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Autor

Gabriel Perissé

Publicado em 16/06/2016

Educação como tradução

Tradução não é a mera transposição de ideias de um idioma para outro. Traduzir consiste em realizar um encontro entre textos (e realidades) diferentes, exercício que supõe o aprendizado de novas formas de ver e entender o mundo. Um tradutor, portanto, educa-se e se transforma […]

Tradução não é a mera transposição de ideias de um idioma para outro. Traduzir consiste em realizar um encontro entre textos (e realidades) diferentes, exercício que supõe o aprendizado de novas formas de ver e entender o mundo.
Um tradutor, portanto, educa-se e se transforma em educador, na medida em que seu trabalho coopera para o diálogo entre culturas, tempos, individualidades e saberes. No contexto escolar e acadêmico, por outro lado, também o educador (educador, em suma, é aquele que educa ensinando e ensina educando) é um “tradutor”, se levarmos em conta sua tarefa de mediador entre linguagens.
Essa relação bidirecional entre traduzir e ensinar permite dois subtítulos para este artigo. Comecemos por aquele que faz do tradutor alguém que ensina.
Traduzir é ensinar
Uma série de preocupações sobrevoa a mente do tradutor enquanto ele luta (ou brinca) com as palavras. Uma delas é garantir que o texto a ser (re)produzido num novo idioma seja não só compreensível mas agradavelmente legível. Digamos que o tradutor está às voltas com uma obra escrita em francês e quer traduzi-la para o português. Como fazer para que o leitor brasileiro tenha, ao ler, a mesma compreensão e o mesmo prazer que o leitor francês teve diante do original? Como fazer para que o leitor aprenda, quase sem perceber que está aprendendo, enquanto lê uma boa tradução?
Vejamos um trecho do livro Le songe de Monomotapa, de Jean-Bertrand Pontalis. Antes, porém, uma breve explicação. Neste O sonho de Monomotapa (em francês, a palavra é oxítona, pronuncia-se “Monomotapá”, mas em português, é paroxítona), o autor refere-se a uma fábula de La Fontaine em que dois amigos, vivendo nessa região (que correspondia a um império africano hoje extinto, ao sul daquele continente), compartilhavam entre si, com grande generosidade, todos os seus pertences. O livro é uma longa reflexão sobre a amizade.
No trecho que escolhi, o psicanalista e escritor Pontalis conta uma pequena história. O filósofo e professor Raymond Aron tinha um aluno chamado Ferdinand Pouillon, que nunca anotava nada durante as aulas. Incomodado, Aron lhe perguntou a razão daquela atitude. Pouillon respondeu com altivez: “Je ne vois pas pourquoi je noterais des conneries.” Trinta anos depois, sem jamais ter esquecido essa resposta, Aron encontrou-se com seu ex-aluno, e lhe disse: “Você tinha razão em não anotar. Eu não preparei bem aquelas aulas.”
Ora, como traduzir a palavra “conneries”? É uma gíria para pensamentos, palavras ou atos estúpidos. No entanto, pelo fato de ser gíria, não me parece adequado traduzir por “estupidezes”. Só caberia fazê-lo, a rigor, se estivesse ali a palavra francesa “stupidités”, ou equivalente. Uma gíria em francês pede uma gíria ou uma expressão popular em português.
O termo “connerie” está associado ao que há de pior: “idiotice”, “imbecilidade”, “cretinice”. Alternativas mais leves: dizer “asneiras”, “besteiras”, “estultices” ou “tolices”. Minha preferência recai sobre “papo furado”, “conversa mole” e “encheção de linguiça”, o que permitiria, por exemplo, a seguinte tradução daquela resposta de Pouillon: “Não vejo razão alguma para anotar essa encheção de linguiça!”.
Ensinar é traduzir
Professores não devem recorrer à arte de encher linguiça, ou embromar, ou enrolar os alunos. Tudo isso é, no fundo, tentar ludibriá-los… e enganar a si mesmo.
Ensinar é traduzir: devemos encontrar formas claras e criativas que nos ajudem a apresentar, na “língua” dos alunos, o que está na “língua” da ciência.
Traduzir não significa diminuir a exigência ou empobrecer o conteúdo. O que mais oprime ou intimida um aluno não é propriamente a profundidade de um tema ou a complexidade de uma teoria, mas as formas discursivas com que se propõem esses temas e teorias.
O professor Mario Sérgio Cortella, em suas palestras, ensina que o protagonista do seriado mexicano Chaves encarna Diógenes Laércio, principal representante da Escola Cínica. Segundo a lenda, Diógenes vivia num barril, e Chaves (interpretado por Roberto Bolaños) passa um bom tempo dentro de um barril, ou talvez até durma dentro dele. Outras interessantes semelhanças existem entre o filósofo grego e um dos mais populares personagens da televisão latino-americana. Cortella está traduzindo Diógenes para nós.
Também o físico e professor Marcelo Gleiser age como um tradutor que ensina, todas as vezes em que procura imagens com as quais nos explica determinados conceitos científicos. Já no seu primeiro livro (A dança do universo, de 1997), escrevia:
De modo a explicar os movimentos do sistema solar, Descartes criou um intrincado sistema de vórtices que transportam os planetas em suas órbitas ao redor do Sol. Numa imagem mais mundana, capaz de ajudar a visualização do efeito imaginado por Descartes, podemos imaginar o vórtice criado em torno de um ralo de uma banheira que se esvazia, cercado de rolhas flutuando ao seu redor.
Sem receio de ser “mundano”, o autor recria uma cena cotidiana, traduz para um “idioma caseiro”, ao alcance de todo mundo, o conhecimento intrincado. Planetas e rolhas, Sol e ralo. Isto significa ensinar!
Gabriel Perissé é professor e pesquisador da pós-graduação em Educação da Universidade Católica de Santos – www.perisse.com.br


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