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Autor

Rubem Alves

Publicado em 30/04/2012

Começando pela cozinha

O processo de aprendizagem se inicia com a formulação de perguntas

Sugeri, faz tempo, que para entrar numa escola alunos e professores deveriam passar por uma cozinha. Os cozinheiros podem dar lições aos professores. Foi na cozinha que a Babette e a Tita
realizaram suas feitiçarias. Babette e Tita, feiticeiras, sabiam que os banquetes não se iniciam com a comida que se serve. Eles se iniciam com a fome. A verdadeira cozinheira é aquela que sabe a arte de produzir fome.

Toda experiência de aprendizagem se inicia com uma experiência afetiva. É a fome que põe em funcionamento o aparelho pensador. Eu era menino. Ao lado da pequena casa onde eu morava havia um pomar enorme que eu devorava com os olhos. Pois aconteceu que uma árvore cujos galhos chegavam a dois metros do muro se cobriu de frutinhas que eu não conhecia. Eram pequenas, redondas, vermelhas, brilhantes. A simples visão daquelas pitangas provocou o meu desejo. Eu queria comê-las. E foi então que, provocada pelo meu desejo, minha máquina de pensar se pôs a funcionar.

O pensamento é a ponte que o corpo constrói a fim de chegar ao objeto do seu desejo. Se eu não tivesse visto e desejado as ditas pitangas minha máquina de pensar teria permanecido parada. Imagine que a vizinha, ao ver os meus olhos desejantes, com dó de mim, tivesse me dado  um punhado das pitangas. Nesse caso também minha máquina de pensar não teria funcionado. Meu desejo teria se realizado por meio de um atalho sem que eu tivesse tido necessidade de pensar.

Se o desejo for satisfeito a máquina de pensar não pensa. A maneira mais fácil de abortar o pensamento é realizando o desejo. Esse é o pecado de muitos pais e professores que ensinam as respostas antes que tivesse havido as perguntas. Provocada pelo meu desejo minha máquina de pensar me fez uma primeira sugestão, criminosa. “Pule o muro à noite e roube as frutas.” Sim, de fato era uma solução racional. O furto me levaria ao fruto desejado. Mas havia um senão: o medo. Assim, rejeitei o pensamento criminoso. Mas o desejo continuou e tratei de encontrar outra solução: “construa uma maquineta de roubar pitangas”. 

McLuhan ensinou que os meios técnicos são extensões do corpo. Bicicletas são extensões das pernas, por exemplo. Uma maquineta de roubar frutas seria uma extensão do braço. Peguei um pedaço de bambu. Mas um braço comprido de bambu, sem uma mão, seria inútil: as pitangas cairiam.

Achei uma lata de massa de tomates vazia. Amarrei-a com um arame na ponta do bambu. E lhe fiz um dente, que funcionasse como um dedo que segura. Feita a minha máquina apanhei todas as pitangas que quis e satisfiz meu desejo. Conhecimentos são extensões do corpo para a realização do desejo. Imagine agora  que eu, mudando-me para um apartamento no Rio de Janeiro, tivesse a ideia de ensinar meu vizinho a fabricar  maquinetas de roubar pitangas. Ele me olharia com desinteresse e pensaria que eu estava louco: não havia pitangas para serem roubadas.

A cabeça não pensa aquilo que o coração não pede.  Conhecimentos que não são nascidos do desejo são como uma maravilhosa cozinha na casa de um homem que sofre de anorexia. Homem sem fome: o fogão nunca será aceso. O banquete nunca será servido. Dizia Miguel de Unamuno: “saber por saber: isso é inumano…”. A tarefa do professor é a mesma da cozinheira: antes de dar a faca e o queijo ao aluno, deve provocar a fome.

*Rubem Alves
Educador e escritor
rubem_alves@uol.com.br


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