NOTÍCIA
Uso mais intenso de métodos consensuais abre novas perspectivas no campo do direito e tende a ganhar mais espaço nas instituições de ensino
Desde o final do ano passado, entraram em vigor no país duas leis que estimulam a solução de conflitos pelo consenso entre as partes, antes de os casos chegarem aos tribunais. Em dezembro, entrou em vigência a Lei de Mediação (13.140/2015) e, no último dia 18 de março, o novo Código de Processo Civil. Esses dois marcos legais surgem cinco anos depois da resolução 125 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que visava o desenvolvimento de uma política pública em que a mediação fosse um modo prioritário para equacionar conflitos.
Com isso, a tendência é de que haja uma mudança na cultura de gestão de conflitos, com impactos significativos no sistema judiciário e, consequentemente, nos meios acadêmicos, sobretudo nos cursos de direito (embora um mediador possa ter formação em outras áreas).
“O aluno precisa estar formado para não ser só um profissional litigante, mas para entender que existem múltiplas formas de resolver conflitos. Com o novo marco legal, sem dúvida, essa preocupação aumenta, porque todo o processo judicial vai passar por essa fase”, analisa Daniela Gabbay, professora da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas.
“Hoje a mediação é necessária em todas as áreas em que se tem público interno e público externo. Onde tem gente tem conflito. E você precisa dessa formação de gestão de conflitos para que as coisas funcionem”, observa Annie Dymetman, professora da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu (USJT).
Os efeitos dessa mudança poderão ser notados na relação dos profissionais da área de direito com o mercado de trabalho. “O graduando, numa perspectiva de formação, deve pensar também na sua atuação como advogado solucionador de problemas e ter um portfólio amplo de serviços a prestar, e não pensar apenas no processo judicial como única via, mas pensar na mediação, na negociação, na arbitragem”, diz Daniela, da FGV (leia texto sobre as diferenças na pág. 18). Para os advogados já formados, esse também é um campo que se abre, algo que já pode ser notado pelo aumento da oferta de cursos nessa área. “Os graduados vão buscar cursos de capacitação, dentro da pós-graduação, não são mestrado e doutorado, são cursos de especialização, até porque veem a mediação como um mercado de trabalho também.”
Com as medidas que preconizam os métodos consensuais, é esperado que o assunto ganhe espaço no ambiente acadêmico. Na São Judas, a mediação passou a ser disciplina obrigatória no semestre passado, conta a professora Annie. “É uma atividade do direito e a tendência é que realmente se espalhe. Não tem volta.” A mediação já estava na pauta da universidade em 2008, quando foi criado um curso complementar sobre o tema. “Era um curso em caráter experimental, para 150 pessoas, oferecido aos sábados à tarde, que é um péssimo horário. Desde o começo era uma ideia interdisciplinar, abrir esse curso para direito e estender para psicologia e comunicação. Mas como não tinha dado tempo de falar com os coordenadores destas outras duas graduações, íamos primeiro abrir oferecimento no portal só para direito, e no dia seguinte falar com os demais. Mas, em 12 horas, tivemos 444 inscritos, só do direito. Isso mostra o tamanho da demanda que havia naquela época, quando a mediação não tinha nenhuma oficialização”, recorda. Ministrado na unidade Butantã, o assunto ainda era incipiente no meio acadêmico. “A gente trabalhou com conflitologia e com o material que havia naquela época. E foi desenvolvendo técnicas para trabalhar conflitos. Esse curso era dado a cada 15 dias e durou um ano. Dos 444 inscritos, 250 se formaram”, diz.
Além da teoria
E o conhecimento não ficou só na teoria, passou a ser aplicado no âmbito interno da São Judas, para solucionar problemas que envolvessem alunos, professores e funcionários. Em 2011, a instituição inaugurou a primeira casa de mediação acadêmica do Brasil. Depois, o serviço foi estendido para a população no entorno das unidades Butantã e Mooca. Atualmente, a Casa de Mediação atua com o conceito de transmediação, em que, num primeiro momento, cada parte envolvida no conflito é trabalhada individualmente, e só depois são colocadas frente à frente. “Os dois lados são trabalhados nas suas percepções e começam a ficar prontos não só para falar como principalmente para ouvir. A partir de então, podemos fazer um encontro tripartite”, explica Annie.
Na PUC-SP, o assunto também ganhou uma abordagem própria. Em 2014, foi lançado um curso de extensão de formação de conciliadores e mediadores sociais. “Esse curso nasceu para nós, dentro da doutrina social da Igreja, ligando aquilo que a Igreja fala do social, da justiça, da ética”, diz o padre José Bizon, coordenador do curso. Ele conta que a turma teve 55 alunos até o final do curso, sendo que alguns não eram da área de direito. “Eram profissionais liberais, dentistas, professores, pessoas de comunidades, com o intuito de entrar nessa nova dinâmica, com perspectiva com essa nova lei também, e de ajudar as pessoas num método mais rápido, mais simples.”
Para Bizon, o mediador precisa ter “grande sensibilidade e senso de justiça aguçado, ser ético, conhecer o trâmite das leis para que possa conduzir o processo em questão. Não pode ser parcial e, a partir do diálogo, tem de conduzir as pessoas à reconciliação. Ele tem de fazer esse meio de campo”, observa.
Na FGV, há cursos de formação de mediadores oferecidos ao longo do ano, inclusive no modo on-line. Na graduação em direito, o tema é abordado em alguns períodos. No início do curso, a disciplina negociação contempla a mediação. Nos quarto e quinto anos, existem as clínicas que são escolhidas pelos alunos. São sete opções, como direito tributário, direitos humanos e empresas, desenvolvimento sustentável. E também a de mediação e facilitação de diálogos, surgida em 2010. Daniela Gabbay, criadora do programa, explica que a clínica atua num tripé. A primeira frente é a comunitária, junto a uma rede social da Bela Vista, bairro central de São Paulo onde está a clínica. A rede é composta por organizações, entidades e moradores da região. “Nos últimos dois anos, por exemplo, desenvolvemos a mediação nas escolas públicas do bairro”, conta.
A segunda é a mediação institucional, em que são desenvolvidos projetos e iniciativas em relação a instituições do sistema de justiça. “Neste semestre, por exemplo, estamos desenvolvendo um guia de triagem de conflitos para a defensoria pública, para que ela possa direcionar uma parte dos conflitos que chegam até ela para a mediação, em vez de direcionar diretamente para o Judiciário”, explica. A clínica trabalha sempre com a perspectiva de entrega de um produto que tenha um impacto na sociedade.
A terceira área de atuação é a empresarial. “Atividades mais relacionadas ao mercado privado da mediação, a gente atua bastante junto a uma câmara privada de mediação,que é a câmara da GV”, diz Daniela.
.
Simplificação
A prática da mediação tende a trazer benefícios para a população atendida no que se refere a custos e rapidez do processo. Mesmo que feita em uma câmara privada, a mediação costuma ter um custo menor que um processo judiciário tradicional. Em parte, porque também é possível estimar o número de sessões necessárias até a conclusão do caso. Se as partes chegarem a um acordo, o processo se torna mais célere do que num trâmite judicial.
De forma geral, há uma percepção de que a prática sistemática dos métodos consensuais pode contribuir para reduzir as pilhas de processos que lotam os tribunais. Segundo o relatório “Justiça em números” do Conselho Nacional de Justiça, em 1998, ano em que a Constituição foi promulgada, havia 350 mil processos em curso no Judiciário, 25 anos depois, eram 92 milhões. Atualmente, a estimativa é de que sejam 100 milhões de processos em trâmite no país.
Os métodos consensuais podem ajudar a desafogar o sistema judiciário. Mas não existe uma relação direta de causa e efeito. “Não é que a mediação serve para tudo e, dessa forma, vai ser um filtro de tudo que chega ao Judiciário. Ela tem características específicas, em que é preciso olhar o conflito para ver se a técnica se adequa”, diz Daniela Gabbay. E explica que se as duas partes não quiserem, a mediação não acontece. Se apenas uma estiver disposta, o procedimento é realizado. E há também os chamados casos de conflito indisponível, um caso penal ou ambiental, por exemplo, em que a mediação não é aplicável.
De todo modo, a priorização da busca do consenso em detrimento do embate pode sinalizar o surgimento de uma nova mentalidade no campo do direito. “Tenho a impressão de que essa nova forma, essa alteração no código, vai começar gradativamente a instaurar uma cultura que é menos para o confronto, para o enfrentamento, diria até que é um processo mais civilizador”, avalia a professora Annie.
Acordos sob medida |
A professora Daniela Gabbay, da FGV, explica as diferenças básicas entre os diferentes métodos que visam resoluções consensuais de conflitos. . Negociação: “Não existe o terceiro, ela é feita diretamente entre as partes.” . Arbitragem: “O terceiro, que é o árbitro, decide o conflito. Pode até ser comparado ao Judiciário. É como se fosse um juiz privado. As partes vão escolher o julgador daquele conflito e ele vai decidir por elas.” . Mediação e conciliação: “Enquanto na arbitragem o terceiro é um decisor, na mediação e conciliação o terceiro é o facilitador. A distinção se dá pela atuação do terceiro e pelo tipo de conflito. Se o terceiro é mais proativo, mais participativo, sugere soluções, ele é um conciliador. Se o terceiro é mais facilitador, trabalha mais a relação continuada, não sugere soluções, ele é um mediador. A conciliação trata de relações que não seriam continuadas. Por exemplo, em uma batida no trânsito o terceiro pode ser mais propositivo: ‘Olha, o Judiciário tem decidido assim’, isso seria uma conciliação. Agora, numa situação de família em que um casal está decidindo sobre a guarda do filho, isso se configura como uma relação continuada. A posição do terceiro seria diferenciada, seria um mediador.” |