa do Baixo Rio Tarauacá. Pertencente à cidade do Jordão, Acre, a instituição fica a cerca de quatro horas da cidade com o trajeto feito apenas pelo rio. Só se chega ao Jordão de barco ou avião de pequeno porte, sendo uma das cidades do estado mais isoladas, registrando pouco mais de 8 mil habitantes, incluindo um grande número de indígenas do povo Huni Kuin.

A Zaida é uma escola pública rural de ensino médio. Ribeirinhas, as famílias dos alunos sobrevivem, por exemplo, da caça, pesca, pequena produção de açaí e farinha, além do Bolsa Família (rebatizado de Auxílio Brasil). Ali o novo ensino médio (NEM) aparece discretamente apenas com o projeto de vida, contudo, a escola ainda não implantou o NEM. 


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Por conta da pandemia, enquanto o estado de São Paulo anuncia para o início deste ano a implantação do novo ensino médio em escala para as redes de ensino, na Zaida os alunos ainda vão concluir os anos letivos de 2020 e 2021. Em setembro é que começa 2022, incluindo, quem sabe, os itinerários formativos.

Sobram desafios para a gestora, para o único coordenador de todas as disciplinas, e os 22 professores da Zaida, cuja escola rural é fragmentada: o polo é no Seringal Jaminawa, mas há 17 anexos com um total de 313 alunos, sendo que quatro são indígenas. Nem todos os anexos possuem os três anos do ensino médio. Alguns só possuem o 1º ano, outros só o 2º ano. Quando num mesmo anexo há uma turma do 1º e outra do 2º ano elas se misturam, só o 3º que não é misturado. Internet existe apenas na escola-polo. A gestora Neusimar Cornélia de Jesus Lima passa a maior parte do tempo no Núcleo de Educação da cidade do Jordão e visita os anexos em determinados períodos. Do Núcleo de Educação para a Zaida, a escola-polo, o trajeto é feito em torno de quatro horas com barco mediano.

Segundo a gestora, é comum alunos que terminam a educação básica participarem de processos seletivos e se tornarem professores de suas comunidades.

Um grande desafio atual, esse por efeito da pandemia, é a ausência dos estudantes nas aulas presenciais. “Eles adoecem e ficam receosos. Temos que fazer busca ativa desses alunos, pedir para os professores não deixarem eles abandonarem e assim irem à escola pelo menos os dois dias que estão sendo presenciais. No remoto eles têm apoio do livro didático, professor marca conteúdo para estudar e nos encontros tiram dúvidas”, explica a gestora.

Sem divisão por série

No Mato Grosso do Sul, a pequena cidade de Selvíria tem apenas uma escola pública de ensino médio, a Escola Estadual Ana Maria de Souza. A 399 quilômetros da capital, Campo Grande, e a 186 quilômetros de Araçatuba, interior de São Paulo, possui pouco mais de 6.287 habitantes.

Ano passado, Mato Grosso do Sul implantou modelos pilotos de itinerários formativos em algumas escolas. O período vespertino da escola de Selvíria foi um deles, cuja saída para os selvirenses foi três salas de itinerários formativos mistas, ou seja, nos itinerários os alunos do vespertino do 1º, 2º, e 3º ano se misturavam – modelo se manteve este ano, criando salas por áreas do conhecimento e não por série. “Cada semestre teve um tema que desenvolveu habilidades e competências necessárias para aquele período. Este ano serão outros temas tratados em cada itinerário formativo”, explica a diretora Cleide de Oliveira Silva, professora do estado desde 2000.

A diretora Cleide de Oliveira afirma que tiveram apoio do coordenador do ensino médio da secretaria de Educação do MS e da Coordenadoria Regional de Educação
Foto: arquivo pessoal

Ao todo são 465 alunos oriundos de famílias carentes. A educação de Selvíria recebe apoio da Coordenadoria Regional de Educação (CRE) de Três Lagoas – representada aqui por Marizeth Bazé Kiill – que também atende outras cidades próximas, contemplando 18 escolas, mais assentamentos e escolas de campo. Marizeth conta que fizeram escutas com os estudantes: “em cima da escuta foi feito o redesenho curricular para formar as salas, tudo para atender à vontade do aluno”.

A maioria dos alunos escolheu a área de linguagens, depois ciências da natureza, ciências humanas e poucos, matemática. Já no noturno a maior parte optou por curso profissionalizante, formando, então, duas salas profissionalizantes e uma mista com itinerários de linguagens e ciências humanas.

Com a implantação do novo ensino médio, a coordenadora regional Marizeth Bazé assegura que os professores não vão trabalhar a mais. “Vão trabalhar o mesmo tempo do ano passado, a carga horária foi respeitada, com a mesma quantidade de aula que tinha. A preocupação do professor é que ele tem que se preparar melhor, aquele professor que não gosta de estudar vai ter que ampliar mais seu discurso para poder levar resposta ao aluno.”

Com 20 anos de sala de aula, Marizeth afirma que passou por vários obstáculos e que eles fazem parte da carreira. “Nossos professores sempre compraram desafios. Já tivemos várias mudanças e acho que ser professor é isso.”

A diretora-ajunta Tânia Regina Palma, assim como as outras duas educadoras, é uma otimista do novo ensino médio por crer que dialoga, de fato, com as necessidades e o momento atual dos jovens. “A adapta­ção não será tão rápida porque estamos saindo de uma educação muito conservadora e de muito tempo. É uma evolução no ensino e creio que surtirá efeito. Aluno passa a estudar tudo em um contexto interdisci­plinar, penso ser bom a integração de conhecimento e o aluno com direito de escolher as disci­plinas com que tem mais afinidade.”

Tânia Regina, diretora-adjunta em Selvíria, é otimista quanto às mudanças educacionais
Foto: arquivo pessoal

Sobre como avaliar os alunos durante os itinerários formativos, Tânia afirma que não deve ser em cima de uma nota de zero a 10, a participação e envolvimento do jovem devem ser considerados. “Itinerário não é disciplina, é aprofundamento.”

Produtor agrícola é o curso que será oferecido no profissionalizante, com duração de um ano e com as turmas dos três anos do ensino médio misturadas. Para essa escolha do curso, a diretora Cleide e a diretora-adjunta Tânia também ouviram a prefeitura e a secretaria de Educação do município. No próximo ano um novo curso será ofertado e assim por diante. O aluno que hoje ingressa no 1º ano, ao passar pelas três etapas do médio e se formar, terá além da formação geral básica, certificado de três cursos. 

 

Na única escola pública com ensino médio de Selvíria, MS, a alternativa para oferecer três itinerários foi misturar as turmas do 1º, 2º e 3º anos
Foto: arquivo pessoal

Enquanto a diretora da escola rural do Jordão, Acre, Neusimar Cornélia, ainda não recebeu nenhuma informação sobre os itinerários formativos, na cidade de São Paulo – cuja implantação em escala já começou – alguns professores ouvidos pela reportagem afirmam se sentirem perdidos porque vão dar itinerários formativos este ano só que ainda não compreenderam como será na prática. Indagada se tais ausências de orientações não são um problema, já que a lei determina 2022 como obrigatoriedade da implantação, Katia Smole, diretora executiva do Instituto Reúna e conselheira do Conselho Estadual de Educação de São Paulo, defende que cada estado brasileiro vive momentos diferentes de implantação, considera que a pandemia atrasou alguns processos, mas afirma: “posso garantir que todas as unidades federativas de alguma forma fizeram projetos pilotos, fizeram algumas escolas experimentais para poder ajustar aquilo que depois precisaria ser feito em escala. Garanto que não há nesse país nenhuma unidade federativa que não tenha feito alguma formação com seus professores desde 2019. Agora, dizer que todos os professores estão preparados é chover no molhado, é dizer não. Mas dizer: as redes estão se organizando para apoiar seus professores? Muito”. Para ela as ações já realizadas ainda não são suficientes porque essa inovação exige tempo, depende de processos e o importante é começar. 

Itinerários formativos

Katia Smole: “dizer que todos os professores estão preparados é chover no molhado, é dizer não. Mas dizer: as redes estão se organizando para apoiar seus professores? Muito”
Foto: arquivo pessoal

Katia, que foi Secretária de Educação Básica no Ministério da Educação e membra do Conselho Nacional de Educação (CNE), conheceu os currículos de todos os estados brasileiros e conta que Pernambuco está fazendo um modelo de estudo com estudantes para poder ofertar os itinerários e que o Rio Grande do Sul deve fazer o mesmo ano que vem. “Isso é importante porque mostra que a implementação não está sendo feita de jeito apressado: vamos oferecer; é natural que diretor diga que está ficando ‘doido’, porque tem fase de acomodação. O que não pode acontecer é ficar sozinho, não pode não ter formação: toma que itinerário é seu e se vire.”

Goiás e Distrito Federal também são citados por Katia como avançados na implementação. Ela indica ainda um material feito pelo estado de São Paulo para apoiar a comunidade escolar sobre os itinerários formativos. 

O que se percebe é que este ano será de preparo dos professores e escutas dos estudantes. Com isso, a efetivação dos itinerários, pelo menos na maioria das escolas, tende a começar ano que vem com o 2º ano do médio. “Estamos dentro do previsto, não precisamos que todo mundo compreenda tudo, mas é preciso ter ideia”, esclarece Katia Smole.


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Contrastes entre especialistas 

Monica Ribeiro da Silva pede a revogação da Lei 13.415. Com pós-doutorado na Faculdade de Educação da Unicamp e professora titular na Universidade Federal do Paraná (UFPR) desde 1994, ela é também a coordenadora do Observatório do Ensino Médio da UFPR, que possui pelo menos 30 pesquisadores de mestrados e doutorados. “Pesquiso política educacional há 30 anos. Tenho certeza de que os problemas desse novo ensino médio na prática vão começar a aparecer.”

A pós-doutora Monica Ribeiro da Silva quer a revogação da Lei 13.415
Foto: arquivo pessoal

Em entrevista ao jornalista Eduardo Marini para a edição de setembro de 2018 da Educação, o sociólogo Cesar Callegari, que no mesmo ano deixou a presidência da Comissão Bicameral encarregada da Base Nacional Comum Curricular do Conselho Nacional de Educação, disse: “Considero a Lei 13.415 e a BNCC do ensino médio do MEC excludentes, reducionistas e com potencial claro para agravar as desigualdades educacionais…o que se propõe agora não é uma garantia de boa educação a todos esses jovens, e sim um rebaixamento a um mínimo supostamente possível de ser feito para todos, diminuindo a importância de história, geografia, filosofia, enfim, das outras cadeiras além de português e matemática, que costumam ser mais cobradas em testes internacionais que trazem imagem política maquiada em caso de melhora nos índices, ainda que a educação geral não tenha mudado. Na prática, isso vai oferecer um ensino pobre aos pobres”.

Katia Smole rebate: “professores não vão perder aula. Isso é mentira. Não deixou de ter filosofia, sociologia, pelo contrário, os itinerários formativos estão trazendo mais aulas de sociologia, filosofia, física, química”.

Ainda sobre os problemas da lei, Monica Ribeiro deixa claro que há uma fragmentação curricular entre a formação geral básica e os itinerários formativos que fragiliza o conceito de ensino médio como educação básica: “porque cada estudante é levado a um caminho e isso faz com que ele perca, ao contrário do que dizem que ele ganha com a flexibilização, ele perde. Aquele estudante que for fazer o itinerário da formação técnica e profissional, por exemplo, ele deixa de ter acesso a um conjunto de conhecimento da ciência, da estética, da arte. E não haverá escolha porque a lei diz que o sistema de ensino vai colocar a oferta conforme a sua disponibilidade”. 

O ensino técnico do NEM também permite a contratação de empresas, gerando uma parceria público-privada criticada duramente por Monica. “Há todo um interesse do setor privado empresarial do Brasil em monitorar a formação desses jovens canalizando para seus próprios interesses. Um deles que predominou na regulamentação da lei é a noção de empreendedorismo.”

Cada estado tem na lei a permissão de regulamentar seu currículo da maneira que achar melhor. Ou seja, há critérios do estado e não somente de cada escola, o que para muitos tende a intensificar problemas antigos. “Mesmo no sistema escolar público já há desigualdade entre setor, você tem escolas com melhores condições, outras com piores, desigualdades territoriais, no trabalho docente, na falta de acesso à internet. Sistema escolar brasileiro tem uma estrutura muito desigual e a fragmentação curricular, a depender inclusive dos itinerários a serem oferecidos, tende a aumentar a desigualdade criando segmentação, segmentação como palavra cientifica que diz: a depender dos grupos sociais, o sistema de ensino oferece um tipo de currículo e tende a ter uma maior segmentação escolar com a oferta dos itinerários”, detalha Monica Ribeiro.

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Laura Rachid


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