No momento atual devem-se adicionar as camadas de tecnologia e serviços que as principais empresas de educação do setor e outras emergentes já oferecem
A Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas) proclamou 1996 como o Ano Internacional da Erradicação da Pobreza. Bill Clinton foi eleito presidente dos Estados Unidos e Nelson Mandela assinou uma nova Constituição na África do Sul colocando fim ao apartheid. Na área da tecnologia, a Motorola colocava no mercado o seu modelo StarTAC, que viria a se tornar um grande sucesso no incipiente mercado de telefonia celular; o primeiro filme em DVD, Twister, foi lançado com produção norte-americana; e a internet comercial dava seus primeiros passos. Na área de educação, o Brasil colocou em prática um programa que iria revolucionar o mercado de livros escolares: o PNLD (Programa Nacional do Livro Didático), criado 11 anos antes, efetivado após a aprovação da então nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação nº 9394/96.
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Olhar para esses últimos 25 anos tendo como proposta fazer uma reflexão sobre a evolução do livro didático nesse período, que marca o ano de fundação da revista Educação, acabou se transformando em um interessante mergulho na minha própria trajetória. O ano de 1996 também marca meu ingresso profissional no segmento editorial de educação, depois de algum tempo na sala de aula como professor de matemática. Oportunidade única de experienciar uma interessante e bela viagem no tempo.
Sem dúvida alguma, o PNLD constitui-se num marco no setor de conteúdos educacionais. Como um divisor de águas, o programa nasceu em um importante momento nacional, que experimentava a tão sonhada estabilidade econômica, trazida pelo então recente Plano Real (1994) a ponto de o quilo de frango ser o grande símbolo do poder aquisitivo da população, vendido a R$ 0,99. Com relação à educação e, especialmente, aos livros didáticos, vários problemas já estavam sendo detectados pelas avaliações governamentais, apontando para questões como preconceitos, livros com conteúdos desatualizados e até erros conceituais.
Aliás, para se ter uma ideia dessa transformação, até 1996 o governo brasileiro, que historicamente é o maior comprador de livros didáticos do país e um dos maiores do mundo, se mantivera apenas no seu papel de adquirir e distribuir essas obras. Sendo assim, ao constituir uma comissão para analisar a qualidade dos conteúdos programáticos e dos aspectos pedagógicos-metodológicos dos livros que vinham sendo comprados pelo MEC – em um primeiro momento, para as séries iniciais do ensino fundamental, e a partir de 2004, também para o ensino médio com o Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio (PNLEM) – há uma mudança substancial nesse setor.
Desse momento em diante, os livros didáticos encaminhados para avaliação deveriam estar de acordo com as normas estabelecidas pelo MEC, sendo apresentados em forma de coleção e acompanhados de livros do professor. O período que se segue à implementação do PNLD também marca a maior entrada no país de capital internacional, devido à estabilidade econômica e à abertura de vários setores ao capital estrangeiro. O segmento editorial de livros didáticos não escapou desse processo e algumas importantes editoras brasileiras foram adquiridas por grupos estrangeiros ou grupos empresariais que tinham fundos de investimentos internacionais como sócios. Movimento fruto de uma mensagem consistente e valiosa política pública.
Nas obras aprovadas pelo PNLD, o ciclo completo de edição do livro didático se inicia no desenvolvimento e inscrição da obra e, após uma criteriosa avaliação do MEC, se encerra com a entrega e o pagamento do governo, podendo este ciclo durar até três anos, o que torna elevada a necessidade de capital das editoras e empresas de educação para custeá-lo. Já no segmento privado, a demanda também é definida pela escolha dos professores, embora atualmente com maior influência dos gestores dos estabelecimentos das escolas particulares, especialmente por conta da adesão aos sistemas de ensino.
Além disso, nas primeiras duas décadas do século 21, uma camada adicional de complexidade se soma às mudanças econômicas e sociais que acabam impactando diretamente o mercado de livros didáticos: a digitalização dos hábitos de consumo da população. Se pensarmos que o público final do livro didático são crianças e jovens, uma geração nativa digital e que lida com o mundo por meio de plataformas, redes e outras formas de conexões, a necessidade do livro didático e da escola, como instituição, de acompanhar essa mudança de hábito é crucial.
O desafio é justamente promover o engajamento desses estudantes para que os conteúdos sejam compartilhados por meio de recursos que vão além dos livros didáticos como conhecemos.
Nesse sentido, as editoras investiram na primeira década deste milênio fortemente na digitalização das páginas, destacando ações comuns do analógico para o digital, como marcar páginas, grifar palavras e rápidos “flip pages”. Isso gerou até uma corrida aos tablets e aos carrinhos com esses equipamentos nas salas de aula de muitas escolas privadas, sem falar nas lousas digitais, que duraram menos de três anos em sua relevância.
O que não se compreendia é que a mudança não estava no meio, mas, sim, no comportamento do usuário e, consequentemente, na forma como se aprende neste novo século.
De acordo com o relatório de 2020 da consultoria McKinsey sobre as principais tendências e oportunidades na área de educação para o Brasil, o YouTube é a principal ferramenta de educação no país. Nove a cada 10 usuários da plataforma de vídeos no país têm o hábito de estudar e pesquisar por conteúdos educativos. Isto representa quase 90 milhões de estudantes acostumados a utilizar o YouTube com este propósito.
Esse mundo hiperconectado também exige novas habilidades para os jovens em idade escolar. “O foco das habilidades do século 21 para os alunos está mudando”, afirma o mesmo estudo da McKinsey. Se até 2015 a prioridade era ensinar habilidades de resolução de problemas específicos, hoje a tendência é focar as características emocionais, de caráter, e criatividade – as chamadas soft skills.
As habilidades cuja importância mais cresce na educação são, sobretudo, pensamento crítico, inteligência emocional, tomada de decisões e flexibilidade cognitiva. Estas tendências estão intimamente relacionadas com as demandas do mercado de trabalho, que tem valorizado cada vez mais estas habilidades inerentes a todos os setores e áreas de atuação.
E foram exatamente essas as habilidades endereçadas no desenvolvimento da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que começou a ser discutida em 2015, promulgada em 2017 e cuja implementação se dá até 2022. A BNCC define os direitos de aprendizagens de todos os alunos do Brasil diante das novas demandas do mercado de trabalho, ou seja, falar sobre empregabilidade hoje está muito mais relacionado à forma como resolvo problemas em times ágeis do que com os certificados e conhecimentos profundos individuais – importantes, mas em grupos multidisciplinares.
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Estamos ainda avaliando todos os impactos da pandemia nas nossas vidas e na educação não é diferente. A maior adesão ao ensino remoto é o mais visível deles. No entanto, há uma série de processos que se transformam a reboque desse grande fenômeno social e econômico que estamos atravessando, criando um ambiente híbrido de aprendizagem, abrindo novas janelas de oportunidade para as empresas de educação, muito além de serem somente editoras de livros didáticos. Uma vez que necessitam acompanhar essa acelerada transformação, beber na fonte das edtechs – startups de educação – seja por meio de aquisições ou de parcerias é um desses caminhos, não obstante a própria renovação do modus operandi dessas companhias.
De acordo com o CIEB (Centro de Inovação para a Educação Brasileira) e a ABStartups (Associação Brasileira de Startups), o Brasil encerrou 2020 com 566 edtechs mapeadas. Segundo Lucia Dellgnelo, diretora presidente do CIEB, é provável que tenhamos iniciado uma nova etapa para essas startups e para o setor educacional brasileiro como um todo, se pensarmos que as escolas não retornarão ao estágio pré-pandemia; o estudo classifica em 21 categorias as novas tecnologias disponíveis.
Adiciono a lembrança de minha última viagem internacional à Bett London, em janeiro de 2020, impactado por transitar em um pavilhão inteiro da feira dedicado somente aos recursos para os professores, de todas as disciplinas e níveis de ensino, entre tantas outras tecnologias possíveis e incríveis.
A inédita experiência de vivenciarmos um processo histórico, como a pandemia, acelera e nos impõe desafios da mesma ordem em relação às novas composições das ofertas de materiais didáticos, suas tecnologias e metodologias. O primeiro destes desafios se dá a partir da constatação de que a transformação digital é antes de tudo uma mudança cultural e comportamental que tem na tecnologia a própria base para a estruturação das ações.
Nas escolas privadas, onde as decisões concentram-se nos gestores e mantenedores, está posta a oportunidade; necessita-se calibrar localmente a coragem e ambição de cada um. Já nas redes de ensino das esferas municipais, estaduais e federais cabe políticas públicas mais amplas e aceleradas, especialmente em parcerias público-privadas que mantenham os investimentos nos constatados e vitoriosos programas do livro, como o PNLD, mas adicionem as camadas de tecnologia e serviços que as principais empresas de educação do setor e outras emergentes já oferecem.
Este contexto evidencia a necessidade de sermos eternos aprendizes. Como diria o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, autor do termo ‘modernidade líquida’: “Alguns dos habitantes do mundo estão em movimento; para os demais, é o mundo que se recusa a ficar parado”.
*Ricardo Tavares é diretor-geral da FTD Educação