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Indicadores Educacionais – Vide Bula

Quem tem uma pequena inclinação hipocondríaca – como eu – costuma ser ávido leitor de bulas de medicamentos. Quantas e quantas vezes os remédios ficaram intocados, após a leitura da bula. Precauções e contra-indicações costumam ocupar mais espaço que indicações e posologia. Recentemente, lendo o […]

Publicado em 24/10/2011

por Redação revista Educação

Quem tem uma pequena inclinação hipocondríaca – como eu – costuma ser ávido leitor de bulas de medicamentos. Quantas e quantas vezes os remédios ficaram intocados, após a leitura da bula. Precauções e contra-indicações costumam ocupar mais espaço que indicações e posologia. Recentemente, lendo o delicioso Bad Science, de Ben Goldacre, tive minhas suspeitas fortalecidas: na maioria das vezes, o corpo se cura sozinho, como bem demonstram os inúmeros estudos sobre efeito-placebo. Há, porém, os muitos casos em que o remédio evita o agravamento da doença. Mas há, também, aqueles em que a leitura da bula pode ajudar a evitar transtornos desnecessários ou até o agravamento/mascaramento da enfermidade.

Estranha forma de inaugurar um blog sobre educação. Arrisco, entretanto, alguns paralelos. Se me permito ler as minúsculas letrinhas da bula, com a empáfia dos leigos que se pretendem especialistas em assuntos gerais, por que alguém leigo em educação não pode ter uma espécie de bula que instrua e previna de possíveis usos indevidos os dados educacionais? Afinal, assim como a saúde, educação também é algo sobre o qual todo mundo tem algo a dizer, experiência e palpites a dar. Como campo profissional, ambas são aplicações de conhecimentos provenientes de ciências diversas. Como tal, são atravessadas pelo que caracteriza a ciência: a dúvida. Há, todavia, dúvidas de diferentes alcances. Questionar uma prescrição – educacional ou médica – é mais ou menos arriscado, conforme o grau de informação científica que dá suporte ao questionamento. Assim como a medicina, educação não é arte, ainda que em ambos os campos haja artistas especialmente dotados para a atividade. Nenhuma atividade médica ou educacional seria, contudo, viável em grande escala, se dependesse de talentos especiais para todas as funções a serem preenchidas. Falamos, portanto, de áreas técnicas, com fortes embasamentos científicos e, como tais, sujeitas à crítica interminável.

Saindo dos paralelos com a área médica, reflito sobre a necessidade de termos bula para indicadores educacionais, divulgados com cada vez maior volúpia por todos os meios de comunicação. Longe de mim a arrogância dos que, desconhecendo quase tudo que diz respeito aos números que tentam traduzir situações educacionais, são categóricos em repetir chavões como “estatística é a arte de mentir com números”. Para esses, apenas um comentário: é muito mais fácil mentir – sem ser descoberto – abdicando dos números. A ciência usa fartamente dos números, em parte, porque eles são especialmente bons para o exercício do ceticismo e da refutação daquilo de que se discorda ou desconfia. Números são bons para reforçar e para desmascarar.

E os números invadiram as discussões educacionais nos tempos recentes. Desde poucas décadas, polêmicas sobre assuntos educacionais vêm sendo cada vez mais instruídas por números de todo tipo. Taxas, índices, indicadores, coeficientes povoam crescentemente nosso campo. Mesmo os mais reticentes vão progressivamente se dobrando aos recursos que a expressão de evidências através de números proporciona.

Como entusiasta do uso de números para ajudar na compreensão e tratamento dos imensos problemas e desafios educacionais (ainda que esteja longe de possuir toda a formação técnica que gostaria na área) creio que é hora, porém, de acender luzes amarelas. Muita calma nessa hora. Bulas são necessárias, especialmente na parte das precauções e contra-indicações.

A indispensável disseminação de indicadores educacionais, como resultados da Prova Brasil, do ENEM, do PISA, do IDEB, de algumas informações provenientes do Educacenso ou de sistemas estaduais e municipais de avaliação educacional levou nossa discussão educacional a um patamar superior, mas pode ter também trazido a exigência de uma pausa reflexiva sobre como os números estão sendo gerados, difundidos, interpretados, apropriados e, sobretudo, como estão instruindo decisões.

Talvez estejamos em uma segunda geração de uso e produção de indicadores educacionais. O querido Chico Soares, no blog do não menos querido Simon Schwartzman, trouxe preciosa contribuição recente a nosso debate educacional, quando alertou para efeitos colaterais, por exemplo, da política de afixar o IDEB de escolas em uma rede municipal. O alerta não alcançava apenas o uso do índice, mas questionava sua propriedade enquanto sugestivo da qualidade das escolas.

Recentemente, em reunião da ABAVE – Associação Brasileira de Avaliação Educacional, Ruben Klein, perspicaz como de hábito, flagrou uma pegadinha na suposta melhoria do desempenho brasileiro no PISA. Trata-se, como ele demonstrou usando números, não de uma melhoria educacional real, mas somente de uma mudança na amostra selecionada, agora composta por alunos mais velhos e, portanto, em séries mais avançadas. Controlada essa alteração, tudo fica como dantes, em patamar sofrível. A propaganda ao redor da suposta melhoria na comparação internacional foi, porém, mais rápida e barulhenta.

O impactante livro de Diane Ravitch, uma punhalada nos que, como eu, defendem o uso amplo de avaliações externas e divulgação abrangente de indicadores educacionais, além da necessidade de tê-los como base para políticas de responsabilização, não deve ser ignorado pelo “lado de cá”. Tudo bem que ela, em meu ponto de vista, misture um pouco alhos e bugalhos (espero voltar ao assunto em outra edição). Não dá, porém, para ignorar seus argumentos sobre os maus usos e maus efeitos das avaliações. A sinceridade e o sentimento de alguém que dá uma guinada, após estar comprometida até os ossos com a reforma educacional que usa indicadores como balizadores principais, devem ser levados a sério.

No Brasil, o ambiente acadêmico da educação virtualmente ignora indicadores educacionais e, sobretudo, ignora como usá-los, interpretá-los e questioná-los para além da conversa mole ideológica habitual. Nossa formação na área, de professores, gestores e pesquisadores, despreza o ensino das coisas mais elementares nesse terreno. Vivemos assim, uma situação ambígua. Ao mesmo tempo que temos grande necessidade de disseminar os recursos analíticos proporcionados pela informação educacional traduzida em números, precisamos de bulas com letras grandes, que alertem para as contra-indicações e efeitos indesejados de seus maus usos e das más prescrições decorrentes.

Esse blog não pretende ser espaço exclusivo para discussão dos números da educação. Desigualdade de oportunidades educacionais será nosso foco central. Melhor quando for tratado com base em evidências bem construídas e passíveis de boas refutações.

Autor

Redação revista Educação


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