NOTÍCIA

Ensino Fundamental

Autor

Marta Avancini

Publicado em 06/03/2015

Na escola em tempo integral, alunos e professores veem o período da manhã como trabalho e o da tarde como brincadeira

Pesquisa revela a preferência das crianças pelas atividades lúdicas, que normalmente são deixadas de lado na sala de aula

Nair Salgado: as crianças compreendem a oposição entre jogo e trabalho

As crianças possuem, desde pequenas, uma percepção clara sobre as dicotomias e contradições existentes no ambiente escolar. Evidência disso são os resultados da pesquisa de mestrado da professora de educação física Nair Correa Salgado, defendido no programa de pós-graduação em Educação da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Presidente Prudente.

De março a novembro de 2011, Nair investigou as percepções de 21 crianças de 1º ano do ensino fundamental em uma escola municipal de Presidente Prudente sobre o ambiente escolar. Na época, as crianças estudavam numa escola que participa do Programa de Educação Integrada Cidadescola que, como o nome sugere, é a estratégia de educação integral local.

A pesquisa ganhou, então, um duplo contorno – compreender o programa Cidadescola no âmbito das políticas de ampliação do ensino fundamental e da implantação da escola de tempo integral no município e, ao mesmo tempo, investigar os pontos de vista das crianças sobre as atividades desenvolvidas nesse contexto, especialmente em relação ao tema da ludicidade.

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Mudança de rumo

“Quando eu entrei no mestrado em 2009, tinha a intenção de analisar a prática de uma professora de 1º ano. Mas ocorreu a mudança para o ensino fundamental de nove anos e, aqui em Prudente, houve a implantação do Cidadescola”, relembra Nair. Essa combinação de fatores a levou a redirecionar o foco de sua pesquisa para a percepção das crianças sobre sua escola. “Diante disso, o projeto de mestrado mudou. Passou a ser a visão das crianças com relação às mudanças.”

A coleta de dados ocorreu entre março e novembro de 2011. Para realizar a investigação, Nair usou a etnografia, a observação participante e entrevistas com professores, além de metodologias destinadas a colocar as crianças na posição de sujeitos de pesquisa por meio de canais de expressão próprios: fotografias, desenhos e entrevistas coletivas.

Foram selecionados para a pesquisa alunos que cursavam o 1º ano regular no período da manhã e, de tarde, participavam de três oficinas do Cidadescola, ofertadas pela própria Nair – além de pesquisadora, ela atua como professora da rede municipal.

A criança como sujeito

Para tanto, Nair fundamentou a pesquisa em especialistas em sociologia da infância, como William Corsaro e o português Manuel Sarmento, além de autores como Elizabeth Graue e Daniel Walsh, que se aprofundam nas reflexões sobre a infância e no desenvolvimento de metodologias que colocam as crianças como sujeitos de pesquisa.

Além disso, Nair entrevistou professores que atuam tanto em sala de aula durante o período regular, quanto nas oficinas do Cidadescola. Dessa forma, ela pôde analisar e confrontar distintas perspectivas e pontos de vista.

Na pesquisa as crianças foram orientadas por Nair a fotografar situações e elementos no ambiente escolar que julgassem ser interessantes. A cada dia, uma criança era sorteada para fotografar.

Com as fotos feitas pelos alunos em mãos, Nair selecionava aquelas que considerava mais interessantes e pedia para as crianças fazerem o mesmo. Ao fazer a seleção, a pesquisadora constatou um aspecto fundamental para sua investigação: a diferença de pontos de vista e de visões entre adultos e crianças.

“Elas tiravam fotos dos coelhos da escola e das mochilas. Fiquei intrigada com aquilo, eram bolsas e mais bolsas”, relata. “Eu perguntei para uma menina: por que você está tirando foto da bolsa? Ela respondeu: mas eu não estou tirando foto da bolsa, eu estou tirando foto da Tinker Bell, do Batman, do Homem Aranha”, conta a pesquisadora.

Com isso, Nair percebeu que as crianças estavam fotografando os personagens de que gostavam e que tinham significado para eles, não as mochilas. “O que já mostra como crianças e adultos veem as coisas de maneira totalmente diferente.”

Além disso, a seleção das fotos mais significativas da pesquisadora raramente coincidia com a das crianças. E quando coincidiam, os motivos eram diferentes. “As crianças diziam: ah, escolhi porque estou com o meu amigo; enquanto eu escolhia porque eles estavam fazendo uma atividade legal, interessante. Eles não estavam nem aí com a atividade, eles estavam desfrutando da relação com seus pares.”

Essa percepção foi importante para Nair aprofundar as análises sobre a questão norteadora da pesquisa: a ludicidade na escola.

“A pesquisa mostrou que muitas crianças compreendem a oposição entre jogo e trabalho”, aponta Nair. Para elas, trabalhar é “chato” e brincar, “legal”, levando-as a estabelecer uma divisão entre o horário de aula regular e as oficinas e demais atividades de contraturno.

 

A atração do lúdico

Segundo Nair, as crianças fizeram afirmações como “a escola está mais divertida porque há mais momentos de brincadeira” ou que “não gostavam de nada no horário da sala”. “Tais depoimentos demonstram a preferência das crianças pelas atividades lúdicas, tanto na sala de aula, quanto nas oficinas do programa Cidadescola.”

Paralelamente, a rotina da sala de aula é descrita como cansativa pelas crianças e as atividades nesse espaço parecem não ser tão atrativas quanto as que fazem fora dela. Quando perguntadas sobre as atividades preferidas nas aulas regulares, a maioria disse ser a hora do brinquedo ou a educação física.

Para Nair, essa visão aponta para a percepção de uma divisão dentro da escola – apesar de ela participar de um programa de educação integral. Assim, para as crianças existe a “escola chata”, do período regular de aulas, e a “escola legal”, das oficinas e das brincadeiras. “É como se existissem duas escolas numa mesma unidade escolar”, conclui.

 

Ouvindo o professor

Os docentes entrevistados para a pesquisa de Nair percebem a existência dessa mesma divisão, admitindo que na sala de aula estão preocupados em cumprir o currículo e o planejamento. Suas declarações à pesquisadora traduzem essa visão: “Essa história de lúdico fica realmente de lado na sala de aula”, ou “Eu reconheço que sou lúdica no Cidadescola e que não sou lúdica na sala de aula”, disseram eles durante as entrevistas realizadas pela pesquisadora Nair.

Segundo os professores, essa divisão na educação integral ocorre porque, na sala de aula, há uma série de compromissos e metas, especialmente aquelas estabelecidas por meio de indicadores – como o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) – e avaliações externas, como o Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp) e a Prova Brasil, o que não ocorre nas atividades extraclasses.

“O primeiro item que apareceu nas entrevistas com os professores foi a pressão do Ideb. Eles relataram que nas aulas regulares têm de preparar esse aluno para ler, escrever, produzir textos e que, por isso, o lúdico fica de lado. Uma das professoras chegou a dizer que, se não tivesse a educação física, talvez os alunos não tivessem nenhum momento lúdico no período regular”, descreve Nair. “Em contrapartida, no programa Cidadescola, eles podem ousar, criar, sentem liberdade para fazer coisas diferentes, têm um tempo extra que na sala de aula eles não têm.”

Na visão da pesquisadora, esses resultados apontam para o risco de uma oposição entre o “período regular” e o “contraturno”, como se fossem duas escolas diferentes na mesma unidade escolar. Esse efeito contrariaria as diretrizes didático-pedagógicas presentes na literatura e nos documentos oficiais sobre educação integral, os quais enfatizam a necessidade da adoção de metodologias que articulem e estabeleçam uma continuidade entre as atividades curriculares e extracurriculares.

A atração do lúdico

Nair alerta para os efeitos dessa divisão no que se refere à perda das potencialidades da educação integral e reflete sobre algumas possibilidades de recuperação. “Não adianta colocar o título de educação integral. É preciso mudar a visão, primeiro de quem faz essas políticas, essas pessoas precisam pensar no dia a dia da escola”, analisa Nair.

Paralelamente, os funcionários das escolas também precisam mudar de atitude, no sentido de incorporar práticas pedagógicas que possibilitem que as crianças se expressem e vivenciem o lúdico durante as aulas regulares. “Muitos professores ainda querem que as crianças fiquem sempre quietas, em silêncio.”

No entanto, a integração entre o curricular e o extracurricular é possível, desde que haja uma mudança de visão e de práticas no ambiente escolar, além de um apoio dos órgãos responsáveis pelas políticas e pela gestão, como as secretarias de Educação. “Hoje, eu percebo uma mudança nas escolas mais antigas que têm o programa Cidadescola, inclu­­sive nesta escola onde fiz a pesquisa. Há uma mudança, inclusive, no nível do projeto pedagógico, por meio da integração dos currículos.”

 Conheça a pesquisadora
Nair Correa Salgado é graduada em educaçãofísica pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Presidente Prudente. Em 2012, tornou-se mestre pelo programa de Pós-Graduação em Educação, da mesma universidade. Ela também atua como professora da rede municipal de ensino local e durante três anos foi coordenadora do programa Cidadescola em uma unidade de ensino.

 

 Saiba mais
Acesse a dissertação de mestrado Programa “Cidadescola” no 1º ano do ensino fundamental em uma escola de Presidente Prudente: entre a ludicidade e a sala de aula em http://bit.ly/1M6IB0I

 


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