NOTÍCIA

Edição 296

Autor

Revista Educação Infantil

Publicado em 15/08/2023

Quando o professor assume a postura de pesquisador

Para documentar o desenvolvimento das crianças, os educadores devem observar e anotar tudo o que acontece na escola. Além de mostrar os resultados do projeto pedagógico, o processo também ajuda os docentes a crescer profissionalmente. Quanto mais conhecem suas práticas, mais têm condições de aprimorá-la

Por Cristiane Marango da revista Educação Infantil*: Médicos que não anotam os sintomas e hábitos de seus pacientes não conseguem fazer um bom trabalho. O mesmo acontece com os advogados. Se esses profissionais não tomam nota de cada detalhe mencionado por seus clientes e não pesquisam quais são os amparos legais, não é possível bem representá-los em um tribunal, por exemplo. O que dizer então de um professor que não guarda registros de seu próprio trabalho e dos avanços de seus alunos? Seguramente, assim como em outras carreiras, ele não será um bom profissional.


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Os benefícios que envolvem a prática são inúmeros. Com a documentação do que é feito em sala de aula, o educador consegue avaliar o quanto uma criança aprendeu sobre determinado conteúdo. Também é possível entender o que fazer para que ela se desenvolva ainda mais. Isso, sem contar a facilidade para compartilhar os resultados de todo o processo educativo com a família.

“O professor que registra a sua prática cria espaços e instrumentos de reflexão e investigação da ação educativa, colocando-se como aprendiz, protagonista em parceria com os meninos e as meninas do grupo em que atua, assim como sujeito ativo dos processos de experimentações e descobertas”, explica Marilia Dourado, diretora executiva da Esse Consultoria, representante nacional da Red Solare Brasil e membro do Network International da Reggio Children.

Formulando hipóteses

É importante que, durante os registros, o professor se reconheça como parte integrante da aprendizagem em parceria com sua turma. “Ao atuar dessa maneira, assume-se uma prática mais consistente e geradora de novas aprendizagens, compreendendo também a si mesmo com mais profundidade, formulando hipóteses acerca da própria atuação profissional, buscando compreender as teorias intuitivas e originais formuladas pelas crianças e a realidade em que se está inserido”, pontua Marilia. “O registro, nessa perspectiva, é instrumento de comunicação, de apoio à memória e recurso para aprofundamento das aprendizagens. Portanto, é uma forte base para o desenvolvimento profissional”, acrescenta. 

Investigação

Documentar não é algo simples. É preciso que o professor adote uma postura de pesquisador para anotar sempre tudo o que faz e observa. Durante esse processo, surgirão perguntas, pesquisas, estudos, observações, reflexões, discussões e interpretações ao longo do trabalho. É, portanto, um jeito de investir na própria formação. O resultado da documentação pode ser exposto em diversos suportes, como murais, paredes da escola, cadernos e pastas. A função da exposição é comunicar o trajeto de determinada aprendizagem e auxiliar os demais profissionais na construção da memória pedagógica. 

Com os registros incorporados à rotina escolar, ganham as crianças, que têm acesso a uma ação pedagógica com mais qualidade, e os professores, que refletem sobre a própria prática e buscam caminhos para aperfeiçoar o trabalho realizado e reforçar as ações bem-sucedidas.

Modelo italiano

Nas escolas de Reggio Emilia, na Itália, a documentação é considerada a alma da educação, pois é por meio dessa prática que é possível comunicar ideias, crenças, valores, imagem da criança e dos seus processos de aprendizagem. “O processo de documentação é importante porque a prática educativa é transformadora. Não basta registrar tudo se a criança não é reconhecida nas suas enormes potencialidades, como um ser competente, ativo, crítico, produtor de conhecimento, de cultura, de valores e de direitos, sujeito que formula ideias fantásticas sobre o mundo e tem teorias ricas e valiosas para explicá-las. Isso precisa ser documentado”, explica Marilia Dourado.

Para ela, não se trata apenas de documentar algo para apoiar a memória escolar. Ela considera também a prospecção, pois dá forma a futuros processos de aprendizagem. Dessa maneira, o registro se converte em memória viva e visível dos processos compartilhados com as crianças. A memória passa a ser conhecida, porque é pública e compartilhada com toda a comunidade escolar, que passa a ser também uma comunidade de aprendizagem.

”As famílias também aprendem sobre o que as crianças pensam, seus sentimentos, suas atitudes, e isso gera reflexões e novas aprendizagens. E, por fim, os professores recém-contratados têm acesso à história da instituição e à dos alunos e podem, com isso, formular perguntas, esclarecer dúvidas e compartilhar suas inquietações. Como consequência, também aprendem.”

Muitas vezes, as documentações não são expostas nas paredes das escolas. Elas estão em pastas, chamadas portfólios, em apresentações para as famílias, como registro para acompanhar o processo, como estratégia para os professores identificarem o que, como e quando fazer, intervir, provocar, convocar e mobilizar, acrescenta a consultora. “A documentação é uma maneira de tornar visível para as crianças como elas aprendem. De posse desse processo, elas identificam quais estratégias foram efetivas para alcançar o conhecimento.”


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Aqui, todos registram

No Colégio Marupiara, em São Paulo, as anotações fazem parte não só do dia a dia dos profissionais. Elas também estão e são fundamentais no trabalho dos pequenos. O registro do professor só é possível porque as crianças são ensinadas a registrarem os significados de suas aprendizagens. Tudo começa com o planejamento. Nele, determinam-se quais aspectos os docentes vão observar na turma. Podem ser noções, funções do pensamento, comportamentos sociais e comportamentos de aprendizagem. Isso é feito por dia letivo, ou seja, todos os dias há um novo ponto de observação. Esse planejamento é discutido em reunião pedagógica e modelado até alcançar o formato ideal. 

Vale destacar que na educação infantil e no primeiro ano do ensino fundamental, o foco de trabalho é a leitura e a escrita. A escola sempre elabora um projeto tendo como base um livro de literatura de diferentes gêneros, amarrando todos os conteúdos, inclusive os das outras áreas, nesse mesmo projeto. Durante os momentos de registro, a coordenadora pedagógica deixa sua equipe bastante à vontade; o importante mesmo é cada profissional saber o que vai observar. Durante o projeto, a coordenadora pedagógica se reúne com seus professores para saber sobre o andamento dos trabalhos, tentando sempre resgatar com eles o compromisso ao qual se propuseram no planejamento.

Ela também assiste às aulas para saber como as crianças estão sendo motivadas. Enquanto isso, os professores seguem registrando, e as crianças, aprendendo e, mais importante, registrando os significados de suas aprendizagens. Sem o registro, o professor pode não conseguir ter clareza de quais ações são efetivas e quais não estão atingindo as crianças.

Ao fim de cada trimestre, os professores reúnem suas anotações e compõem um relatório de cada criança, que é entregue aos pais ou responsáveis no dia da reunião. A coordenação da escola garante que o documento reflete não só as aprendizagens dos pequenos, mas também suas principais características, o que confere a ele credibilidade. Assim, as famílias conseguem enxergar seus filhos quando leem o relatório e percebem com clareza quais são seus avanços e onde estão suas dificuldades. Além disso, de posse de todos os registros, o professor é capaz de fazer uma avaliação geral e individual de seu grupo, ao mesmo tempo que identifica onde precisa melhorar suas estratégias de ensino. Tudo isso só é possível graças ao trabalho diário de observação docente.

* Matéria publicada originalmente na edição 4, de 2018, da revista Educação Infantil

Escute nosso episódio de podcast:


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