NOTÍCIA

Edição 223

No caminho da inovação

Atualizar processos educacionais de modo a torná-los mais sintonizados com o mundo contemporâneo virou uma grande obsessão. Mas a simples adoção de equipamentos tecnológicos não produz transformações

Publicado em 04/11/2015

por Luciana Alvarez

No caminho da inovação

 

© Gustavo Morita
Laboratório de criação do Lourenço Castanho: alunos são estimulados a pensar em soluções para problemas do cotidiano utilizando conhecimentos de física, matemática e outras áreas

 
De panaceia a vilã, a tecnologia recebe inúmeros rótulos quando aplicada à educação. Ao tentar enxergá-la de forma desapaixonada, contudo, percebe-se que se trata de uma ferramenta que pode ser usada tanto para provocar mudanças como para reproduzir antigos sistemas. Quando aproveitada criativamente e com propósito, as aplicações tornam-se variadas, mas todas acabam tendo ao menos um benefício em comum: o maior engajamento dos alunos. Esse único fator já traz em si potencial transformador inegável. Mas a tecnologia pode ir muito além.
Existe uma tendência atual de escolas usarem a tecnologia como forma de acompanhar os estudantes de forma mais individualizada. Do lado dos alunos, defende-se que eles vêm ganhando mais autonomia sobre o seu aprendizado e a possibilidade de serem agentes criadores, capazes de usar o conhecimento que estão adquirindo para atuar no mundo. As interações com colegas e professores se tornaram instantâneas, o que proporciona um trabalho mais colaborativo. Quando isso acontece, é sinal de que as novidades tecnológicas de fato estão produzindo inovações no processo de ensino-aprendizagem.
Em São Paulo e nas grandes cidades do país, é comum as escolas particulares adotarem os tablets como instrumentos de ensino. No Colégio Bandeirantes, o equipamento é um recurso didático de uso diário nos 6º e 7º anos. Mais do que substituir os livros, nas mãos dos alunos ele cumpre o papel de gerenciador de todas as atividades pedagógicas. Por meio do uso de um aplicativo específico,  os professores postam documentos de texto, planilhas, apresentações, imagens, vídeos, músicas, livros digitais etc. Os alunos podem fazer anotações nos materiais – uso que substitui o caderno – e trabalhar em grupo usando o mesmo servidor, como explica Sílvia Vampré, coordenadora de tecnologia educacional do colégio.
Apesar disso, ainda há algumas barreiras para o uso mais amplo, como a falta de bons livros didáticos em formato digital. “O material de português e história, que já era desenvolvido por nossos professores, foi reconstruído para o digital. Porque não basta “traduzir” de uma mídia para outra, tem de rever tudo para tornar o conteúdo multimídia”, afirma.
Do ponto de vista pedagógico, há ainda mais um benefício: a possibilidade de o docente acompanhar a atividade dos estudantes praticamente em tempo real. “Fica tudo registrado ali: o desempenho de cada aluno nos exercícios, da turma como um todo, uma série de informações que ajudam o professor a tomar decisões de acordo com as necessidades da turma e também pontualmente com cada aluno.” Se as estatísticas mostram que grande parte da classe errou uma mesma resposta, o professor sabe que precisa retomar o assunto, provavelmente com outra abordagem (leia mais na matéria da pág. 56).
A tecnologia acaba promovendo mudanças de estratégias de forma mais geral porque também muda as relações entre os membros da comunidade escolar. “A proposta é que todos trabalhem juntos. Hoje é comum ter os alunos estudando de forma mais autônoma”, diz Sílvia.
E os tablets são apenas uma maneira de a tecnologia estar presente no Bandeirantes; há muitas outras aplicações. O colégio aproveita em sala de aula diversos aplicativos, como alguns para montar histórias, editar vídeos e construir mapas mentais, que são ferramentas extras para o aluno aplicar no seu aprendizado, se desejar.
Colaboração
Embora a rede privada, com mais recursos, costume ser a precursora no uso de novos recursos tecnológicos, uma das referências mais alardeadas no país em termos de educação com tecnologia é o Núcleo Avançado em Educação (Nave), da rede estadual do Rio de Janeiro, uma escola moderna e de vanguarda – e que pode ser assim por causa do patrocínio do Instituto Oi Futuro. Mais uma vez, a proximidade das relações e um aprendizado com colaboração são apontados como peças-chave para entender as mudanças promovidas pela tecnologia.
O Nave é uma escola de nível médio integrada ao ensino técnico com três opções de cursos: técnico em roteiros para mídias digitais, em geração multimídia e em programação de jogos digitais. Para entrar, os estudantes se submetem a um concorrido processo seletivo – são 160 vagas por ano. Quem é aprovado passa 10 horas por dia (das 7h às 17h horas) no local, um verdadeiro centro de pesquisa e inovação em cultura digital.
Para além da presença de recursos tecnológicos de ponta, a diferença da instituição está na organização das atividades de professores e estudantes: a escola trabalha com a ideia de “times”, sendo que cada time de alunos tem de cinco a sete membros, sempre com um educador mentor. “Eles orientam não apenas nos projetos e assuntos gerais da escola, mas também no projeto de vida dos estudantes”, ressalta a diretora, Ana Paula Bessa. “Se o aluno diz que o sonho dele é ir para a Lua, o professor vai orientar o que ele precisa fazer para conseguir. A escola passa então a fazer sentido”, avalia.
A busca pela integração
Os conteúdos são trabalhados em grandes projetos, nos quais os estudantes se aprofundam em temas relevantes e usam o conhecimento em questões práticas. “No projeto sobre alimentos, a alimentação foi abordada sob o ponto de vista da sociologia, da química, da física, enfim, usando todas as instâncias cognitivas possíveis”, exemplifica Ana Paula. E nas disciplinas do curso técnico, os alunos elaboraram produtos reais, como games usados para a disseminação das informações para a sociedade.
Para integrar, o currículo alterna disciplinas do curso profissionalizante com as matérias tradicionais. O projeto pedagógico também afeta a organização espacial: as salas têm um mobiliário leve para que as carteiras possam ser agrupadas com facilidade, de acordo com a necessidade de cada aula. Tudo isso ajuda a formar cidadãos completos. “A tecnologia é um grande chamariz, mas não vamos ensinar a apertar parafusos. Visamos a formação integral. Nos preocupamos com o mercado de trabalho, mas também com a formação de pessoas solidárias, com competências cognitivas e emocionais. Nossos alunos se destacam muito pela postura, pela forma de se apresentar”, disse a diretora.
Criado há 8 anos, o Nave foi reconhecido pela Microsoft como uma das 30 escolas mais inovadoras do mundo já em 2009. No último Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), os alunos da unidade tiveram o melhor desempenho entre todas as unidades da rede estadual do Rio.

© Gustavo Morita
Uso de tablets no Bandeirantes: material didático e ferramenta para gerenciar as atividades realizadas

O exemplo mostra que a tecnologia é um canal para transformações – mas que ela não faz isso sozinha. Para produzir inovações, a escola precisa estar aberta à experimentação, defende André Guadalupe, vice-presidente de operações da QMágico, empresa que oferece um ambiente virtual
colaborativo para experiências pedagógicas. “Tem de ser uma experimentação com responsabilidade, claro, mas o gestor precisa se arriscar para adotar novas práticas e aperfeiçoar o trabalho, vendo o que funciona melhor para o seu público”, afirmou.
As tecnologias digitais fazem com que a escola se integre mais ao restante do mundo, acredita Guadalupe. “Cada vez mais o aluno tem informações que colhe no mundo, percebe que todos os ambientes são, potencialmente, de aprendizagem. Isso muda o papel do professor; ele não pode mais ser um palestrante, passa a ser um mediador de discussões que ocorrem em cima de problemas complexos da realidade”, diz.
Possibilidade de inclusão
Ao expandir os limites de onde é o território do aprendizado, que não fica mais restrito à sala de aula, e oferecer formas alternativas e individualizadas de abordar conteúdos, a tecnologia tem sido uma importante ferramenta para promover a inclusão. No Grupo de Assistência à Criança com Câncer (Gacc), de São José dos Campos (SP), há mais de dez anos existe um grande esforço para manter a criança inserida no mundo do aprendizado, apesar da doença. Mas a cada dia, a tecnologia vem oferecendo formas novas e mais atraentes de fazer esse trabalho.
Toda vez que uma criança é admitida como paciente, algum profissional da equipe do Gaac visita a escola para falar com diretores, coordenadores e professores – e até com os colegas de classe – e explicar sobre a doença e o tratamento. Ele também aproveita para levantar quais conteúdos ela estaria tendo se estivesse frequentando a escola normalmente. “Como a imunidade fica muito baixa, às vezes a criança tem de ficar seis meses ou um ano afastada da escola”, explica Elisângela Alvarenga, instrutora de informática. Para não precisar fazer várias visitas à escola – o Gacc atende crianças de 39 municípios – a atualização dos conteúdos é feita via e-mail.
No começo, para acompanhar o que estava sendo feito em sala da aula, as crianças com câncer contavam apenas com a ajuda de professores voluntários que atuam no hospital. Há dois anos, uma parceria com o Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) levou aos pequenos a “Caixa”, dispositivo semelhante a um computador com conteúdos off-line, como jogos educativos, videoaulas etc. Hoje, as crianças internadas recebem tablets configurados com vários conteúdos educativos.
“Nem sempre a criança está bem disposta quando está com o professor. A gente precisa respeitar o momento dela, porque não vai aprender nada de matemática se estiver enjoada ou ansiosa com algum procedimento pelo qual tenha de passar”, explica Elisângela. Com os dispositivos digitais, há novas opções para promover o aprendizado, como no caso dos jogos educativos, que as relaxam, e também a possibilidade de a criança estudar na hora que desejar, mesmo que esteja sozinha no quarto, sem nenhum professor por perto.
Ainda assim, o trabalho educativo até então ficava restrito aos momentos em que a criança estava no Gacc. Muitas vezes elas aparecem regularmente para consultas, mas passam a maior parte do tempo em casa – e longe da escola para terem menos risco de contrair doenças. Para atender também a esses casos, no 1º semestre de 2015 o Gaac passou a oferecer cadernos digitais, disponíveis on-line pela plataforma QMágico. Assim, elas acessam os conteúdos de qualquer dispositivo ligado à internet: celulares, tablets ou computadores.
“Os cadernos são montados por vários professores. Para cada assunto a gente pode propor um vídeo, incluir um texto teórico, montar uma lista de exercícios”, explica Elisângela. Quando a criança é pequena, os pais ou irmãos mais velhos ajudam a entrar no sistema. “Até criança que mora na roça, na zona rural, acaba indo para a sede da fazenda onde tem internet para estudar. A gente sabe, porque acompanha virtualmente quem está acessando, vendo vídeos, fazendo os exercícios”, afirmou Elisângela.
A inclusão de alunos com necessidades especiais e dificuldades de aprendizagem é também um dos grandes ganhos do projeto Ecoweb, desenvolvido em Campo Bom (RS), na Emef 25 de Julho. Com tablets, smartphones, câmeras digitais e binóculos, grupos de alunos saem para conhecer e registrar o meio ambiente da região. O projeto atende 60 alunos no contraturno, sendo 26 com necessidades especiais.
Após a exploração do meio ambiente, os alunos formam grupos para produzir relatórios. O que antes era considerado a parte chata do trabalho ganhou interesse pela publicação dos textos na internet. “Os relatórios podem resultar em postagens no blog ou no Facebook. Eles sabem que os pais e amigos vão curtir e acompanhar, o que os deixa motivados a desenvolver a escrita”, explica Margarida Telles, coordenadora do Ecoweb. “Recentemente, alguns alunos de 2º ano que estavam com dificuldades de alfabetização mostraram um desenvolvimento incrível ao entrar no projeto”, conta.
Mão na massa
Quando chove, as turmas aproveitam para desenvolver trabalhos de reaproveitamento de materiais. Tudo é postado na internet, com o passo a passo para as pessoas poderem reproduzir em suas casas. “A tecnologia é usada para fazer o registro e para sensibilizar a comunidade”, afirmou Margarida. Com simplicidade e eficiência, o projeto já recebeu uma série de prêmios.
 

Divulgação
Nuvu Studio: oficinas multidisciplinares com foco no desenvolvimento de produtos reais

 
Aprender por meio de uma experiência real, poder pôr “as mãos na massa” e construir coisas, é um caminho adotado por muitas escolas, mas um número cada vez maior delas está proporcionando a oportunidade de seus alunos construírem protótipos de produtos eletrônicos e de informática. No colégio paulistano Lourenço Castanho, desde o início do ano os alunos dispõem de um laboratório de criação, inspirado no modelo americano fab lab, laboratório de prototipagem usado mais comumente em universidades.
A metodologia segue a linha que reúne em projetos os diversos saberes do grupo chamado de Stem – acrônimo em inglês para ciência, tecnologia, engenharia e matemática. “Eles têm muitas ferramentas, materiais e uma impressora 3D para construir o que imaginarem. O aluno não fica apenas no plano das ideias; imagina e cria”, explica o professor Rodrigo Lemonica. O laboratório de criação tem três ambientes para construção de todo tipo de objetivo de forma colaborativa: o maker space, com ferramentas, madeira, metais; o hacker space, com a parte de eletrônica e placas para criarem circuitos, e um fab lab, que é o espaço de fabricação digital.
“O laboratório é um espaço para ampliar a autonomia dos alunos, pois são estimulados a propor soluções para problemas do cotidiano, em aprender fazendo”, afirmou. E eles estão de fato propondo suas respostas. Em resposta à crise hídrica, alunos do 8º e 9º anos propuseram a construção de uma cisterna dentro da escola – e a direção vai de fato colocar o projeto em prática, segundo as orientações dos estudantes. São eles também que estão fazendo um estudo de viabilidade para colocar painéis de energia solar no colégio. “Eles são responsáveis em todas as etapas: pesquisa, criação, testes, aperfeiçoamento”, diz Lemonica.
Experiências internacionais
Um dos principais propulsores do movimento global de instigar os alunos à pesquisa e à construção de seus objetos de desejo é a Fab Foundation, ligada ao Centro de Bits & Atoms do Massachusetts
Institute of Technology (MIT), nos Estados Unidos. Criada em 2009, ela pretende criar uma rede global de fab labs como o da Lourenço Castanho. Atualmente, os laboratórios associados à iniciativa já ultrapassam 450 unidades, em 60 países. Grande parte deles em instituições de ensino, mas não só.
Um laboratório desse tipo precisa ter máquinas de fabricação digital, ferramentas eletrônicas, além dos softwares que permitam aos estudantes construir protótipos de forma rápida. Os equipamentos são profissionais, porém de baixo custo, como uma máquina de corte a laser, uma máquina de corte de vinil (que fabrica antenas e circuitos flexíveis), uma fresadora de alta resolução para fabricar circuitos. Impressoras 3D também podem estar no pacote. A ideia é criar um movimento que democratize o acesso às novas tecnologias de fabricação e incentive o empreendedorismo.
Algumas experiências estão ampliando ainda mais essa visão do “aprender fazendo”, ao colocar os estudantes para construir coisas e soluções durante todo o horário de aulas. Alunos de ensino fundamental e médio (com idades entre 11 e 17 anos) de Cambridge, nos Estados Unidos, têm acesso a uma escola bem diferente, o Nuvu Studio – que nem sequer ostenta o nome de escola, apesar de na prática ser uma.
Sua pedagogia é articulada por meio de projetos colaborativos e multidisciplinares. Ela diz ajudar seus alunos a “navegar” pelo processo criativo da ideia inicial, passando pelo projeto e chegando à conclusão, com a entrega de um produto real, para um problema do mundo. Em vez de disciplinas, o Nuvu oferece “estúdios” temáticos onde cerca de 12 crianças trabalham sob a supervisão de dois tutores, sempre com o foco em resolver problemas – pode ser sobre aquecimento global ou ficção científica, por exemplo.
Cada estúdio tem duração de duas semanas; as atividades são diárias, das 9 às 15 horas.
Inicialmente, os estudantes precisam resolver certos exercícios-desafios, para construir diversas habilidades, integradas no projeto final. Não há disciplinas, nem salas de aula: eles aprendem em um espaço aberto, que se modifica para atender às necessidades de cada grupo. Ao final, ninguém recebe notas; no lugar disso, ganham portfólios que documentam as decisões dos estudantes e mostram seus produtos finais. O modelo, garantem os diretores do Nuvu, faz com que os estudantes ganhem liberdade e autoconfiança, além de conhecimentos.
Os alunos podem fazer os cursos durante as férias de verão (duração de 2 a 6 semanas) ou passar um trimestre ou semestre lá, se sua escola regular for uma das parceiras do Nuvu. Para aqueles que desejam passar um ano inteiro, há um aconselhamento e uma programação feita com a família, e o estudante precisa frequentar cursos suplementares on-line e off-line. A sede fica próxima ao campus do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e oferece acesso a recursos e professores de lá.
Em todos os casos, o benefício da sedução dos jovens embute um mesmo risco: o de que, após um deslumbramento inicial que espalhe as novidades como rastilho de pólvora – ou que as “viralize” – descubramos sua obsolescência antes de efetivamente sabermos se estão mudando o ensino. Por isso, às escolas convém sempre manter um pé lá e outro cá.

Autor

Luciana Alvarez


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