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Arte e Cultura

Seriado Merlí relaciona ciências humanas e sociais como introdução à vida

Leia entrevista do ex-ministro da Educação que organizou cursos com base nos episódios que tem como protagonista um professor de filosofia

Publicado em 18/09/2018

por Sérgio Rizzo

seriado Merlí

É possível e desejável que um curso de filosofia ou de sociologia no ensino médio seja articulado com a realidade das pessoas (foto: Gustavo Morita)

Lançada em 2015, a série espanhola Merlí tornou-se um dos êxitos internacionais na grade da Netflix. Seu protagonista é um professor de filosofia (Francesc Orella) de uma escola pública de ensino médio em Barcelona. Em 40 episódios ao longo de três temporadas, ele se transforma em personagem admirado e controvertido, graças a um modo peculiar não só de atuar em sala de aula, mas também de se relacionar com os alunos, com seus pais e com os demais professores.
A popularidade da série levou à publicação de livros (como A filosofia de Merlí, publicado no Brasil pela Faro Editorial) e levou Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação no início do segundo mandato de Dilma Rousseff, a organizar dois cursos na Casa do Saber, em São Paulo, a partir da trama de alguns episódios. Professor titular de Ética e Filosofia da Universidade de São Paulo e professor visitante da Universidade Federal de São Paulo, autor do recém-publicado A pátria educadora em colapso (Três Estrelas), ele considera Merlí exemplar para o ensino de filosofia “de uma maneira útil”.
Foi você quem propôs o curso à Casa do Saber, ou tratou-se de uma encomenda?
Fui eu mesmo. Fiquei encantado com Merlí. Faz coisa de um ano, vi as duas primeiras temporadas de uma enfiada só. Em janeiro, estava na praia com meus filhos, um de 18 anos e o outro de 12, e vimos a terceira temporada. O que achei muito bom, desde o início, foi esse vínculo da filosofia com os jovens. Uma coisa que me preocupa muito é como você faz disciplinas que são muito importantes, como filosofia e sociologia, matérias que entraram recentemente no currículo obrigatório do ensino médio, renderem todo o seu valor.
Como português, história ou geografia, você pode ensinar muito mal e de forma muito desinteressante para os alunos, ou você pode ensinar bem e de forma interessante. Isso depende tanto da qualidade do professor quanto da ementa adotada. Mas a distância entre ensinar bem e ensinar mal não é enorme. Em sociologia e filosofia, a distância entre essas matérias serem utilíssimas e muito boas para a vida das pessoas, ou serem de um aborrecimento total, é grande. Elas podem ser a Nau Capitânia [navio que trouxe Pedro Álvares Cabral ao Brasil] de um curso, ou então um estorvo. O que Merlí faz é tornar o curso de filosofia a Nau Capitânia da escola.
Em que consiste essa proeza?
O que vejo de interessante em Merlí é que a filosofia está ligada com a vida prática das pessoas e com as inquietações delas. Então, em um episódio em torno da Judith Butler [filósofa americana, teórica contemporânea do feminismo], a série vai tratar diretamente da questão do transgênero, da sexualidade. Não há como você falar com jovens sem falar a verdade. Não dá pra enrolar. Se enrolar, você perde toda a credibilidade.
E enrolar seria…
Coordenei uma equipe que montou para o Sesi, com apoio da Unesco, um curso de ética para o ensino médio, mas que acabou não sendo adotado. Mas uma das coisas em que eu insistia é que você tem de falar de religião e de sexualidade, senão os jovens vão sentir que você os está enrolando. Se você ficar falando apenas de zelo e disciplina, de qualidade do trabalho, você estará apenas disciplinando os jovens, e não os estará formando para ter um pensamento próprio. Isso me levou inclusive a propor uma base curricular em que o primeiro ano se dedicasse à ética, o segundo à política (filosofia e ciência políticas) e o terceiro à lógica. Acho que seriam matérias cruciais. Primeiro, para que a pessoa tenha um raciocínio independente, rigoroso e exigente sobre o que é justo e injusto. Segundo, para entender que caminho ela quer tomar na política, sem nenhum tipo de doutrinação. E, terceiro, para aprender a pensar melhor.
Isso está contemplado no trabalho do Merlí?
O Merlí é outra coisa. Mas a maneira como ele constrói o trabalho dele é permanentemente de diálogo. — dialógica, como dizemos. Diálogo entre ele e a realidade que está acontecendo. Por exemplo: no episódio do suicídio [na terceira temporada], ele traz [Albert] Camus [escritor, jornalista e filósofo francês, nascido na Argélia]. É claro que não é tão óbvio que um professor vá fazer uma aula como aquela imediatamente após um assunto que aconteceu. É possível, um bom professor consegue. Mas não é tão óbvio, e é o que ele faz. Tanto que reclamam que ele não está seguindo o currículo fixado pelo ministério, digamos, a Base Nacional, se é que ela existe na Catalunha. Mas ele faz um trabalho notável. E também é muito inteligente o contraponto entre ele e a Silvana [professora de história interpretada por Carlota Olcina, personagem da terceira temporada].
A Silvana é encantadora, fascinante, carismática, mas o que ela ensina é inteiramente conformista. A maneira dela de fazer o aluno participar, o interativo da Silvana, é colocar três fotos de políticos e perguntar quem foi qual. Isso é irrelevante. É a história mais antiga que existe. Servir um produto já vencido em uma embalagem nova. No Merlí, tudo é realmente novo. Tanto que, com isso, a matéria que ele leciona acaba se tornando a mais importante e ele, o principal professor da escola. Ele acaba inclusive mexendo na vida dos outros.
Como você avalia as tramas dos 40 episódios?
Outra coisa de que eu gosto muito no Merlí é que os conflitos são fortes, não são mascarados, e todos eles, com exceção da Coralina [diretora da escola, interpretada por Pepa López na segunda temporada], se resolvem pela conciliação. Uma reconciliação que não passa pelo apagamento das posições. Nunca uma rendição, nunca uma conciliação tola, superficial, mas sempre um ponto em que você produz uma espécie de síntese entre posições opostas. Apesar de o Merlí ser nietzschiano [referência ao filósofo alemão Friedrich Nietzsche], o procedimento é hegeliano [referência ao filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel].
Nietzschiana é a ideia de contestar tudo, arrebentar as certezas a marteladas, uma expressão que o próprio Nietzsche usa. Hegeliano é você ter a tese, a antítese, o conflito dialético forte, e dele você chegar a um encontro, a uma síntese, que, simplificando, reúne o melhor de um lado e o melhor do outro. O que é, também, uma injeção de otimismo. Ele está dizendo para os jovens: “Olha, vocês não precisam mascarar os seus conflitos, vocês não precisam render-se a nada, mas vocês podem chegar a uma síntese”. O mais difícil nisso tudo talvez seja a situação da crise econômica + a corrupção na política = desemprego forte dos jovens. Tanto que a maior parte deles [os alunos de Merlí] não vai conseguir os melhores empregos, realizar os anseios profundos deles, porque há uma situação econômica difícil. Eles não conseguem chegar a situações prósperas ou ricas, mas eles conseguem fazer escolhas que dizem mais ao coração deles do que se estivessem fazendo uma carreira só para ganhar dinheiro.
Seu curso girava em torno das ideias do filósofo mencionado no episódio escolhido para cada aula?
Cada episódio, apesar de ter um assunto, permitia discussões sobre outros assuntos também. Por exemplo: a questão da escola. Veja o caso do menino de 12 anos que mente o tempo todo na escola [Pau Vilaseca, interpretado por Léon Martínez] e para quem o Merlí encontra uma saída, que é a de ele se tornar um autor de ficção. É uma coisa notável. Em vez de reprimir, você procura o espaço dele. Os autores da série foram brilhantes. Você tem cerca de 40 problemas importantes com os quais a juventude se defronta, durante as três temporadas. Para cada um deles, você tem um filósofo ou um princípio.
Em Platão, por exemplo, o mito da caverna [no segundo episódio da primeira temporada], o que é você sair do fechado e abrir-se para o mundo, o que é você lidar com a aparência e tentar ir para além da aparência. Essas questões são muito bem equacionadas, de modo que você tem uma crítica constante à escola, uma escola que não abre espaço para todas as pessoas desenvolverem o que são. Merlí diz: “que história é essa, quem aguenta ficar cinco ou seis horas sentado no mesmo lugar?”. Fazer isso com crianças de sete anos é um delírio. Provavelmente, um dia as pessoas vão dizer que os séculos 20 e 21 eram feitos de loucos. As pessoas que geriam a educação eram um bando de malucos. Não dá.
Aquela escola pública catalã pode se aproximar da brasileira?
É muito difícil. Primeiro, é claro que se trata de uma ficção. Nela, temos uma escola com meia dúzia de matérias. Segundo, as classes são pequenas. Aquilo provavelmente é real na Catalunha porque classe com 40 alunos é uma ideia infeliz muito brasileira. Terceiro ponto: ainda que alguns sejam pobres, como o Pol Rubio [aluno interpretado por Carlos Cuevas], eles têm um nível de vida que, para o Brasil, é o de uma classe média, acima da média baixa. Agora, o ponto em comum é o conteúdo do que está sendo dito. Isso pode ser universal. O tipo de aula que o Merlí dá pode ser dada aqui. Precisa de professores bem formados, bem abertos para isso.
Qual a alternativa?
O que você pode sinalizar é dar um curso de filosofia ou de sociologia no ensino médio articulado com a vida das pessoas. É possível e desejável. Digo em A pátria educadora em colapso que a sociologia poderia ser um mix das ciências sociais. No primeiro ano, você dá economia, para as pessoas entenderem como funciona o capitalismo e como ele também é civilizado, como ele recebe um rosto humano, graças a movimentos trabalhistas, sociais e ambientais, por vezes muito duros. Sem isso, o capitalismo é barbárie.
No segundo ano, minha sugestão seria dar sociologia propriamente dita, que lida com a diferença de classes. Ou seja: no primeiro ano, você ensinaria produção de riqueza; no segundo, produção de pobreza, que não é um dado cultural, é produzida, é gerada. No terceiro ano, eu sugeriria antropologia, tanto para entender os conceitos da disciplina quanto para tratar dos nossos indígenas, que são um foco importante do estudo antropológico. A ciência política poderia ser ensinada no segundo ano de filosofia, junto com filosofia política.
Qual a ideia de um curso em que sociologia e filosofia cobrissem seis pontos importantes (ética, filosofia política, lógica, economia, sociologia e antropologia)? Seria uma introdução à vida. Você teria uma pessoa que saberia lidar com a vida.
Dessa maneira, você tem a condição de trabalhar, de preparar a pessoa para ser um cidadão.
Leia também:
http://www.revistaeducacao.com.br/o-youtube-as-vacinas-e-o-autismo/

Autor

Sérgio Rizzo


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