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Entrevistas

Reiventando a escola pública

Autor descreve em livro as reformas educativas recentes na Venezuela e na Bolívia, nas quais a vida local se vincula ao sistema educativo, com uma relação intrínseca entre docentes, alunos e a sociedade

Publicado em 05/10/2012

por Luciana Taddeo

Luciana Taddeo

Desde o início do século, diversos países latino-americanos passaram por transformações significativas. No caso boliviano, uma constituição, sancionada em 2009, passou a reconhecer a diversidade cultural e as mais de 30 nações indígenas do país, historicamente perseguidas, ocultadas e relegadas à pobreza. Na Venezuela, país onde mais da metade da população se encontrava abaixo da linha da pobreza, parte dos lucros gerados pelo petróleo foram destinados a programas sociais.

As novas orientações políticas destes países implicaram também a revisão dos sistemas educativos vigentes até então. Para o pesquisador argentino Pablo Imen, autor do livro La escuela pública tiene quien la escriba, publicado em 2010, na Argentina (sem publicação no Brasil), os governos da Venezuela e da Bolívia passaram a conceber a educação como um direito humano que deve ser garantido pelo Estado, gerando alternativas para a construção de um ensino baseado na justiça, na participação comunitária e no respeito às diversidades culturais. Leia, a seguir, a entrevista que o autor concedeu, com exclusividade, à revista Educação.

Quais foram as principais mudanças promovidas pelos atuais governos da Venezuela e da Bolívia?
Esses países estão construindo sistemas educativos que tentam desenvolver os três aspectos da justiça. O primeiro é a redistribuição equitativa de bens simbólicos para toda a população. O segundo é o reconhecimento, respeito, promoção e apoio à existência de diferentes culturas. E o terceiro, o da participação, pela qual diferentes setores têm voz nas decisões. Todos são parte desta construção, segundo este conceito. A novidade destes processos é a busca de como pensar em uma educação para sociedades mais justas.

No seu livro, o senhor avalia os novos textos legislativos impulsionados nesses países. O que as novas leis de Educação propõem?
Em ambos os casos, atribuem ao Estado um papel fundamental como garantidor do direito à Educação. Isso se expressa no aumento do orçamento, do número de escolas e da quantidade de estudantes incorporados ao sistema educativo. Esses dados objetivos se aliam a uma profunda revisão de que conteúdos e que métodos devem circular dentro do sistema educativo, com forte ênfase na educação contextualizada e na participação.

Quando o senhor fala em um sistema com participação, se refere à sala de aula?
Falo em participação da comunidade também, da visão de que o sistema educativo é parte da comunidade. Na Venezuela, cada instituição planeja seu ano escolar, com a participação de membros da comunidade local, tanto no desenho e elaboração do plano curricular, como no acompanhamento do cumprimento do projeto pedagógico. É um processo muito recente, com o qual se valoriza o que se conseguiu e se trabalha sobre as dificuldades, respeitando o tempo de que os docentes precisam para planejar, pesquisar, se formar, e não somente dar aulas.

Mas como esta relação com a comunidade funciona? A base curricular se mantém?
Há uns conteúdos básicos para cada série, mas eles são ensinados de acordo com a especificidade cultural de cada lugar, em função dos interesses e relevância para os alunos e para a comunidade. Essa adequação ao contexto é muito presente principalmente no caso boliviano, onde a vida comunitária é muito intensa. Como há 36 nações indígenas no país, os limites da comunidade e da escola são difusos historicamente. Isso se expressa na construção curricular, que prevê não só o ensino de idiomas indígenas, mas de cultura, saberes e valores. Na Venezuela, uma comunidade estava preocupada com o problema ecológico de um lago e pediu à escola que orientasse os estudos em função disso. Então o lago virou um elemento pedagógico para os estudos, como o do teorema de Pitágoras, com os alunos revisando e medindo sua superfície. Assim, a vida local se vincula ao sistema educativo, com uma relação bastante intrínseca entre docentes, alunos e a sociedade. Claro que esta relação às vezes gera contradições, tensões e conflitos.

Que tipo de conflitos?
Nem sempre essas articulações são pacíficas. Em 2002, alguns diretores apoiaram a derrubada do [presidente Hugo] Chávez, que tinha apoio popular. Com maior participação na vida educativa, algumas comunidades votaram na expulsão dele. Se a escola é parte de um processo social, este tipo de conflitos pode acontecer. Mas há casos mais pacíficos e construtivos, como na interação para a construção curricular e na eleição de diretores escolares entre os melhores professores.

Como se acompanha o trabalho dos docentes?
Há instâncias coletivas para esse acompanhamento, tanto de diretores como de docentes. Em uma política educativa democrática, não existem professores ruins e a prática docente é discutida em espaços coletivos, para analisar o trabalho em equipe. Eles se autoavaliam, são avaliados pelos colegas, estudantes, superiores e pela comunidade. A avaliação passa a ser uma ferramenta pedagógica, transformadora, visando melhoras, em vez de servir como um instrumento punitivo, com a lógica da competição. Mas alguns docentes não têm os valores que este processo propõe, e aí surgem contradições, com métodos variando de estado para estado.

Ou seja, o novo sistema não é aplicado na Venezuela inteira?
Não, porque na estrutura venezuelana há escolas que respondem ao ministério nacional e algumas às secretarias dos 24 estados do país. Em alguns locais, a política está unificada, mas em muitos estados, estas instâncias administrativas competem. Em um estado, se recusaram a distribuir os notebooks cedidos pelo ministério, por disputas políticas. O alinhamento ao sistema proposto varia de acordo com a região e isso produz um estado de experimento geral, com algumas adeptas, outras não, ou a aplicação somente de alguns critérios, como planejando com a comunidade e trabalho coletivo de docentes para a articulação de disciplinas que dialogam, como geografia e história, ou química, física e biologia.

Então parte das escolas públicas mantém o sistema de ensino anterior?
Em quatro ou cinco estados, as instituições continuam com o antigo modelo. Se o estado é contrário à reforma, impede a aplicação. Em algumas formações de docentes, por exemplo, não se ensina a nova lei de educação, sancionada em 2009, mas sim a velha legislação. Ou seja, há novos docentes que não se atualizam em relação à nova política educativa do país, o que gera processos divergentes. Em alguns estados, somente conseguiram aplicar o novo método em algumas séries, porque não contavam com apoio integral. Se os docentes não estão convencidos do projeto, não há lei ou exército que os obrigue. Sem adesão deles, não tem como reformar o ensino. O próprio ministério reconhece seus limites burocráticos, com funcionários herdados de antigos governos, que não se empenham para esta reforma. Isso põe em xeque a nova lei, que estabelece a garantia um modelo educativo democrático.

E no caso boliviano?
A mudança está mais enraizada. Lá os movimentos sociais e indígenas ganharam muita força e a nova lei é um efeito deste processo. A questão da diversidade cultural tem muito mais vigência, porque já havia antecedentes de escolas indigenistas. Mas há permanentes tensões entre a identidade de povos, como os aymaras e quéchuas, que já existiam antes de a Bolívia ser um país. Há correntes indigenistas que não querem incorporar nada que venha de fora, e há os que querem entender a constituição, falar inglês e usar um computador, por exemplo. A forma que estão encontrando para resolver o dilema é o diálogo de saberes, com um ensino que respeite a diversidade cultural dos povos originários e a educação oficial.

Como eram estes sistemas nas últimas décadas?
Há um texto de Pablo Gentilli, pedagogo e pesquisador do Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais (Clacso), que constrói uma imagem de uma reunião, nos anos 90, de ministros da Educação da América Latina. Cada um leva uma pasta sobre suas políticas educativas. De repente, um vento mistura as pastas. Mas nenhum se importa muito, porque eram todas muito parecidas. Nesta época, o Estado passou a ser um ente avaliador, houve crescente desigualdade educativa, o conceito de qualidade de ensino foi baseado em bons resultados em avaliações padronizadas de conteúdos considerados importantes. Quem não se adequava a esta cultura escolar fracassava. Só se reconhecia o saber do especialista que elaborou o currículo, sem considerar o docente e o aluno. Estas políticas levaram a um claro retrocesso na educação pública, antes bastante democrática, mas que foi desarticulada, dando lugar a um sistema de caráter individual, competitivo, enciclopedista e desvinculado da vida.

Como se chega à rearticulação?
No caso da Venezuela, as mudanças são radicais. No ensino básico, passaram a estimular a formação da soberania cognitiva, com o conceito de que a educação é um processo coletivo, no qual muitos atores intervêm. Para reincorporar os setores populares excluídos, o governo criou estruturas paralelas ao sistema educativo formal, conhecidas como “Missões”. Desde 2005, elas já alfabetizaram quase dois milhões de venezuelanos, permitindo que muitos concluíssem a educação primária, secundária e universitária. Antes, o acesso ao ensino superior era extremamente excludente e hoje a Venezuela figura entre os países com maior quantidade de universitários. Na Bolívia, apesar das perseguições sofridas pelos indígenas e de diretrizes educativas que não reconheciam a diversidade cultural, as comunidades já tinham suas próprias realidades pedagógicas. A sanção da nova lei apenas legalizou e estimulou o que já vinha sendo desenvolvido para a preservação da matriz cultural indígena nas escolas rurais, majoritárias no país.

Autor

Luciana Taddeo


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