ARTIGO

Olhar pedagógico

A geração de crianças mudas e que não sabem se comunicar

Pandemia acende a importância do desenvolvimento da fala e linguagem dos pequenos. Pediatra e fonoaudióloga explicam

Publicado em 03/08/2021

por Karen Cardial

O isolamento social tem gerado efeitos também no desenvolvimento da linguagem, uma vez que a criança precisa interagir com seus pares, da mesma idade, pois é nessa interação que ela vai aprender a função da comunicação, perceber que quando quer algo precisa se expressar de alguma forma, se comunicar. “A escola tem um papel fundamental na questão da interação social e da aquisição de significados, crucial para o desenvolvimento da fala e da linguagem”, afirma Marina Puglisi, fonoaudióloga graduada pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

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Helena tem um ano e sete meses e, por conta da pandemia, nunca frequentou a escola. Durante todo o período de isolamento social, a pequena só tinha contato com a mãe, Juliana, o pai e a irmã mais velha, de seis anos. Após notar que sua filha não se comunicava verbalmente, tendo criado mecanismos próprios de comunicação, por meio de gestos, Juliana procurou a pediatra da filha para expressar sua preocupação. A saber, chegou a buscar um neurologista para eliminar a dúvida de um problema maior, e a orientação que teve, após testes que descartaram um caso mais grave, era realmente buscar um profissional fonoaudiólogo que a orientaria a respeito do desenvolvimento da fala e da linguagem.

Restrições sociais

fala e linguagem

Larissa Rezende é pediatra de desenvolvimento e comportamento

“Com a pandemia, a criança tem menos oportunidades de trocas comunicativas, então ela vai ter menos intenções de se comunicar”, aponta Larissa Rezende, pediatra de desenvolvimento e comportamento graduada pela Universidade de São Paulo (USP).

O bebê começa a falar as primeiras palavras ao redor de um a um ano e meio, momento de crescimento acelerado do desenvolvimento da linguagem, porém, a variabilidade é grande: há aqueles que ainda não falam nessa faixa e que, eventualmente, conseguirão recuperar-se até os dois anos como os que não apresentam nenhum atraso e podem vir a ter dificuldade.

“O esforço hoje tem sido para identificar quais são as crianças que parecem atrasadas e que vão ficar real­mente com alguma dificuldade e quais vão conseguir ter um bom desenvolvimento”, pondera Puglisi, que é também professora adjunta do departamento de fonoau­diologia da Unifesp.

Atraso de linguagem

“Tenho recebido no consultório muitas crianças entre um ano e meio e dois anos que falam, mas não se comunicam. A criança repete a palavra, mas para ela não tem um significado que a ajude a se comunicar”, complementa Rezende, também graduada em fonoaudiologia pela Unifesp.

O fato é que os pequenos só vão falar se estiverem tendo interações, criando vínculos sensoriais e afetivos, uma vez que para eles o contato ainda é muito importante. “O que precisamos entender é que, na maioria dos casos de crianças de dois anos que ainda não falam, trata-se de crianças que estão tendo um atraso de linguagem. Neste caso, devem ser feitas, sob orientação de um profissional fonoaudiólogo, alterações no ambiente no qual a criança está inserida, favorecendo o seu desenvolvimento”, explica Marina Puglisi.

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criança fala e linguagem

Marina Puglisi, fonoaudióloga: escola tem papel fundamental na interação social e  aquisição de significados

Linguagem e fala. vamos separar?

Sendo assim, linguagem é tudo aquilo que a criança vai aprender em termos de conhecimento, conteúdo e vocabulário e a forma com que ela vai conseguir organizar o seu próprio pensamento para se comunicar. Já a fala é a capacidade de conseguir produzir os sons corretos da língua. Então, uma criança que tem dificuldade de linguagem pode não apresentar dificuldade na fala e outra que está desenvolvendo bem a linguagem pode possuir trocas na fala. “É o fonoaudiólogo que sabe as idades específicas que ainda se espera que algumas trocas aconteçam e quando isso pode ser superado”, adverte Puglisi.

Identificação e intervenção precoces

No passado, a regra que muitos pediatras utilizavam era que se podia esperar, caso a criança não estivesse falando corretamente, até mais ou menos os quatro anos para procurar um profissional fonoaudiólogo. Atualmente, houve uma grande mudança dessa perspectiva, porque se sabe o quanto a identificação e a intervenção precoces são importantes – ajudam a mudar o curso de uma série de questões, por exemplo, problemas de aprendizagem e questões emocionais, como baixa autoestima.

“A recomendação é que aos dois anos, se a criança ainda não fala, procure ajuda de um profissional fonoaudiólogo e é muito importante também que a criança vá para a escola”, orienta Puglisi. “Temos um contexto familiar hoje em dia de pai e mãe que trabalham e crianças que ficam sem um ambiente rico de estímulos”, completa Rezende.

É de extrema importância que o professor, que é quem está presente no dia a dia da criança, conheça os marcos do desenvolvimento para fazer o encaminhamento precocemente. Para essa capacitação é necessária uma interação feita entre o profissional fonoaudiólogo e a escola.

Terapia com profissional

Juliana, a mãe da Helena, visitou quatro escolas e em todas explicou que a filha não estava se comunicando verbalmente, ou seja, não falava. Ela queria saber o que a escola pensava e entendia sobre isso. “Se a escola não está atenta para perceber que a criança precisa de uma intervenção precoce e que não é mais como antigamente, quando diziam que ‘cada criança tem o seu tempo’, então eu não quero minha filha nessa escola”, determinou. Hoje, Helena faz terapia com fonoaudióloga três vezes por semana.

Uma terapia de fala e linguagem utiliza, sobretudo, recursos lúdicos, em que a brincadeira é a base para o pequeno entender e aprender o significado das coisas. Quando a criança consegue representar aquilo que ela vive por meio da brincadeira, entende a função dos objetos e as características perceptuais e semânticas são desenvolvidas.

Olhar o todo

“A primeiríssima infância [zero a três anos] é um período muito crítico não só para desenvolver conexões, mas principalmente para poda sináptica, que significa cortar as conexões que não estão sendo utilizadas. Com uma intervenção precoce conseguimos fortalecer tais conexões, que num desenvolvimento típico estariam sendo utilizadas. Há aprendizados que se não forem bem desenvolvidos no segundo ano de vida, talvez as consequências sejam carregadas para sempre”, ilustra a pediatra Larissa Rezende, que estagiou na Universidade Harvard, EUA.

Dentro deste cenário pandêmico, serão muitos os meninos e meninas que chegarão à escola com atrasos na fala e o professor deve olhá-los como um todo: suas funções comunicativas, interações, reatividade, suas trocas, o quanto são abertas a receber estímulos, e assim fazer um mapeamento individualizado da evolução dessas crianças. Buscar conhecer o background de cada uma, o ambiente e as condições a que estavam submetidas e, se preciso, procurar o mais precocemente possível uma ajuda especializada.

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Karen Cardial


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