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Um lugar sem sentido

A carência generalizada de bibliotecas nas escolas brasileiras está inscrita num contexto em que pesam a desvalorização da cultura leitora e o modelo educacional adotado historicamente pelo país

Publicado em 28/02/2014

por Luciana Alvarez

Um lugar sem sentido

Gustavo Morita
Em 2010, apenas 35% das escolas brasileiras contavam com bibliotecas


Brasileiro não gosta de ler. Na era digital, o livro é dispensável. Bi­blioteca é lugar para onde vai quem está de castigo. Inevitavelmente imerso na cultura de desvalorização da leitura e na relação do brasileiro com o objeto livro, o ambiente escolar é o local em que chavões como esses convivem com a falta de acesso a espaços compartilhados de leitura. Como, então, a escola consegue cumprir seu papel de propulsora da democratização da cultura leitora no Brasil?

Os números falam por si: mais de 15 milhões de alunos brasileiros estudam em escolas sem bi­bliotecas, um equipamento bá­si­co. Diante do quadro, cabe questionar: qual a importância da biblioteca para a formação educacional? Entre as consequências de sua ausência no espaço escolar são apontadas dificuldades no período de alfabetização, no desenvolvimento da autonomia para a aprendizagem e no acesso a outros conhecimentos, diminuindo a capacidade de abstração e argumentação.

É verdade que aquele ambiente silencioso e sacralizado não parece mais fazer sentido nos tempos atuais. Mas, ao invés de descartar o volume de informação ali acumulado, é preciso ressignificá-lo, de modo que esse espaço faça sentido para os jovens contemporâneos. Por outro lado, se o Brasil ainda não conseguiu nem igualar a oportunidade de acesso a um espaco compartilhado de livros, a questão é urgente: uma escola sem biblioteca continua sendo uma escola? A legislação, ao menos, tenta indicar que não. A partir de 2020, todas as escolas de ensino fundamental e médio no Brasil devem ter uma biblioteca, segundo a lei federal 12.244/10. Serão seis anos de muito trabalho.

Educação e cultura
O cenário atual é grave e não há qualquer sinal de que uma evolução rápida esteja a caminho, mesmo após a sanção da lei da universalisação das bibliotecas. Em 2010, o número de escolas (públicas e particulares) de nível fundamental com bibliotecas era de 35% e, no ensino médio, de 72% – houve apenas um ponto percentual de melhoria em cada nível de ensino.

É no ensino fundamental que a falta de bibliotecas encontra uma realidade mais dramática: apenas 30% das escolas públicas oferecem o equipamento nessa etapa de ensino, e 43% dos alunos estudam sem ela. Na escola privada elas também fazem falta: 28% das escolas não oferecem esse equipamento e 18% dos alunos estudam sem ele. Em âmbito nacional, as escolas municipais são as mais deficitárias – só 22% contam com acervos organizados.

Com o tempo passando, a legislação parece cada dia mais longe de chegar a ser cumprida. O Censo Escolar mostra que, em dois anos, foram implantadas 317 bibliotecas em escolas fundamentais e 650 em instituições de nível médio. Ainda faltam mais de 99 mil. Em 2010, era necessário construir 28 novas bibliotecas por dia no país para chegar em 2020 com 100% de cobertura. Dois anos mais tarde, o ritmo precisa ser de 34 bibliotecas por dia.

Para Ivete Pieruccini, professora do curso de biblioteconomia e coordenadora do laboratório de infoeducação da Universidade de São Paulo (USP), a carência generalizada desse espaço está inscrita em um contexto sociocultural complexo, em que pesam a falta de uma cultura de bibliotecas e o modelo educacional adotado historicamente pelo Brasil.

“Nos países anglo-saxões, por razões históricas ligadas à religião e à leitura da Bíblia, o livro é visto como uma fonte de conhecimento e informação, assim como o professor”, explica Ivete. “Aqui nós usamos as bibliotecas para preservação do patrimônio cultural escrito, dentro de uma outra lógica. A biblioteca não é vista como indispensável porque a educação não a incorporou como fonte de informação. O professor é a fonte única, que responde por todos os problemas de preenchimento de conteúdo.”

Efeitos na educação
A lógica educacional transmis­siva, diz Ivete, embora esteja sendo repensada atualmente por causa das novas teconologias, ainda é bem aceita em quase todos os meios, e é por isso que certos pais aceitam pagar mensalidades para que seus filhos estudem em instituições sem bibliotecas. “A população, mesmo a que faz parte de circuitos econômicos privilegiados, não tem ideia da importância do papel da biblioteca na formação educacional. Para eles, um bom professor com um livro didático dão conta.”

Para Carlos da Fonseca Brandão, professor da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), do campus de Assis, a falta de bibliotecas reflete a deficiência no processo de alfabetização e colabora com ele. “Uma criança bem alfabetizada gosta de ler; as com dificuldade, não querem ler.” Ao ter uma biblioteca disponível, é mais provável que a criança pequena tenha seu desejo de conhecer o mundo das letras despertado, o que torna a alfabetização mais fácil.

Gustavo Gouveia, coordenador da Rede de Bibliotecas do Instituto Brasil Leitor (IBL), lembra que a falta de um espaço para consulta e leitura não dirigida afeta diretamente a capacidade da escola de formar um cidadão leitor, assim como atrapalha o desenvolvimento da autonomia na aprendizagem.

“Um aluno sem acesso a uma biblioteca fica impossibilitado de se habituar a esse espaço que concentra informações. Ele vai para a sala de aula, aos laboratórios, sempre coordenado, dirigido”, afirma. “É na biblioteca que ele tem a oportunidade de adquirir conhecimento de maneira informal, acessar a informação que ele deseja, não necessariamente direcionado”, explica.

Repensando o espaço
Mas para que investir recursos humanos e financeiros em um local tão pouco utilizado pelos alunos hoje em dia? Mesmo num mundo cada vez mais digital, com os jovens procurando novas plataformas, ainda faz sentido brigar para que bibliotecas sejam criadas, acredita Christine Fontelles, do Instituto Ecofuturo, voltado para a promoção da leitura e escrita. “É preciso haver um local para acessar livros, não importa se o suporte seja impresso ou digital. Em Madri, já existe uma biblioteca que empresta tablets. O importante é que todos possam se tornar íntimos da ação da leitura”, afirma ela.

De fato, uma mídia não exclui a outra. Mas, como o país ainda não foi capaz de universalizar sequer as bibliotecas tradicionais, a discussão sobre a convivência do livro em papel com o digital parece um problema distante da maioria dos alunos Brasil afora. O importante, segundo Christine, é que a biblioteca faça sentido, seja entendida e projetada como um local para o despertar de um novo prazer. Portanto, não basta o acesso aos livros, embora ele seja uma pré-condição. É preciso ir além. “Se a leitura é impositiva, fica chata. É preciso, por exemplo, dar liberdade para os alunos escolherem um título – por que todo mundo tem de ler a mesma coisa ao mesmo tempo? Ninguém nasce leitor, tudo é aprendizado”, diz.

Para Ivani Nacked, diretora de projetos do IBL, o déficit de bibliotecas e a falta movimentação em torno do tema refletem a desvalorização do ato de ler na sociedade brasileira. “A biblioteca é vista como um lugar sisudo, fechado. O livro por vezes é endeusado, proibido de estar no chão, tem de estar na estante. Isso causa um distanciamento”, acredita.

Portanto, antes de discutir a implantação de uma nova biblioteca, é preciso um processo de reflexão sobre esse espaço, recomenda Ivani. “O que é um acervo? Uma estante com livros? O silêncio tem de imperar? Uma biblioteca não pode ter um acervo musical? O foco não é só a palavra escrita. Deve ser uma sala onde todos possam se encontrar para aumentar seu repertório cultural.”

A biblioteca pode, portanto, ser um ambiente que integre várias manifestações, um lugar agradável que dois amigos escolhem para se encontrar para desenhar enquanto ouvem música, por exemplo. Para trazer as crianças e jovens para dentro desse ambiente rico, é necessário ouvir a opinião deles sobre o assunto, em vez de haver decisões exclusivas dos dirigentes. “O jovem sempre traz algo desconhecido para a escola; ele tem muito a contribuir. Perguntar o que ele deseja da biblioteca, para que seja um espaço que pertença a todos, não seja excludente, é um bom primeiro passo”, afirma Ivani.

Exemplo dos professores
Mesmo tão ausentes, as bibliotecas escolares ainda são a principal fonte de acesso a livros para crianças e jovens com idades entre 5 e 17 anos, revela a pesquisa Retratos da leitura no Brasil, realizada pelo Instituto Pró-Livro. Foram elas as responsáveis por 47% dos títulos lidos por essa faixa etária.

No levantamento mais recente, divulgado em 2012, os estudantes haviam lido em média 3,41 livros nos três meses anteriores ao questionário, sendo que 2,21 foram indicados pela escola e apenas 1,20 por iniciativa própria (aqui estão incluídos todos os tipos de livro, de literatura, didáticos e até a Bíblia). Apesar do índice baixo, quem está estudando lê bem mais do que quem já saiu da escola: 74% dos estudantes leem, contra 31% dos não estudantes.

E o professor se mostra o principal agente influenciador da leitura; dos cinco mil entrevistados, 45% apontaram seus mestres como quem mais influenciou seu hábito de leitura. Nas edições anteriores, as mães foram as mais citadas.

Mas os docentes, de forma geral, não se mostram bons exemplos de leitores. Compilação de dados da plataforma educacional QEdu, com base no questionário socioeconômico da Prova Brasil, apontou que nem metade dos professores da rede pública leem no seu tempo livre – apenas 45% disseram ler sempre ou quase sempre.

Para Andrea Berenblum, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), é urgente preparar os professores para esse cenário. A professora do Instituto de Educação fez, a pedido do MEC, em 2005, uma avaliação diagnóstica do Programa Nacional da Biblioteca Escolar (PNBE). Suas conclusões foram de que a distribuição de acervos é “bem necessária”, porém, insuficiente como política de formação de leitores. Uma medida conjunta, acredita ela, seria a capacitação dos docentes.

“É fundamental considerar e refletir sobre as inúmeras dificuldades dos professores para trabalhar com os livros nas escolas, a ausência de formação que lhes permita pensar criticamente sobre sua prática pedagógica e discutir diferentes concepções de linguagem, de leitura e de escrita, os limites no aproveitamento do material disponível e a angústia pela falta de tempo para exercitar a própria leitura”, diz a pesquisadora.

Segundo Andrea, políticas de fomento à leitura e de formação de leitores precisam se centrar não apenas na distribuição de acervos, mas em garantir a qualidade do trabalho pedagógico com a leitura e a escrita. “Isso envolve levar em consideração, ademais e principalmente, as reais condições em que os profissionais da educação estão desenvolvendo o seu trabalho cotidiano nas instituições educacionais.”

Esses fatores poderiam explicar por que, quando chegam à escola, os livros são ‘escondidos’, sem serem disponibilizados para a comunidade (leia mais na página 43). Para Brandão, da Unesp, o triste cenário atual só vai melhorar se houver vontade política em todas as esferas. “É preciso entender as responsabilidades dos níveis da federação. O governo federal tem o PNBE, os municípios têm a obrigação de gastar 25% da receita dentro da escola. Agora é preciso usar esses recursos disponíveis”, afirma.

Trabalho de longo prazo
No ranking de escolas com e sem bibliotecas no Brasil, o estado em melhor situação, o Rio Grande do Sul, tem 74% das escolas de nível fundamental e 95% das de nível médio com bibliotecas. O bom resultado, no entanto, vem de um trabalho bem anterior à legislação de 2010.

Na década de 1950 foi criado dentro da secretaria de Educação um setor responsável pelas bibliotecas. Em 1988, foi estabelecido um “horário semanal de leitura” no currículo da rede estadual. Em 1989, a Constituição Estadual determinou que as escolas públicas e particulares deveriam ter bibliotecas. Desde então, o Conselho Estadual de Educação só aprova a abertura de novas instituições se elas tiverem o equipamento. Pela lei estadual, o acervo mínimo é de quatro volumes por estudante.

“A continuidade das políticas públicas faz a diferença”, afirma a bibliotecária Maria do Carmo Ferreira Mizetti, coordenadora do Sistema Estadual de Bibliotecas Escolares.

Mesmo assim, apesar das décadas seguidas de esforço, ainda faltam 1.700 bibliotecas escolares no Rio Grande do Sul. Maria do Carmo aponta algumas dificuldades. “Em algumas escolas, o número de alunos aumentou e a biblioteca acabou virando sala de aula. Em escolas muito pequenas, o acervo fica inteiro numa estante, não há uma biblioteca de fato.”

A coordenadora também cita a falta de biblioteconomistas como entrave para a evolução das já existentes. “Estamos terminando um manual sobre o funcionamento de uma biblioteca, para que o profissional que assumir possa ter métodos eficientes de trabalho.”

Confusão de nomes
O estado mais rico do Brasil, São Paulo, contraditoriamente aparece no Censo Escolar como um dos menos equipados, ficando abaixo da média nacional, com bibliotecas em 29% dos estabelecimentos de ensino de nível fundamental. A rede estadual é a de pior índice entre os 26 estados e Distrito Federal: somente 9% das escolas oferecem bibliotecas a seus alunos. No ensino fundamental, são 433 escolas com bibliotecas e um déficit de 4.455.

Segundo a secretaria estadual de Educação, porém, todas as escolas possuem acervo disponível aos alunos para consulta e leitura. O baixo índice alcançado no levantamento oficial do MEC seria um problema de nomeclatura. Existe um programa oficial da secretaria chamado Salas de Leitura – mas na prática elas funcionam como bibliotecas normais.

No entanto, ao responder o Censo, os dirigentes das escolas assinalam que elas possuem “salas de leitura” em vez de “bibliotecas”. Segundo a secretaria, quase três mil escolas participam do programa Salas de Leitura, número que equivale a 65% de todas as unidades da rede.

Aberta das 7h às 23h, durante todos os turnos de aula, a sala de leitura da Escola Estadual João Octavio dos Santos, no morro do Bufo, em Santos, se parece com uma biblioteca tradicional. Estantes de livros separados por temas e indicação de faixa etária recobrem as paredes. No meio da sala, decorada com desenhos de alunos, estão dispostas seis mesas circulares com cadeiras. Há também uma TV com aparelho de DVD e um data-show, além de mesa para atendimento.

“Não temos a figura do bibliotecário, mas dois professores ficam responsáveis pela sala. Eles receberam treinamento para a função e trabalham muito o lado pedagógico”, afirma a diretora, Maria Madalena de Almeida Serralva. “Se um aluno teve uma aula sobre a Segunda Guerra e se interessou pelo assunto, eles podem indicar os livros de história, ou de literatura, que tratem do tema”, exemplifica Maria Madalena sobre como o trabalho da sala é naturalmente articulado com o currículo.

Com livre acesso a todos os alunos, e também aos pais, a sala possui um acervo que atende desde o primeiro ciclo do fundamental ao ensino médio. “As crianças menores são as que mais leem. Muitas vêm aqui no recreio e leem um depois do outro. É importante para formar o hábito”, afirma a diretora.

Os controles de empréstimos ainda são feitos em cadernos de papel, escritos à mão. A informatização da sala está prevista para este ano. A secretaria de Educação informou que há um sistema específico para as bibliotecas da rede, em que é possível consultar o acervo de todas as escolas já conectadas e, se for preciso, o estudante pode buscar um livro em uma outra unidade. A reportagem da revista Educação visitou também salas de leitura de outras quatro escolas na capital paulista e todas seguem o mesmo padrão.

Cabe perguntar se, independemente da nomenclatura, os alunos brasileiros apartados do mundo da leitura poderão enfrentar deficiências não apenas na vida escolar, mas na vida prática, e no seu papel como cidadãos.

Autor

Luciana Alvarez


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