NOTÍCIA
Novas crianças foram impedidas de ingressar em 2015; decisão gera incerteza sobre continuidade da assistência social da USP
A vida de Ione Messias, aluna do Instituto de Física da Universidade de São Paulo, mudou completamente quando deu à luz o seu filho. Moradora do Crusp (Conjunto Residencial da USP) e com a família no interior, a estudante não tinha com quem contar para cuidar do bebê uma vez que ele nascesse. Mas tranquilizou-se porque, para garantir que os estudantes de uma das universidades mais prestigiadas da América Latina não interrompam seus estudos, existe o sistema de creches da USP – que é inclusive um centro de referência em educação infantil no país.
O bebê de Ione nasceu no meio do ano letivo de 2014 e, de olho na oportunidade da creche, ela decidiu fazer malabarismos com sua vida de estudante e de mãe, levando o filho às aulas até que as vagas da creche abrissem. “Fui chamada em novembro para conversar e disseram que as vagas abririam, então fiquei mais tranquila. Seis meses dava para aguentar”, conta Ione. “Frequentei o semestre passado com um bebê dentro da sala de aula e fui humilhada pelos professores. Mesmo assim consegui cursar metade do semestre acreditando nas vagas da creche.”
O que Ione e outras dezenas de pais e mães não contavam, no entanto, é que o processo seletivo para as creches seria sim aberto, mas que as vagas seriam fechadas pela Superintendência de Assistência Social (SAS) da USP no início de 2015, impedindo qualquer ingresso neste ano e prejudicando famílias, já que o prazo para inscrição nas CEIs e EMEIs, da rede municipal, já havia passado.
No entanto, apesar de as famílias terem sido avisadas – ainda que em janeiro -, funcionários das creches alegam que só foram comunicados da decisão informalmente e algum tempo depois. Um funcionário das creches, que preferiu não se identificar, conta que soube por acaso sobre o fechamento das vagas, via Facebook, porque uma das mães compartilhou a decisão da SAS. “Começamos a circular a notícia e, quando o superintendente da SAS veio para supostamente dar a notícia, a gente já estava sabendo”, ele afirma. No entanto, funcionários desconfiam da maneira com que o processo foi conduzido pela universidade, representada no caso pelo superintendente de Assistência Social, Waldyr Antonio Jorge. “A gente ficou sabendo oficialmente da boca dele, mas sem nenhum papel que tenha chegado para a gestão da creche sobre isso. Esse e-mail não foi assinado por ninguém: veio escrito ‘SAS’ somente e não tem nada além disso. Então nós ficamos sabendo desta maneira extraoficial, por ‘buchicho’ e oficialmente da boca dele [Waldyr Jorge] somente depois que foi questionado a respeito do assunto.”
Programa de Demissão Voluntária
Abordadas pela reportagem, a SAS e a assessoria de imprensa da USP preferiram não se pronunciar sobre o assunto (veja detalhes sobre a recusa no quadro no final da matéria). Funcionários e pais alegam, no entanto, que o principal motivo dado pela instituição para cortar as vagas em janeiro é o Programa de Incentivo à Demissão Voluntária (PIDV, conhecido como PDV) da universidade, criado como tentativa de atenuar a crise financeira em que a USP está mergulhada. Supostamente, a universidade não teria condições de atender com qualidade mais alunos com menos funcionários. “O principal motivo que consta no e-mail é o PDV. Mas antes desse PDV a gente já precisava de contratações. Antes do PDV já havia vagas em aberto para serem preenchidas. Então, o PDV só veio agravar a situação”, rebate o funcionário.
Dados publicados no Diário Oficial dão conta de 1472 funcionários da USP demitidos pelo PIDV, o que custou estimados 400 milhões de reais para a USP. Foram 19 funcionários da divisão de creches, que, de acordo com o site da SAS, possui 206 pessoas no seu quadro. Atualmente, a divisão atende cerca de 580 crianças, com aproximadamente 40% das vagas destinadas a filhos de funcionários, 40% a filhos de alunos e 20% a filhos de professores, com algumas diferenças entre as creches.
Com o objetivo de debater propostas e tentar abrir um diálogo com a SAS e reverter o fechamento das vagas, funcionários das creches e o Sintusp (Sindicato dos Trabalhadores da USP) se reuniram com o superintendente Waldyr Jorge no dia 5 de fevereiro. Na ocasião, “as funcionárias das creches assumiram que conseguem atender as crianças e que vão fazer o possível para que essas crianças sejam atendidas”, diz Solange Conceição Lopes, Sintusp, presente na reunião.
Segundo o funcionário entrevistado, que também participou da reunião, foram feitas propostas de atendimento de acordo com as particularidades de cada creche. “Uma creche propôs uma redução do horário de atendimento das crianças, outra propôs um atendimento inicialmente em meio período dos bebês. Tiveram propostas diversas, cada uma com a necessidade de cada creche, com a característica que cada creche precisava. Coisa que não foi feita pela SAS”, conta.
Falta transparência
A tentativa de mostrar alternativas à superintendência vem acompanhada da indignação de pais e funcionários com a falta de transparência de todo o processo de decisão do fechamento das vagas.
Isadora de Andrade, pós-graduanda da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e mãe de duas crianças atendidas pela creche central, critica que a decisão não foi planejada, não ponderaram alternativas nem houve debate com pais e funcionários. “Não houve transparência nenhuma, nenhum tipo de discussão com as direções e com as comunidades das creches. Foi simplesmente decretado que não entrariam nem os bebês nem outras crianças em nenhuma idade em nenhuma das cinco creches da USP”, diz. O funcionário confirma: “Em momento nenhum ele [Waldyr Jorge, superintendente da SAS] consultou nem a divisão de creches, nem a gestão das creches e muito menos os funcionários. Em nenhum momento houve esse diálogo.”
Desmonte da universidade pública?
Ainda não há uma decisão que reverta o quadro de não atendimento da creche, mas pais e funcionários temem que a falta de diálogo seja indício de algo pior que, segundo eles, pode estar por vir: o fechamento das creches. “Quem está fazendo todo o impasse para o não atendimento das crianças é a reitoria e o professor Waldyr Jorge. A intenção da reitoria e do professor Waldyr Jorge é um dia acabar com as creches”, afirma Solange, do Sintusp.
Isadora concorda. Para ela, com uma possível continuidade do PIDV, mais funcionários seriam demitidos, outros sairiam com a instabilidade e dificilmente a SAS, que alegou o PDV como motivo para o não atendimento de novas crianças, permitiria a abertura de vagas com menos funcionários. “Parece planejado, pois estamos ouvindo vários depoimentos de pessoas que tem contato com a reitoria e com a SAS dizendo que eles alegam que o custo do sistema de creches é alto para a universidade. Fica mais em evidência os custos do que a qualidade de ensino”, diz. “Os estudantes não têm auxílio creche e é difícil conseguir vagas na rede pública. Sobra a alternativa das creches particulares, que não cabem no orçamento de quem recebe bolsa. Os estudantes da Graduação nem bolsa têm… Então fica claro que a USP prefere quem tem possibilidade financeira de se manter na universidade do que alguém com excelência de pesquisa, mas sem as mesmas condições financeiras.”
Assim como Isadora, Daniele Santana, estudante de filosofia e com filho aguardando vaga na creche, preocupa-se que a medida irá elitizar a universidade pública, ao impossibilitar que os estudantes sem condições de pagar por moradia, alimentação, saúde e creche particular frequentem a USP. “A verdade é essa, eles vão cortando pelas arestas. Se o pobre precisa… Quem não precisa continua aqui, com o carro que o papai deu, e se precisar pagar mensalidade, vai pagar. E vai manter só essa elite. E a gente que precisa usar o serviço de uma universidade pública vai acabar tendo que largar a universidade pública”, critica.
Cenário de incerteza
Daniele conseguiu trancar a faculdade durante três anos para cuidar de seu bebê, e contava com a vaga na creche da USP para conseguir dar continuidade aos seus estudos. Ela não chegou a saber se tinha sido aceita ou não. Na creche central, as famílias foram avisadas que não haveria mais vagas alguns dias antes do anúncio. Já nas creches de Ribeirão Preto e São Carlos, o processo já havia terminado e as crianças já estavam matriculadas quando as vagas foram fechadas. “As crianças estão matriculadas nas creches e não podem entrar. Ou seja, essas famílias não procuraram outra instituição e não têm mais prazo para procurar. É uma situação bastante delicada”, explica o funcionário entrevistado.
O dilema da qualidade
Outra preocupação em relação ao futuro das creches da USP é relacionada à qualidade do atendimento. Centros de referência e excelência em educação infantil, as creches são também laboratórios da universidade e parte essencial da formação e pesquisa de estudantes de diversas faculdades. “Não é só dinheiro envolvido nisso, é um projeto, é um modelo que não vai ser o mesmo dentro de uma municipalização, porque vai ter outro corpo de funcionários, outro tipo de alimentação. Todas as creches da USP têm um projeto de 33 anos que é modelo no Brasil todo”, defende Isadora, trabalhando com a possibilidade de as creches passarem a ser administradas pela Prefeitura de São Paulo. “Ao invés de deixar a creche da USP se tornar igual mais uma municipal, que ela se torne uma referência para as municipais, e não o oposto”, complementa Daniele.
Futuro
Diante da falta de contratação de funcionários – segundo o funcionário entrevistado, a creche de Ribeirão Preto se reuniu com o reitor Marco Antonio Zago e ouviu que não haveria admissões -, o futuro das creches fica em xeque. “São necessárias contratações de pessoal especializado que não podem ser realocados de outros setores para o atendimento das crianças que já estão nas creches. Na creche Oeste, por exemplo, houve demissão das duas pessoas responsáveis pela enfermagem e a lactarista saiu. Não tem mais lactário. Como é que uma creche funciona sem lactário e enfermagem?”, questiona Isadora.
Enquanto isso, funcionários e famílias conversam para encontrar alternativas. “Estamos tentando articular essas famílias, mostrar para elas que estamos preocupados em atender sim, e que vamos procurar juntos um caminho. Não queremos matricular as crianças a qualquer custo e prejudicar a qualidade do atendimento”, observa o funcionário. De outro lado, o cenário de pouca transparência preocupa os trabalhadores. “A pior coisa de tudo isso é a falta de informação. Se eles viessem e falassem ””o plano é esse””, a gente poderia até lutar, resistir, conversar, mas pelo menos poderíamos dialogar de maneira igual. Desse jeito, ficamos em um diálogo de hierarquia, em que a gente sempre está no andar de baixo, e isso não é legal, não é justo, não é correto, e não é assim que se faz uma gestão pública.”
Do lado das famílias, as alternativas são as escolas particulares ou a espera. Ione, a estudante de física que levou seu bebê às aulas no último semestre, ainda não sabe o que vai fazer nos próximos seis meses. “Agora ele está ficando cada dia com um amigo no Crusp. Se não tiver creche, eu queria que pelo menos eles avisassem estes senhores que dão aula aqui dentro que vai entrar bebê dentro da sala de aula, porque não tem como”, afirma. “Eu estou disposta a ir no Ministério Público, na justiça. porque eu não acho justo. Pelo menos tivessem avisado em novembro, para a gente correr atrás da prefeitura. Minha expectativa é grande porque dia 23 de fevereiro começam as aulas. E aí? Como eu vou fazer?”
Leia mais sobre a crise nas creches da USP no blog Creche Central USP.
Sobre a recusa da USP em comentar o fechamento das vagas |
A reportagem encontrou forte resistência para ouvir um representante da Universidade de São Paulo que explicasse, respondesse, argumentasse ou defendesse qualquer ponto de vista em relação ao corte de vagas nas creches da universidade. Todos os funcionários foram orientados a dar entrevistas apenas com a mediação da Assessoria de Imprensa da USP, representada pela assessora Adriana Cruz, que em princípio disse à repórter Lara Deus que estava com uma nota pronta para divulgar sobre o assunto, mas que depois parou de responder nossas tentativas de contato até, por fim, enviar um e-mail dizendo que a reitoria não emitiria nota sobre o tema. Por telefone, questionamos a assessora sobre a incoerência da falta de transparência e diálogo em uma instituição de caráter público, que deveria ser aberta, mas obtivemos a mesma resposta do e-mail. Tentamos também contato com a secretária do professor Waldyr Antônio Jorge, superintendente da SAS. Ela explicou, por telefone, que havia elaborado respostas para nossos questionamentos – pediu que enviássemos as perguntas por e-mail – em conjunto com a diretora da divisão de creches, Rose Mara Gozzi Carnelosso, e que dependia apenas da aprovação do professor Waldyr para nos enviar as respostas. No dia seguinte, quando voltamos a ligar, ela nos informou que o superintendente não autorizou a liberação das respostas e que preferia não falar sobre esse tema. Diante do absoluto silêncio da instituição a respeito do ocorrido, não pudemos incluir na reportagem um contraponto que mostrasse a visão ou o plano da Universidade de São Paulo em relação às creches. Aqui estão as perguntas enviadas à SAS-USP que permaneceram sem respostas: 1. Qual o motivo de as cinco creches da SAS não estarem recebendo novas crianças neste ano? |