É jornalista, educomunicadora, ganhou duas vezes o Jabuti e é membro da UNESCO MIL Alliance.
Publicado em 20/08/2020
Conhecer o folclore brasileiro precisa ser, urgentemente, um compromisso de todos os brasileiros e especialmente das escolas e instituições educacionais, defende neste artigo, Januária Alves
O Brasil tem o seu folclore. Ainda bem! Pelo menos o folclore! O Brasil tem o Saci-Pererê, a Mula-sem-cabeça, o Curupira, o Uirapuru. O Brasil tem a Loira do Banheiro, o Urutau, o Poronominare e tem a Princesa Encantada, que mora numa gruta em Jericoacoara, e por isso ela só existe no Brasil. A Imperatriz Porcina veio da Europa e por aqui ficou, e como ela, a Princesa Magalona também amalgamou-se ao nosso povo, e até Roberto do Diabo não resistiu: sua história passa de boca em boca até hoje, nos rincões desse nosso imenso país. Que bom que o Brasil e todos os brasileiros possuem um folclore imenso, rico, multirracial, multifacetado, multi… multiplicador. O folclore nacional é a cara da Brasil, só que, infelizmente, muita gente não o conhece.
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No texto que Ana Miranda, uma das nossas maiores escritoras, que conhece o Brasil como ela só, generosamente escreveu para a Coleção de Personagens do Folclore Brasileiro (FTD Educação), de minha autoria, ela conta como foi importante para a sua formação descobrir os personagens do folclore brasileiro. “Faltava conhecer melhor nossos entes fantásticos, nossos animais, mitos, lendas e histórias do povo brasileiro. Que são histórias misturadas com lendas e crenças de outros povos, mas são a nossa interpretação dos prodígios do mundo, tanto os pequeninos como os imensuráveis. E por meio dessas histórias, podemos nos conhecer melhor, e nos conhecendo melhor podemos melhor amar a nós mesmos. Podemos reconhecer o nosso rosto e sonhar os nossos próprios sonhos do nosso próprio jeito”, escreve ela.
Pois então: conhecer o folclore brasileiro precisa ser, urgentemente, um compromisso de todos os brasileiros e especialmente das escolas e instituições educacionais, que é onde todas as histórias se multiplicam.
O Brasil necessita, e é pra já, saber quem é e porque existe, se vai, para onde vai e como vai. Questões das mais fundamentais, talvez sem resposta, talvez com diversas, mas absolutamente necessárias para que o Brasil mereça o Brasil.
É imprescindível que os brasileiros saibam o que representa a esperteza de Pedro Malasartes ou as traquinices de Angoera, o nosso Saci-Pererê cristão. Que compreendam as razões pelas quais os nossos zumbis nada têm a ver com aqueles da série americana Walking dead: o nosso não é morto-vivo, mas vaga à noite, sem dormir, dando sustos nas pessoas, só porque gosta de vê-las correr sem olhar para trás. Os brasileiros precisam conhecer a lenda da Teiniaguá, a bela princesa dos pampas gaúchos, eternizada no conto de Simões Lopes Neto “A Salamanca do Jarau” para conseguirem entender a profundidade e complexidade da alma brasileira.
Personagens e histórias maravilhosas que nos contam sobre nós, sobre a identidade do povo brasileiro. Pois uma nação que desconhece suas raízes jamais poderá dar frutos com a consistência e a força que eles possuem.
Dia 22 de agosto é o Dia do Folclore Nacional. Todos os anos as escolas celebram a data resgatando algumas histórias conhecidas: a da Cuca, do Boto, da Mãe d’Água, do Curupira e a do Bumba-meu-boi. Agosto acaba e os personagens voltam ao seu sono letárgico, a espera do ano seguinte para habitarem novamente as salas de aula, os pátios que exibem danças e canções, as folhas repletas de desenhos coloridos onde as crianças se esbaldam retratando o Brasil e… a si próprias. Será que o folclore brasileiro não merece ocupar os nossos 365 dias do ano?
Por que será que temos tanto medo – ou tanta ignorância, sei lá – pelas histórias e personagens que mostram as nossas características, bem humanas, diga-se de passagem, que espelham nossas imperfeições e maravilhas? Será que tememos, tão somente, os monstros das nossas lendas? O que precisamos perguntar para que possamos responder honestamente a esses questionamentos?
Eu acho que o Brasil merece o Brasil, ouso discordar da canção famosa. Só que precisa dar-se conta e apossar-se desse tesouro escondido. Tal como os Zaoris – homens que nasceram numa sexta-feira da paixão cujos olhos possuem o poder especial de descobrir tesouros sem que, no entanto, nunca possam usufruir deles – os brasileiros devem usar e abusar desse tesouro imaterial que é o folclore nacional.
Quando esse país entender que “Sociologicamente o Malasartes é uma expressão do Brasil-Cinderela: qualquer um que está no borralho pode chegar ao palácio do rei, por intervenção da fada madrinha”, como afirma Ruth Guimarães, uma das maiores estudiosas do nosso folclore, talvez possa transformar esse vaticínio do homem brasileiro. Se queremos deixar para trás a esperteza a qualquer custo, o levar vantagem em tudo, mesmo que seja para prejudicar outrem, é preciso que nos aprofundemos em nosso inconsciente coletivo, nas representações do Malasartes.
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Sim, porque o folclore não somente retrata a realidade, mas é capaz de reconstruí-la. Essa é natureza dos contos de tradição oral: de tão contados e recontados permitem uma liberdade que só eles têm, a de reinventar e transformar a história que não cabe mais naquele contexto.
Precisamos contar essas histórias, entender esses personagens, nos apropriarmos de suas características, com tudo o que elas representam. Só assim, poderemos reescrevê-las, pois o eterno será sempre moderno e contemporâneo se representar o cerne do narrador daqueles contos. O folclore é democrático e libertador, não há história que não possa ser transformada – “Quem conta um conto, aumenta um ponto” esse é o mote – e por isso, somos todos narradores, escritores, somos todos contadores de histórias!
Em tempos em que nos vemos cercados por uma guerra de narrativas que já não nos permite sequer sabermos o que é verdade – porque o que nos move agora é buscar apenas uma fórmula para reconhecê-la – a (re)construção das narrativas folclóricas é uma possibilidade de compreensão de como se elaboram os discursos, de como eles dançam entre o que é real e o que é imaginário, de como podem dizer não apenas pelo que contam, mas também pelo que ocultam, de como criam uma realidade paralela, porque talvez, de fato, existam muitas para a gente habitar. Essa é a força dessa linguagem. Um povo que se apropria de suas histórias é capaz reconhecer sua potência e assim, escrever de próprio punho sua história, todos os dias.
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*Januária Cristina Alves é mestre em Comunicação Social pela ECA/USP, jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira É pesquisadora do folclore brasileiro e da cultura popular e autora do Abecedário de personagens do Folclore Brasileiro (Edições SESC/FTD Educação). Também realiza palestras e oficinas para educadores, crianças e jovens sobre educação literária, alfabetização midiática e storytelling.
Para saber mais acesse: www.entrepalavras.com.br
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