NOTÍCIA
Desenvolvimento de competências socioemocionais ganha novo impulso com a retomada das aulas. Escola deve fugir dos modismos e compreender o tema a partir de seu projeto pedagógico
Publicado em 21/02/2022
Empatia, resiliência, comunicação… a retomada das aulas presenciais trouxe com força inédita para a sala de aula um vocabulário que foge do dicionário acadêmico estrito. Entre as consequências da pandemia está a tomada de consciência de um movimento global da educação: a valorização das competências socioemocionais como centro do currículo da educação básica. “Trata-se de uma questão absolutamente essencial. Durante muito tempo as escolas, por uma visão conteudista, deixaram as competências socioemocionais às margens do processo educativo, mas isso é claramente um erro”, pontua o espanhol José Maria Avilés, pesquisador da Universidade de Valladolid e uma autoridade internacional sobre bullying.
Não faltam evidências científicas da importância das competências socioemocionais – não apenas no tempo escolar, mas ao longo de toda a vida dos indivíduos, com impacto no trabalho, na saúde, na qualidade de vida e no próprio sentimento de felicidade. Respeitadas instituições de pesquisa publicam farta documentação a respeito, como o Collaborative for Academic, Social and Emotional Learning (Casel), que tem entre seus fundadores Daniel Goleman, autor do célebre livro Inteligência emocional.
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É verdade que não se trata de uma novidade. No Brasil, há mais de uma década existem projetos que enfatizam o tema, como os liderados pelo Instituto Ayrton Senna, bem como propostas didáticas de editoras e sistemas de ensino. Mais recentemente, a própria Base Nacional Comum Curricular (BNCC) se organizou em torno de competências que incorporam essa discussão, iniciada na década de 1990. Nova mesmo é a urgência que o tema vem ganhando, diante dos desafios colocados a crianças, adolescentes e professores em uma escola abalada pelos horrores da pandemia.
Cada vez mais, os educadores se dão conta de que a educação básica deve ir muito além dos componentes curriculares tradicionais, mas poucos promoveram mudanças mais radicais, como já se vê em novas instituições de ensino superior.
No início de fevereiro, por exemplo, 560 aprovados na primeira etapa da disputada graduação em medicina do Hospital Albert Einstein passaram por uma bateria de entrevistas em que foram avaliadas competências como empatia, comunicação, resiliência, resposta às situações de estresse e tomada de decisão. Neste ano, 7.000 candidatos disputaram 120 vagas. O desempenho na etapa denominada de Múltiplas Minientrevistas (MME) pode fazer os alunos mudarem até 300 posições no processo, tal a relevância dessa dimensão na avaliação.
Trata-se de um processo iniciado em 2015, como parte da construção de um perfil mais humanizado de profissionais da medicina. “O processo tem a ver com as competências socioemocionais descritas na literatura que o médico deve ter quando formado. A primeira competência é o conhecimento técnico-científico, mas todas as outras são socioemocionais”, explica Elda Maria Stafuzza Gonçalves Pires, coordenadora acadêmica da graduação de medicina da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein.
Segundo Elda, o processo quer identificar se os alunos conseguem desenvolver essas capacidades ao longo do curso. “Os estudos mostram que alunos de medicina vão diminuindo o sentido de empatia ao longo do curso. Nosso objetivo é o contrário: queremos que ele aprenda a lidar com sofrimento e a dor, mantendo a empatia”, exemplifica a educadora.
Outras instituições, como o Insper e o Ibmec, trilham o mesmo caminho. Mas as escolas brasileiras de educação básica ainda estão longe de dar ao tema a centralidade que assume em outras partes do mundo, e talvez este seja o impulso que faltava.
Há muitas razões para isso. Em primeiro lugar, porque o tema exige uma mudança cultural profunda. “O conceito de razão sempre esteve muito separado do de emoção”, diz a neurocientista Adriana Fóz, pesquisadora do Laboratório de Neurociências Clínicas da Unifesp. Segundo explica, falar de competência socioemocional é falar de emoção, o que não é tão simples em um mundo acostumado a explicar tudo pelo viés racional e cognitivo. “Se o cérebro fosse um novelo de lã, a ponta desse fio seria a tomada de decisão emocional, que tem um papel vital na sobrevivência. Isso está subjacente em nossas bases como seres humanos”, diz a pesquisadora.
Além disso, o desenvolvimento desse campo do conhecimento implica a intersecção de diversas áreas do conhecimento, e vem se ampliando com o aprofundamento dos estudos da neurociência, que acrescenta novo lastro científico à discussão. Adriana conta que o cérebro humano tem circuitarias neurobiologicamente marcadas para empatia e para a resiliência, por exemplo. “A gente nasce para se vincular ao outro”, diz. Autora do livro Frustração (ed. Benvirá), recém-lançado, Adriana mergulhou no estudo do cérebro para estudar a capacidade de superação. “Nosso cérebro tem uma possibilidade de rede, apresenta caminhos neurais para as competências socioemocionais”, complementa.
Para Adriana, ainda haverá muitas transformações na maneira de olhar para o campo socioemocional, a partir dos conhecimentos produzidos pelas neurociências, especialmente com o avanço dos exames de neuroimagem, que permitem ver o que se passa dentro das estruturas cerebrais.
Mas a neurociência talvez ajude a explicar também o que vem acontecendo em muitas escolas brasileiras que preferem adotar soluções prontas a promover uma reflexão mais profunda sobre o tema, dentro de seu projeto político-pedagógico. Nessa perspectiva, a escola tradicional, que transforma tudo em aula, também pode tornar o trabalho sobre competências socioemocionais um conteúdo pré-formatado. “O cérebro gosta de caminhos fáceis, e o que se vê é o professor usando métodos cegamente, estereotipando as crianças, fazendo com que o reconhecimento emocional seja negligenciado, enviesado”, lamenta a pesquisadora.
Para o espanhol Avilés, o risco existe. “Quando as escolas não sabem o que fazer ou como fazer para desenvolver competências, recorrem ao que têm à mão: qualquer método, pacote, pessoa, que de alguma maneira se proponha a resolver a angústia da família, do aluno, dos professores”, constata.
Por isso, Avilés recomenda que se diferencie entre programas (como as propostas e métodos prontos, muitas vezes importados) e os projetos pedagógicos conduzidos pela própria instituição. “Para que as escolas sejam verdadeiramente fontes de ensino e aprendizagem, precisam se organizar em torno de projetos, a partir de sua própria identidade”, acredita. Claro, isso leva tempo e requer participação de todos, em uma construção coletiva. “Não é rápido como dizer: compro aquilo e aplico amanhã, de cima para baixo”, brinca. “Mas é cada vez mais necessário que as equipes docentes parem para pensar e tenham tempo para pensar sobre o que querem fazer e como devem fazer, como protagonistas”, finaliza. Por isso, é bom entender melhor o que significa a aprendizagem socioemocional.
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É aqui que começa uma bela, mas complexa discussão. Afinal, há diferentes definições em curso. Este campo já foi chamado de competências não cognitivas, competências sociais, competências de vida, soft skills, competências do século 21, entre outras denominações – cada uma tentando definir os limites desse território da forma mais abrangente e precisa.
Por isso, ao mesmo tempo, instituições e pesquisadores também começaram a buscar pontos em comum entre as definições. Para o Casel – comunidade estadunidense citada no início -, a aprendizagem social e emocional refere-se ao processo pelo qual seres humanos adquirem e aplicam conhecimentos, habilidades e atitudes para desenvolver identidades saudáveis, gerenciar emoções, alcançar objetivos pessoais e coletivos, sentir e demonstrar empatia pelos outros, estabelecer e manter relacionamentos de apoio e tomar decisões responsáveis e cuidadosas.
Da mesma forma, surgiram neste século quase duas centenas de programas, cada um com seu próprio repertório de habilidades e competências centrais. A diversidade de competências propostas e as formas de defini-las são tantas que um grupo de pesquisadores, na Universidade Harvard, propôs-se a criar o Taxonomy Project, buscando o que se apelidou de Pedra de Roseta para o campo das competências socioemocionais. Para quem não se lembra das aulas de história, a Pedra de Roseta foi o achado arqueológico encontrado no final do século 18, a partir da qual foi possível decifrar os hieróglifos egípcios.
O projeto analisou dezenas de programas, buscando frameworks, ou um sistema organizador para orientar a busca dos interessados, principalmente educadores, pelas competências que gostariam de ver desenvolvidas em crianças e jovens. Esse esforço gerou uma plataforma de acesso livre que permite a qualquer usuário fazer um “de-para” para navegar pelo mundo das competências e das diferentes propostas existentes. Vale a pena consultar em Explore SEL.
O esforço de encontrar um vocabulário comum para o campo ilustra o desafio que cada educador vive ao buscar introduzir a discussão no coração de seu projeto pedagógico. Afinal, não basta pegar um dicionário e escolher de quais habilidades se gosta mais ou quais vê como mais importantes. Tampouco será suficiente construir boas perorações mostrando como tais competências sociais, como a empatia, são nobres e necessárias. “Quando é preciso abordar algo do vivido, do emocional, é reducionista colocar isso em um manual, é preciso que faça sentido para as pessoas”, lembra Adriana Fóz.
Para José Maria Avilés, desenvolver competências socioemocionais é um processo experiencial, a partir do convívio entre pessoas. “Considerar a convivência como uma experiência é trabalhar na prática diária não como algo exclusivo de especialistas, mas um desafio possível para todo professor, todo aluno, toda família que entende o conflito como uma oportunidade, algo sobre o que construir, a partir do que projetar, a partir do que aprender”, exemplifica o pesquisador, que desenvolveu um projeto antibullying baseado na participação de toda a escola e em grupos de ajuda formados pelos próprios alunos.
Por isso, especialistas são essenciais, leituras e estudos imprescindíveis, mas tudo precisa acontecer a partir da comunidade escolar, de forma transversal. Acima de tudo, o professor deve se apropriar e ser o condutor desse processo, lembra Adriana Fóz. “Esse é sempre o calcanhar de aquiles do Brasil: não se dá a devida importância ao professor”, enfatiza.
Com isso, Adriana chama atenção para dois aspectos: em primeiro lugar, para a própria formação do professor para que tenha condições de desenvolver projetos de aprendizagem social e emocional. Mas ela também propõe que o próprio docente seja o centro de propostas para que possa se desenvolver nesse campo – e não apenas aprender a ensinar.
Faltam estudos nessa área, e não apenas no Brasil. Pouco antes da pandemia, Adriana Fóz publicou na revista Portuguesa de Educação, juntamente com os pesquisadores Alcione Moreira Marques e Luiza Hiromi Tanaka, um estudo sobre programas de intervenção para a aprendizagem socioemocional do professor, uma revisão de trabalhos científicos que tinham o professor como foco. Entre 398 artigos sobre aprendizagem socioemocional analisados, apenas 18 tiveram como objetivo avaliar os impactos ou efeitos de programas específicos para o desenvolvimento dos professores.
Segundo Adriana, estudos mostram que a efetividade dos programas de aprendizagem socioemocional oscila de acordo com as competências que o professor já possui. Por isso, diz, é urgente dar mais atenção aos educadores, que hoje são apenas treinados brevemente para aplicar os programas de aprendizagem social e emocional nos alunos.
Todas as razões apontam para esse caminho. “Professores com competências socioemocionais mais desenvolvidas constroem relações de apoio e encorajamento com os alunos, são mais hábeis em promover a motivação intrínseca para a aprendizagem, conduzem os alunos em situações de conflito de maneira mais eficaz e se tornam modelos positivos”, diz. Em última instância, trata-se de um aprendizado com reflexos até na saúde. “Muitos indivíduos que sofrem com o burnout não percebem suas próprias emoções. Se não percebem em si mesmos, dificilmente conseguirão perceber no outro”, finaliza a pesquisadora.
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