NOTÍCIA
Também chamadas de monitoras, pajens ou berçaristas, dependendo da nomenclatura utilizada pelo município, profissionais ficam responsáveis pela turma – sozinhas ou em dupla com colegas da mesma função; maioria não tem qualificação exigida
Uma análise com base nos microdados do Censo da Educação Básica de 2015 mostrou que apenas 35% das auxiliares que atuam em creches da rede pública são habilitadas para o cargo, e a maioria, 40%, tem formação só no ensino médio, mas não na modalidade normal/magistério, como estabelecido na lei. Entre os docentes que atendem crianças de até três anos, 72,6% contam com a instrução exigida. Na pré-escola, são 67,1% professores habilitados e somente 40,8% das auxiliares. As informações fazem parte da dissertação de mestrado Docência e Educação Infantil: Condições de Trabalho e Profissão Docente, de 2017, de Tiago Grama de Oliveira, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE-UFMG). Veja quadro com dados sobre formação inicial das auxiliares.
“Todos os cargos com atuação docente na creche e pré-escola deveriam ser designados como ‘professor/a da educação infantil’ e todos os concursos públicos e processos seletivos deveriam exigir a formação em educação infantil, preferencialmente, a licenciatura em pedagogia, mesmo que parte das atribuições da função seja auxiliar uma outra professora”, defende Oliveira, que é membro do Grupo de Estudos sobre Política Educacional e Trabalho Docente (Gestrado), da UFMG.
A investigação também revela que é pequeno o número de auxiliares e professores que participam de atividades de formação continuada específicas para a etapa, com pelo menos 80 horas de duração: 21,5% dos docentes e 13,1% das auxiliares de creches públicas, e 17,8% dos docentes e 12,8% das auxiliares da pré-escola pública, segundo dados do Censo Escolar 2015. “Principalmente, entre as auxiliares, poucas têm oportunidades de formação permanente”, diz o autor da dissertação.
A orientadora de Oliveira, Lívia Fraga Vieira, professora da graduação e pós-graduação da FaE-UFMG, lembra que a auxiliar é alguém que, como o próprio nome diz, deve auxiliar o professor, partilhar o projeto educativo. “Mas em muitas situações observadas em inúmeras creches e pré-escolas é ela quem assume a sala”, afirma Vieira.
De acordo com a professora, a baixa qualificação dessa trabalhadora compromete o direito à educação da criança. “O adulto que trabalha com crianças tem de ter formação pedagógica. Mesmo ações de cuidado, como o banho e a troca de fraldas, devem ser efetuadas de forma articulada à proposta de aprendizagem. Tudo que se faz com as crianças nesse contexto coletivo de cuidado-educação contribui para o seu desenvolvimento”, alerta Vieira, que desenvolve estudos e pesquisas sobre políticas educacionais e trabalho docente na educação básica e na educação infantil, em especial.
Ainda sem a formação inicial e continuada adequadas, a auxiliar é quem mais tempo fica com as crianças e mais informações possui sobre elas – já que, em geral, cumpre jornada de oito horas diárias, o que facilita a criação de vínculos afetivos. “Há aí um paradoxo, pois a auxiliar é a única profissional em relação direta e prolongada com as crianças que não possui habilitação em magistério ou pedagogia e que não participa da construção dos planejamentos previamente, tendo seu trabalho subordinado às professoras”, declara Laís Caroline Andrade Bitencourt. Ela também é pesquisadora da FaE-UFMG e realiza tese de doutorado que analisa como a auxiliar constrói sua experiência na interação com bebês e professoras nas creches de Belo Horizonte.
Em 2015, a capital mineira instituiu o cargo de auxiliar de apoio à educação infantil, com a finalidade de qualificar a atuação dos professores do segmento, conforme informou a Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte. Em vez de concurso, a contratação se deu via Caixa Escolar, administradora dos recursos financeiros das escolas, e não requeria habilitação em magistério, apenas o ensino médio. A resolução do Conselho Municipal de Educação 01/2015, que trata do assunto, afirma que esses profissionais devem realizar atividades complementares e não substitutivas às do professor. Entre suas funções estão receber as mochilas e acondicioná-las, organizar a sala antes e depois das atividades e alimentar as crianças, sempre no apoio ao professor, disse a secretaria de Educação.
Para Bitencourt, a ausência de formação específica para o papel de cuidar e educar bebês e a contratação sem concurso público limitam a autonomia da auxiliar nas decisões sobre as atividades de rotina. “Por outro lado, a atuação dessa trabalhadora vai além das suas atribuições, sem que isso esteja explícito, o que impede que seja objeto de reconhecimento e da reflexão, condição necessária para a qualidade do trabalho com os bebês”, destaca a doutoranda, que integra o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Infância e Educação Infantil (Nepei), da UFMG.
Os governos municipais têm o dever de ofertar a educação infantil e o ensino fundamental, conforme consta na Constituição Federal. Eles possuem autonomia para criar e extinguir cargos desses segmentos e definir suas obrigações, ainda que com base em leis e parâmetros nacionais e em critérios pedagógicos – daí a variedade de arranjos nas políticas educacionais.
Enquanto Belo Horizonte, por exemplo, criou o posto de auxiliar em 2015, como já dito, em São Paulo, essa função não existe mais há cerca de 15 anos. Todos os profissionais da educação infantil na capital paulista são docentes com formação superior/licenciatura ou curso de magistério. Porém, inúmeros outros municípios contratam auxiliares, como Campinas, Recife e Florianópolis. Muitos locais, inclusive, têm substituído professores por essas trabalhadoras. É o caso de Três Rios, no Rio de Janeiro, que a partir de 2018 não terá mais docentes em um dos turnos das instituições infantis de regime integral. Em vez deles, serão duas auxiliares em cada classe, com formação normal/magistério nível médio, segundo a deliberação n0 001/2017 do Conselho Municipal de Educação (CME) de Três Rios.
Em nota por e-mail, a secretaria de Educação do município informou que a medida tem como finalidade atender à demanda reprimida por vagas na educação infantil na rede pública. Disse também que a mudança alcança todas as unidades escolares do município e viabilizará a manutenção de salas voltadas ao segmento na rede particular de ensino. Relatou ainda que ‘após pesquisa e estudo sobre a realidade de outras redes de ensino, bem como de legislações nacionais que tratam do tema, verificou a necessidade de alteração da legislação vigente’. As creches terão, portanto, um professor e um monitor em um turno, e dois monitores no outro turno; na pré-escola serão um professor em um turno e dois monitores no outro.
O aumento da oferta de vagas está relacionadao à obrigatoriedade dos municípios de atender às metas do Plano Nacional de Educação (PNE), que determinaram a ampliação do acesso à creche em 50% até 2024 e a universalização da pré-escola até 2016 – o que não ocorreu em nenhum dos dois casos.
Apenas 27% das crianças de zero a três anos eram atendidas em creches em todo o país até 2016 – quase a metade do previsto em lei. Na pré-escola, a taxa de atendimento a crianças de quatro e cinco anos de idade para o mesmo período ficou em 79,32% – quando deveria ser de 100%. As informações são da plataforma on-line TC Educa lançada em novembro passado para monitorar as metas do PNE. A ferramenta foi criada pelo Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCE-MG), Instituto Rui Barbosa e Associação dos Membros dos Tribunais de Conta do Brasil (Atricon).
Muitos pais na fila de espera por vagas para seus filhos entraram com ações na Justiça, forçando as redes de ensino públicas a efetivar a matrícula. Se, de um lado, é obrigação dos municípios garantir a oferta da educação infantil, por outro, eles alegam não terem condições financeiras, de estrutura e de pessoal para tamanha ampliação.
“Em Florianópolis, muitas turmas de creche da rede pública estão com um ou dois bebês a mais do que o máximo permitido, que é de 15 crianças por sala para dois adultos, devido a ações de Judicialização”, comenta Márcia Buss-Simão, professora do programa de pós-graduação em educação na Unisul (Universidade do Sul de Santa Catarina) e doutora em educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Nesses casos, emergencialmente, foi preciso contratar um terceiro profissional para cada grupo. Os convocados são estagiários, estudantes de cursos de pedagogia, conta a pesquisadora. “Isso leva a uma precarização do atendimento, comprometendo cada vez mais os critérios para uma educação infantil de qualidade”, revela Buss-Simão.
Com salário mais baixo, carga horaria mais extensa, maior frequência de contrato temporário e ausência de plano de carreira, a auxiliar acaba sendo uma opção mais econômica que os professores para os governos (veja quadro abaixo).
A precariedade nas relações de trabalho e emprego dessa trabalhadora, inclusive, pode explicar a dificuldade de se obter informações sobre a sua situação funcional. No Censo Escolar, por exemplo, realizado anualmente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), os relatos sobre a auxiliar fazem parte dos microdados, que não são divulgados e para acessá-los é preciso fazer uma solicitação formal ao próprio órgão.
Some-se a isso o contexto histórico do surgimento das creches – inicialmente vinculadas a órgãos de assistência social, que funcionavam como espaço de cuidados básicos para crianças de mães trabalhadoras de baixa renda e não exigiam qualificação dos adultos contratados – e é possível entender o cenário complexo no qual se encontra hoje a auxiliar, dando abertura a interpretações diversas sobre sua atuação.
Um assunto polêmico é a questão da inclusão dessa trabalhadora na carreira do magistério – para que passe a ganhar salário e benefícios equiparados – em situações em que ela exerce a função de professor mas é concursada como auxiliar, recreacionista ou educadora e recebe salário como tal. Pareceres de consultas feitas por sindicatos, prefeituras e órgãos ligados à educação infantil junto ao Conselho Nacional de Educação (CNE) informam que essa alteração só pode ocorrer se o ingresso da auxiliar se der via concurso público de provas e títulos, se atender à formação exigida pela legislação, e se forem garantidos, na forma de lei, planos de carreira e remuneração equivalentes aos dos demais profissionais da educação básica.
“Não podemos misturar e achar que essa auxiliar pode ser enquadrada e equiparada como profissional docente. É importante esclarecer isso para que não haja equívocos quanto à remuneração desse profissional”, destaca Alessio Costa Lima, presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e dirigente municipal de educação de Alto Santo, no Ceará. Ele reitera a necessidade de sempre haver um professor em sala, seja qual for a fase escolar, e destaca a importância de esse docente poder contar com a ajuda de um auxiliar. “Dadas as especificidades do atendimento de crianças muito pequenas, que envolvem tarefas que exigem atenção mais individualizada”, completa Lima, que também é conselheiro da Câmara de Educação Básica (CEB) do CNE.
Para Suely Melo de Castro Menezes, outra conselheira da CEB, no entanto, as creches podem contar com outros profissionais que não o educador. “É um trabalho de cuidador e eu, particularmente, não acho que deva ser obrigatório um professor”, diz Menezes. A conselheira afirma que o atendimento até os dois anos foge das características de uma escola e poderia ter especialistas como médicos, nutricionistas ou enfermeiros.
Os primeiros anos de vida são fundamentais para o desenvolvimento de uma criança. Estudos mostram a importância da qualidade dos estímulos e interações nesse período, pelo impacto positivo que causam ao longo de toda a vida. De acordo com a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal (FMCSV), que atua na promoção do desenvolvimento da primeira infância, quando as condições de crescimento nessa fase da vida são boas, maiores as probabilidades de a criança alcançar o melhor de seu potencial, tornando-se um adulto mais equilibrado, produtivo e realizado.
“De zero a três anos, a criança aprende muitas coisas e muito rápido, no sentido de conquistar a autonomia e tornar-se ser humano – mamar, engatinhar, comer, andar, correr, falar, tirar a fralda e controlar os esfíncteres, por exemplo”, ressalta Cisele Ortiz, coordenadora adjunta do Instituto Avisa Lá, responsável pela capacitação de professores da educação infantil. Ela acrescenta que se o professor não está capacitado e não sabe o quanto as suas intervenções, o ambiente e os materiais utilizados podem favorecer ou prejudicar o desenvolvimento da criança, ele não proporcionará um bom início de formação a ela.
Faz-se, portanto, urgente discutir e chegar a um consenso sobre a situação delicada e contraditória que há tempo as auxiliares enfrentam no país. Afinal, o que está em jogo é a educação das crianças brasileiras – e elas têm direito a um ensino-aprendizagem de qualidade.
“Quando fiz o concurso para monitora, há pouco mais de cinco anos, lembro que o edital falava que atuaríamos como apoio de professor em sala de aula, o que nunca aconteceu. Sempre atuei só ou com outra auxiliar. Até 2016, tínhamos plano de aula e um diário que assinávamos como docente, para registro das atividades e das faltas, e para avaliações dos alunos. Conseguimos mudar isso após protestos, passando a receber os planos de aula prontos e tendo suspensos os diários. Ainda assim, sigo fazendo tudo igual a professor. Até o ano passado (2017) eu e outra monitora atendíamos 20 crianças de dois e três anos, cuidando tanto do pedagógico quanto do cuidar. Afinal, o banho, o almoço, as brincadeiras, tudo que fazemos é importante, tem uma intencionalidade. Não temos, por exemplo, formação em serviço. A coordenadora pedagógica da escola é acessível, mas tiro mais as dúvidas com as amigas ou pesquiso na internet. A situação melhorou, passamos a fazer parte do quadro de educação, mas nosso salário é menor e não temos os mesmos benefícios que as professoras, ainda que sejamos tão responsáveis pelas crianças quanto elas. Só que ficamos mais tempo, oito horas diárias, e é puxado – falta sermos reconhecidas.”
> Monitora de educação infantil na rede municipal de ensino de Patrocínio, Minas Gerais. Concursada, tem o magistério e estuda pedagogia.
Outro lado: A Secretaria Municipal de Educação de Patrocínio disse que os planos de aula e os diários eram prática da gestão anterior e que isso não ocorre mais. Sobre carga horária e salário, o órgão afirmou que ambos estavam previstos no edital do concurso realizado também pelo governo passado. Segundo documento enviado pela secretaria, são funções do monitor: executar atividades de recreação e trabalhos educacionais de artes, e auxiliar na higiene pessoal, na alimentação e no desenvolvimento da coordenação motora, entre outros aspectos. A secretaria afirmou que “está aberta ao diálogo e ciente da situação, mas que o caso dos monitores está sendo acompanhado pelo Legislativo e pelo Executivo para atender algumas situações”.
“Até 2017, atendia um grupo de 14 crianças de dois e três anos que ficavam na escola em regime integral. Minha jornada era das 7h às 17h, com duas horas de almoço. De manhã, éramos eu e outra docente, mas à tarde ficava só com o grupo e seguia rotina igual a de professor – fazia chamada, promovia atividades como brincar de casinha ou desenhar, levava as crianças ao parque da escola e dava banho em todas elas, com a ajuda de uma auxiliar volante. É complicado trabalhar sozinha. Se uma criança quer ir ao banheiro, eu tenho de acompanhá-la, deixando todos os outros pequenos sós. Atuava em uma sala que era longe do banheiro e tinha de pedir para a auxiliar da turma vizinha ou a merendeira dar uma olhada no grupo enquanto me ausentava, o que não é o certo. Às vezes, acontecia de uma criança bater na outra e eu não estava lá. Temos formação somente duas vezes por mês e, às vezes, algum curso de capacitação. Quero mudar de profissão. Trabalhar com criança é coisa séria, só que se exige muito e paga-se pouco.”
> Monitora de educação infantil na rede municipal de ensino de Leme, São Paulo. Concursada, tem formação em nível médio.
Outro lado: A reportagem entrou em contato por e-mail e telefone com a secretaria de Educação do município e com o secretário de Comunicação, mas não obteve retorno.