NOTÍCIA

Edição 257

Ensino médio precisa recuperar sua importância com urgência

Em entrevista, o filósofo e historiador Lauri Cericato fala sobre a crise da etapa final da educação básica e sua relevância na formação das futuras gerações

Publicado em 23/04/2019

por Redacao

O filósofo e historiador Lauri Cericato é um pesquisador com contribuições importantes para a educação do país nos últimos anos. Gestor de políticas públicas e consultor em educação — é curador e coordenador do MBA em Edição de Didáticos e Sistema de Ensino da Casa Educação —, ele vinculou a maior parte de sua trajetória a projetos de edição de livros didáticos e administração da oferta desse material, em redes públicas municipais, esta­duais, federais e também em escolas e sistemas privados. Fez especialização em Negócios Editoriais na Unesp, em Liderança e Gestão da Organização e de Pessoas, no Insper, e de Gerenciamento e Desenvolvimento de Produtos Estratégicos, na Fundação Getulio Vargas.


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Recentemente, deixou o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) para dedicar-se com maior fôlego às consultorias e também à formação de propostas de estruturação de anos letivos e cursos do “patinho feio histórico” da educação brasileira: o ensino médio. A partir das novas exigências legais e pedagógicas recentemente definidas, Cericato desenvolveu modelos estruturais para os três anos de estudo no período. Seu maior desejo, nesta área, é ver o ensino técnico e profissional novamente valorizado, definido de forma adequada em meio à diversidade do país. Nesta entrevista à Educação, o pesquisador, educador e consultor detalha os principais pontos de seu mais recente trabalho.

O que pode ser visto a partir de uma radiografia do atual ensino médio brasileiro?

Infelizmente, nada muito bonito de se ver. Estamos diante de duas perspectivas em relação à realidade do ensino médio: reclamar das leis, diretrizes e bases aprovadas – e aí não sair do lugar nem tampouco recuperar o atraso – ou então discutir e sugerir caminhos a partir do que se definiu. Tento contribuir para a segunda opção.

Há 7,9 milhões de matrículas no ensino médio atualmente no país. Se a memória não me trai agora, cerca de 80 milhões de brasileiros a partir de 15 anos não possuem o ensino médio completo – grande parte deles sequer o fundamental. Apenas 68% dos brasileiros entre 15 e 17 anos, faixa etária padrão para a fase do ensino, estão na escola – e isso somando os alunos em todos os níveis de participação, do pouco ao muito frequente. Por outro lado, 52,4% das matrículas da Educação de Jovens e Adultos, a EJA, que abrevia a caminhada até o diploma do médio para atender atrasos, adultos sem escolaridade e outros objetivos específicos, envolvem alunos na faixa dos 15 aos 24 anos.

O que se pode concluir dessa combinação?

Em primeiro lugar, que a opção mais rápida de uma parcela considerável de alunos que deveriam estar no médio regular é a de abandonar a oferta de três anos das redes e escolas – até mesmo das privadas, pelos que podem – e mergulhar no EJA, ou em outros programas semelhantes, para ‘pegar o papel’ a qualquer custo em um ano, um ano e meio no máximo.

Isso significa que…

Que esses adolescentes e jovens adultos, por motivações individuais, familiares, circunstanciais ou sociais, deixam de reconhecer utilidade e custo/benefício educacional nos três anos regulares de ensino médio nas escolas. E pior: esses desiludidos conseguem, cada vez mais, convencer pais e familiares de que estão certos, o que contribui dramaticamente para o aumento desses índices negativos. Um a cada três alunos que iniciam o ensino médio não o conclui. O Ideb do ensino médio está estacionado em índices baixos desde 2013. Aí surgem as perguntas elementares. Onde estamos falhando? Por que não estamos engajando esse aluno? O que tem – ou não tem – no médio que afasta esses alunos do ensino regular de três anos?

Se juntarmos esses dados com aquele dos 80 milhões, chegaremos à conclusão de que estamos diante de uma epidemia. Ela foi produzida por décadas de ineficiência de gestão da educação, no acúmulo geométrico de problemas e defasagens em contraposição à lentidão das soluções. Tudo isso foi produzido, em grande parte, como consequência do afunilamento do ensino médio, para servir unicamente como ponte entre o fundamental e o ensino superior, via Enem, vestibular e outros sistemas de seleção surgidos nos últimos anos. Com raríssimas boas exceções, o espaço para a formação técnica e profissional, respeitando as vocações e os potenciais regionais, foi abandonado. O que me parece um erro profundo de visão e planejamento, diante da necessidade de atender os jovens, suas famílias e as variadas demandas regionais em um país tão diversificado como o Brasil. Aí os alunos abandonam mesmo. Costumo lembrar os versos do compositor Renato Russo: por tudo isso, o jovem, em quantidade infinitamente maior do que seria tolerável, acaba por achar o ensino médio uma grande ‘festa estranha com gente esquisita’. Tudo isso moldou o médio, nas últimas décadas, como uma espécie de patinho feio do ensino brasileiro. Passou a ser meramente fator de aprofundamento das bases estabelecidas pelo fundamental, na ‘ponte’ para o superior. Foi indevidamente desprovido de seus contornos técnicos, profissionais, vocacionais, enfim.

O que o senhor destaca do novo modelo de ensino médio?

A conquista maior é o reconhecimento – ou talvez a recuperação histórica – do projeto de formar o aluno não apenas para ingressar no superior, mas também para atender o mercado de trabalho, a questão vocacional, por meio dos itinerários formativos. É a consolidação teórica, propositiva e legal de uma discussão travada por nós, educadores, desde 2010. Além de devolver importância ao ensino técnico, e também de apoiar as escolas em tempo integral, a reforma cria flexibilidade e mobilidade na distribuição e divisão das disciplinas tradicionais pelos três anos.

Todo o conteúdo a ser administrado pelos professores estará dividido em cinco pilares, os chamamos itinerários formativos: linguagens e suas tecnologias; matemática e suas tecnologias; ciências da natureza e suas tecnologias; ciências humanas e sociais aplicadas; e formação técnica e profissional. As escolas não serão obrigadas a oferecer todos os cinco itinerários, mas no mínimo um deles – e isso favorecerá a adaptação das ofertas técnicas e profissionais às demandas regionais, algo que considero fundamental. A nova legislação estabelece que 60% da carga horária seja obrigatoriamente dedicada aos conteúdos da Base Nacional Comum Curricular, a BNCC. Os 40% restantes, no caso das escolas que optarem pelas três mil horas mínimas, serão formados pela opção do aluno dentro das ofertas específicas da escola, respeitando o escopo permitido pela BNCC.

O senhor formulou gráficos com propostas de formato de ensino médio a partir dessa nova ordem. Pode dar detalhes?

São possibilidades de organização para montagens de grades e dos três anos de curso para redes públicas ou privadas ou, individualmente, para escolas. Comecei a trabalhar com algumas delas em escolas que me solicitaram consultoria. O novo médio poderá ser organizado por semestres, ciclos, créditos, alternância de períodos e até mesmo em mais de três anos, a depender do ritmo do aluno. Há muitas variáveis. Com a nova lei, ele passará de 2,4 mil para três mil horas mínimas obrigatórias. De BNCC, serão 1,8 mil horas/aula mínimas. De itinerários formativos, mais 1,2 mil. Para o padrão de três mil horas/aula em três anos, numa escola diurna, proponho os modelos, na suprema maioria dos casos, com a distribuição de 600 horas de BNCC e 400 de itinerários formativos em cada um dos anos letivos. Na prática, a proporção de 60% a 40% seria mantida também na divisão anual. Para organizar dessa maneira, teríamos 30 horas/aula semanais, sendo 18 de BNCC e 12 de itinerários, ainda com a proporção preservada. Para as de período integral, não há, nas exigências legais e do CNE, a definição de um número exato de horas/aula acima do piso de três mil.

No meu caso, proponho quatro mil horas totais, com 1,8 mil para a BNCC e 2,4 mil – ou seja, o dobro – para os itinerários formativos. O objetivo é, claramente, criar condições de tempo e de estrutura para dar solidez e densidade ao preparo técnico e profissional. Obviamente, a partir da definição dos cronogramas nessas proporções, cada rede, escola ou sistema público ou privado definirá o posicionamento das aulas de cada matéria na grade, obedecendo a demandas regionais e também a preparação para o Enem e as demais seleções para o curso superior. A partir desse ponto, a questão se desdobrará de acordo com a situação de cada escola ou rede. Mas a estrutura das minhas propostas é essa.

O senhor dá muita atenção à educação financeira nas consultorias de formação de professores. O que aconselha os educadores a passar aos alunos do ensino médio?

Pois é, vivemos atualmente em um país com 63 milhões de pessoas oficialmente endividadas. Por questões óbvias ligadas a mapeamento e registro, esse logicamente exclui, talvez, boa parte dos jovens e adolescentes entre 15 e 17 anos com dívidas, o que leva à constatação elementar de que o problema é bem maior do que o oficialmente apurado. Nessa faixa etária, entre 15 e 20 anos, a resistência à pressão pelo consumismo é, provavelmente, a menor entre todas. Essa realidade foi extremamente amplificada pela internet e as redes sociais, principalmente a partir do momento em que elas, com seus anúncios e apelos multicoloridos e sedutores, invadiram a individualidade de cada um desses jovens pelos celulares, que, por sinal, eles hoje não abandonam nem por decreto. Isso ocorre em um momento da vida em que boa parte deles começa a perder apoio financeiro e estrutural dos familiares.

Como assim?

Costumo usar a seguinte imagem: os pais começam a ‘soltar a bicicleta’ para que os filhos passem a pedalar com as próprias pernas e sem apoio, porque as rodinhas, essas foram abandonadas há tempo, lá na infância. Por isso, no caso do ensino médio, reforço com os professores, em meus cursos de formação, a necessidade de levar os alunos a relacionar, sempre que possível, o aprendizado de matemática, física, do trabalho com as fórmulas, e mesmo das relações profissionais e empresariais tratadas em outras cadeiras, a um projeto de vida capaz de ser efetivado no futuro dentro da realidade de cada um.

Fico incomodado ao perceber que, em grande parte, professores passam matrizes, determinantes e outros fatores e questões importantes da matemática, da física e das outras cadeiras, os alunos aprendem aquilo, muitos falam sobre os temas até com suposta segurança, mas saem do ensino médio sem saber como enfrentar e administrar coisas simples como atribuição de valor, preços e juros no dia a dia. Eles estão no momento ideal para aprender a dominar essas contas. A vida cobrará isso logo – em muitos casos já está cobrando, e caro.

O senhor tem uma longa experiência em edição e administração de programas relacionados a livros didáticos, inclusive no MEC. Como avalia os livros mais adotados atualmente no ensino médio?

O maior problema da literatura didática e pedagógica oferecida nesta fase até aqui é que praticamente toda ela está reduzida e concentrada às propostas de apresentar e fazer com que o aluno absorva conteúdos. A disposição de conteúdo é logicamente importante. Mas, na realidade atual, é fundamental que o processo de ensino e aprendizado leve o aluno do ensino médio a se expressar e a divulgar o que produziu de bom fora da escola. Protagonismo.

Cultura do fazer. Faça você mesmo. Cultura maker. Essa não é, aliás, uma necessidade a ser imposta apenas ao aluno do médio. Os últimos debates sobre educação no país, inclusive na imprensa, na revista Educação, relacionaram fortemente o protagonismo dos alunos no fundamental. Mas os livros do ensino médio, em maioria, não ajudam o professor nesse processo. Cheguei a contribuir com propostas de revisão dessa literatura, com a proposição de livros mais adequados à nova realidade educacional do médio, mas a gestão atual do MEC ainda não tomou decisões em relação a essa questão.

Apesar dos problemas, dá para ser otimista em relação ao futuro próximo do ensino médio?

Vivemos um momento de profundas incertezas. Não relacionadas apenas ao ensino médio, mas também à ação do MEC em todas as suas áreas nos próximos anos. Não vou, no entanto, sentar na esquina e chorar. O desafio é contínuo e o Brasil, apesar de tudo, tem ótimos educadores, capazes de superar as adversidades e seguir em frente. Testemunhamos isso nas últimas quatro décadas. E vamos voltar a conviver com isso. Atravessaremos o túnel.

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