ARTIGO

Olhar pedagógico

Tião Rocha: da morte cívica à UTI educacional

Crítico da escola tradicional, Tião Rocha fala sobre cidades educativas, a implantação de seus projetos pedagógicos e detalha experiências repletas de sensibilidade e empatia

Publicado em 29/04/2021

por Laura Rachid

tiao-rocha-educacao Em atividade no interior de MG. Entre as missões do educador popular está a de despertar a luminosidade de cada pessoa (Foto: Danilo Verpa / Folha Imagem)

Há seres humanos com propósitos tão profundos que parecem seguir o instinto. O sentir se torna guia, só que de práticas testadas e avaliadas. O mineiro nascido em Belo Horizonte Sebastião Rocha, mais conhecido como Tião Rocha, é uma dessas pessoas. Sua alma transborda a necessidade de semear, pois sabe que é preciso multiplicar, unir e, claro, quebrar paradigmas da mão única: aqueles burocráticos que buscam colocar tudo e todos na mesma forma. Antropólogo e folclorista, sabe que a riqueza está na diversidade. É um experimentador da vida. Mas não está aqui de turista. Criador das pedagogias da roda, do sabão, do copo cheio, do abraço e do brinquedo, suas metodologias são facilmente colocadas em prática em diferentes realidades, seja em uma comunidade cujas crianças não foram alfabetizadas, seja para organizar uma equipe de saúde que tem como objetivo acabar com a mortalidade infantil. A felicidade está no centro de suas pedagogias.

Leia: Conheça os princípios da pedagogia Waldorf na infância

Tião Rocha lecionava na Universidade Federal de Ouro Preto, Minas Gerais, quando foi um dos primeiros — se não o primeiro professor da história da instituição — a se demitir. “Meu momento de ruptura foi na universidade, quando me dei conta de que queria ser educador e não professor. Todos acham que é a mesma coisa. E eu falo que não: professor é quem ensina, professa. E educador quem aprende, e eu queria sair do lugar da ensinagem e ir para a aprendizagem. A universidade não queria aprender, só ensinar. A solução que eu tive foi sair.”

Em busca dos caminhos para a aprendizagem, fundou em 1984 o Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento (CPCD), uma instituição de aprendizagem sem fins lucrativos que até hoje promove educação popular e desenvolvimento comunitário a partir da cultura. A sede é em Belo Horizonte, mas há escritório também em São Luís, Maranhão. Suas pedagogias mergulham nos Brasis, tendo chegado até a países africanos como Guiné-Bissau, Moçambique e Angola. Diversos projetos do CPCD já foram premiados, por exemplo, pelo Unicef e Fundação Abrinq. Em 2016, o Ministério da Educação reconheceu a instituição como referência para a inovação e a criatividade na educação básica. Já Tião Rocha foi eleito em 1997 membro da Ashoka, recebeu o Prêmio Empreendedor Social Brasileiro de 2007, pela Fundação Schwab, Suíça e jornal Folha de S.Paulo, entre outros. Quando Renato Janine Ribeiro foi ministro da Educação, em 2015, reuniu os principais críticos do sistema educacional para mapearem escolas referências em inovação — o mineiro estava entre esses críticos.

Tião Rocha

Em atividade no interior de MG. Entre as missões do educador popular está a de despertar a luminosidade de cada pessoa (Foto: Danilo Verpa / Folha Imagem)

Defensor de territórios educativos, Tião Rocha, hoje com 72 anos, por opção política se considera um educador popular. Ele alerta que um dos principais equívocos da sociedade é ter estabelecido que apenas a escola é lugar de educação, gerando uma limitação. “Na realidade todos os espaços são espaços educativos, desde que haja troca de pluralidade. E ao reduzir essa escola, estabeleceu-se um modelo, padrão de quem a constrói. Ela é seletiva, excludente, não acompanha o olhar e necessidade do todo. Cumpre o papel de atender à demanda do poder, poder político e ideológico”, critica.

Na sua percepção, há uma necessidade de repensar a escola, esse espaço fechado. Para ele há um manequim igual para todo mundo, só que esse modelo ficou na Idade Média. Outra escola, então, é fundamental, acredita. “Escola precisa se rever como escola. Como educação passa longe. Há um currículo defasado. No Maranhão a gente adequou com o objetivo da comunidade. Você alterna. Eu não sou preso a grade curricular, trabalho em roda. Grade é lugar de cadeia. A primeira coisa que a gente faz é chamar e saber o que querem aprender, o que querem da vida.”

Leia: Entenda o que é uma educação antirracista e como construí-la

No pé de manga

A pedagogia da roda surgiu quando foi trabalhar em Curvelo, interior de Minas, e notou que havia criança demais e escola de menos. Ali se questionou se era possível fazer educação sem escola, embaixo de um pé de manga. “Assim surgiu o nosso primeiro processo de aprendizagem, o nosso Projeto Sementinha, que é embaixo do pé de manga. Premiado nacionalmente, virou política pública no Brasil e fora. Nisso respondemos à pergunta: eu não sou contra a escola. Eu sou contra a escola ruim. É possível fazer educação sem escola. Só não é possível fazer educação sem bons educadores. Onde estão os bons educadores? Eles não estão sendo formados pelas universidades, centros de pesquisas, porque esses lugares formam professores e não educadores. Percebemos que precisamos formar as pessoas e fazemos isso até hoje na periferia de São Paulo, Amazônia e tantos outros locais. Trabalhei formação de educadores em campos de refugiados de guerra em Moçambique”, conta.

Tião Rocha também sabe que a saída para uma vida saudável é caminhar em consonância com o meio ambiente. Tanto que atua em projetos com agrofloresta, permacultura e bioconstrução. Falando em números, de 1984 a 2018, o Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento impactou mais de 150 mil pessoas, construiu 150 banheiros secos, 145 cisternas de 16.000 litros, plantou e distribuiu 73 mil mudas, dentre muitas outras ações.

Tião Rocha cidades educativas

Tião Rocha em Araçuaí. Por conta de suas atuações foi considerada uma das quatro cidades educativas do mundo (foto: Carol Rolim)

Formando educadores

“A ideia é juntar um bando de gente que queira estar junto e quando bota na roda o primeiro momento é transformar o bando em grupo. Primeira questão é que a pessoa se perceba: quem sou eu, quem é esse grupo, com rodas lúdicas, conversas. Segundo momento a gente coloca para esse grupo provocações, desafios para trabalhar na solução, buscar respostas coletivas para determinadas questões. E aí, de grupo, vai formando equipe. Quando aprende a conviver com o outro, no tempo e ritmo de cada um, eu transformo equipe em time — a partir daí coloco uma causa, uma ideia central orientadora de todo o processo de trabalho e convivência de um time”, detalha.

A roda é sem dono e foge da exclusão. Falar não a alguém é proibido, mas criam-se consensos. Quando esse time vai à comunidade conviver com famílias crianças e jovens, não se olha o vazio. “Não fazemos diagnóstico de miséria, carência. A gente entra na comunidade para olhar o lado cheio do copo. Detesto quando alguém me mostra o IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] de uma comunidade e mede o vazio, o que falta. A mim não interessa, porque nós buscamos o Índice de Potencial Humano, a capacidade que existe em toda e qualquer comunidade de acolhimento, convivência, aprendizagem e oportunidade que se transformam em compreensão e devolução, e aí ação.”

A crítica à escola formal fez ainda mais sentido ao fundador e diretor-presidente do CPCD quando viu o resultado desastroso do Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica) de 2003 de Araçuaí, cidade interiorana localizada no Vale do Jequitinhonha, MG: só 3,3% dos alunos da 8ª série tinham grau suficiente de aprendizagem. “É um indicador muito ruim. A escola produziu massa falida de gente insuficiente. Fomos então até essa comunidade tirá-la do que chamamos de morte cívica e criamos, com 50 educadores, a UTI educacional para tirar todos do analfabetismo. Foram dois anos para fazer isso, eram mais de 3 mil meninos.”

O objetivo é provocar, instigar para que todos, educadores e moradores da comunidade, trabalhem juntos, por uma causa. O mineiro aprendeu com o povo macua, de Moçambique, que para educar uma criança é preciso convocar toda a aldeia e aprender no tempo de cada um e não no tempo da escola. “Como fazemos isso? Dia a dia, mão na massa, aprender a fazer junto. É a matéria-prima do nosso trabalho”, diz.

Com 36 mil habitantes, segundo o último censo do IBGE, de 2010, a cidade do Jequitinhonha se transformou em território educativo, com todos os ambientes sendo espaços de aprendizagem. “Araçuaí esteve entre as quatro cidades do mundo mais significavas por seu exemplo como cidade educativa. Mas o Brasil tem interesse zero. Isso é política pública, não governamental. Nós somos cidadãos e podemos fazer políticas públicas”, defende. Esse reconhecimento internacional aconteceu em 2006, no 9º Congresso Internacional de Cidades Educadoras, em Lyon, França, em que Araçuaí concorreu com 249 cidades de diversas partes do mundo.

Leia: PNE: educação brasileira evolui lentamente

Fechar a torneira da morte

De 2009 a 2015, Tião Rocha trabalhou em 17 cidades maranhenses para reduzir a mortalidade neonatal. Vale lembrar que esse tipo de morte, quando o bebê ainda está na barriga ou recém-nascido, reflete a desigualdade social e econômica de uma região, em outras palavras, quando o acesso a direitos mínimos não ocorre. Na época, uma professora universitária do Rio de Janeiro foi convidada pela então governadora maranhense para a missão, só que no levantamento percebeu que não poderia contar com o sistema formal e acabou convidando o CPCD para o desafio junto à Secretaria de Atenção Básica. “Tinha que ir à comunidade, perceber com quem da área da saúde poderia contar, como enfermeiras, agentes de saúde e parteiras tradicionais. Formei time na mesma lógica das minhas experiências anteriores e com o compromisso dessas pessoas de chamarem outras pessoas, sempre com a promessa de cumprir plano de trabalho e avaliação a fim de garantir que os meninos iriam nascer.”

O que ocorreu nos 17 municípios maranhenses foi uma educação em saúde e empoderamento comunitário, em que mais de 9 mil pessoas contribuíram para salvar vidas. As comunidades assistidas tinham metas a cumprir, como vacinar, aprender a ler e escrever. “Criamos o envolvimento da comunidade saudável, em que a causa foi sendo ampliada. De início tirar o menino e menina da morte prematura. Hoje várias cidades continuam fazendo, apesar da pandemia, e se transformaram em comunidades educativas”, conta.

Assista:

Entrevista com José Pacheco: por um outro olhar na educação

Autor

Laura Rachid


Leia Olhar pedagógico

Educação inclusiva

Educação inclusiva: estratégias pedagógicas para promover a equidade

+ Mais Informações
atividades culturais

Escola é o principal ponto de atividades culturais da população, diz...

+ Mais Informações
2 Colégio Marista editada

Pensamento computacional, estratégia para múltiplas habilidades

+ Mais Informações
estudantes-não-pensar

Estudantes são treinados para não pensar?

+ Mais Informações

Mapa do Site