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Entrevistas

Tão longe, tão perto

Para o diretor do documentário "Pro Dia Nascer Feliz", lançado em fevereiro, existe um enorme fosso entre as políticas públicas concebidas nos gabinetes e as realidades que encontrou nas escolas onde filmou

Publicado em 10/09/2011

por João Jardim

Tema raríssimo no cinema nacional, a escola é a protagonista do documentário “Pro Dia Nascer Feliz”, de João Jardim. Não só ela, mas também os adolescentes que a freqüentam, em cidades grandes e pequenas, ricas e pobres, em estabelecimentos públicos e privados. O filme examina o cotidiano do ensino médio com uma riqueza que surpreende até mesmo quem conhece esse universo.
Não é uma amostragem científica, pondera Jardim, que privilegiou escolas capazes de mostrar contrastes entre aspectos positivos e negativos. Co-diretor (com Walter Carvalho) de “Janela da Alma”, Jardim conversou com o jornalista Sérgio Rizzo sobre os procedimentos de filmagem, o universo dos adolescentes – ainda incompreendido pelos educadores, segundo ele – e o que viu em seus dois anos de imersão no sistema educacional brasileiro.



Como você chegou às escolas que aparecem no filme?


Um dos objetivos principais era que elas fossem medianas. Nem muito ruins, nem muito boas. Não queria fazer um filme-denúncia. Duas delas, a de Duque de Caxias (RJ) e a de Itaquaquecetuba (SP), receberam da Unesco o prêmio de escolas inovadoras em 2003. Então, fui olhar como elas seriam, para pesquisar, ainda sem pensar em filmá-las. Entrando lá, vi a contradição que eu buscava: tinham coisas boas e coisas ruins. Ao mesmo tempo, foram escolas que se abriram muito para o filme. As diretoras foram muito simpáticas à idéia. Isso era importante porque escola é um lugar muito fechado. Em outras, eu entrava e as pessoas diziam: “você pode vir aqui só de segunda e quinta?”. Entendi que essa limitação poderia não permitir fazer o que eu queria. Fui vendo que ou o filme iria ganhar uma cara de denúncia, porque algumas escolas são muito ruins, ou que então eu não teria liberdade. Acabei voltando para as primeiras. O critério geral foi a receptividade que eu tinha na escola, e a possibilidade de a escola ter contrastes entre o bom e o ruim, para que o filme não tomasse um caráter de denúncia.



E como você se inseriu no cotidiano escolar?


Foi um processo muito longo dentro das escolas. Como moro no Rio de Janeiro, fui à de Caxias no mínimo dez vezes, em dois ou três dias seguidos, para entender, ver como funcionava, antes de filmar. Depois, filmei em várias etapas. Filmava um pouco, aí voltava três meses depois. Nesse ínterim, eu retornava sozinho à escola. Precisava ter mais intimidade. Esta é a grande diferença do trabalho: ele foi feito num período longo, depois de um longo período de maturação, e um longo período de intimidade com as pessoas. Isso permitiu uma relação com eles que foi muito proveitosa para o filme. “Ih, lá vem o João”, diziam.



Da primeira visita até a última, quanto tempo se passou?


No mínimo, uns dois anos. Filmei uma etapa, fiz uma pré-montagem, vi os alunos que estavam rendendo mais e as histórias que estavam funcionando. Foi aí que o tema da família acabou saindo. Ia muito para fora da escola. A família e a droga são duas coisas que circundam a escola, e que seriam outros dois filmes. Por isso, esses temas ficam só tangenciando o documentário. A partir dessa primeira pré-montagem, fui definindo o foco e as pessoas.



Quantas horas de material foram captadas?


Cerca de 35 horas. A primeira etapa de filmagem teve umas 10 horas. Não pude usar algumas pessoas no filme porque não seria bom para elas. Não podia expô-las. Não queria estigmatizar ninguém.



Esses dois anos de imersão representaram descobertas? Você ficou surpreso com o que viu?


Foi muito difícil, não sob o ponto de vista da dificuldade de fazer, mas porque a realidade era muito sem saída. Eu não via solução. Eu via um monte de gente imersa em uma situação sem saída. Professores, alunos, diretores. Não é que o ambiente seja muito ruim. Não é isso. Os ambientes até são interessantes. Mas você não via as pessoas ganhando uma perspectiva de vida real. É como ir a uma fábrica de automóveis que fabrica carros que não andam. Imagine como seria isso: entrar na Volkswagen, aquele pessoal todo trabalhando, e quando chega no final o carro não anda. O que seria da fábrica? As pessoas que fazem a política de educação não têm noção de como é uma escola. O ministro da Educação tinha de passar uma semana dentro de uma escola de ensino médio na periferia de uma grande cidade. Só ficar lá, olhando. O Henrique Meirelles (presidente do Banco Central) tinha de fazer isso também. Mudava a política de juros em uma semana. Não adianta querer fazer o país melhorar se as pessoas não são instrumentalizadas para melhorar. Não adianta. É ridículo. Tem de investir primeiro nas pessoas. Perceber a distância entre o mundo real e as políticas públicas foi muito frustrante.



Como foi sua vida de estudante?


Classe média, escola particular. De certa maneira, minha vida de estudante foi muito igual à de todos. Como adolescente, você está inserido dentro de um contexto, o da escola, que é super importante para você, mas você só está pensando em você. A escola não consegue perceber isso. O adolescente é muito egocêntrico, voltado para a problemática que ele vive. Se você perguntar para alguém como foi sua vida de estudante, acho que ele vai lembrar mais das relações que teve na escola, das dificuldades, das perseguições, se era bom ou mau aluno, e o que isso representava para o grupo. Eu me lembro do meu cotidiano ali dentro no que diz respeito à minha relação com professores e alunos. Quase não me lembro da minha relação com o conteúdo. Do ponto de vista do adolescente, ele está procurando se inserir na perspectiva de um grupo, ser aceito por esse grupo, se afirmar perante esse grupo. Aprender vem depois disso.



Os professores que você conheceu têm idéia disso tudo?


Eles têm uma idéia intuitiva. O que mais me chocou foi não haver um conhecimento sistematizado sobre isso. Todo mundo sabe quais são as fases da adolescência. Mas como elas interferem dentro da escola, em alunos desinteressados e violentos? Pô, o homem já chegou à Lua. Como você não sabe por que o adolescente é violento dentro da sala de aula? Há razões óbvias para isso. O professor não pode achar que o aluno o está agredindo. O aluno está agredindo o que ele representa. Não pode se sentir ofendido porque o aluno xinga. Não é com o professor. É com a instituição, com a sociedade, porque o aluno tem raiva dos pais, por exemplo, e solta essa raiva no professor.



Como foi recebido pelos professores?


Com muita desconfiança. Variava de professor para professor. Mas todos eles apoiavam o trabalho. Tinham medo de que eu falasse mal deles. Que eu fosse fazer um trabalho que dissesse que o professor não ensina ou sei lá o quê. Não tenho certeza disso, mas me parece que o professor acha muito bom quando apontam os problemas ou as faltas dele, porque ele gostaria que melhorasse. E, de certa maneira, ele se sente incapaz de provocar essa mudança, porque o sistema é maior do que cada um deles, isoladamente. É difícil. Uma maçã podre corrompe o grupo. Vi isso acontecer. Tem uma escola com 10 professores; dois que não estão a fim corrompem o grupo. É como na sala de aula: se você é muito certinho, você sofre preconceito; se você é um professor muito “caxias”, também sofre preconceito dos outros professores.



Você viu um cenário de antagonismo entre professores e alunos?


A primeira motivação para fazer o filme foi exatamente essa. Um cenário de antagonismo. Falta de comunicação. Falta de percepção do outro. O filme mostra que os adolescentes e os professores estão no mesmo mundo. O que existe na escola é o contrário: há o mundo dos professores e o mundo dos alunos. Com o filme, acho que eles passam a ver de outra maneira.



Você concorda com a idéia de que boa parte do professorado hoje representa um profissional que, no fundo, gostaria de estar longe da sala de aula?


Completamente. É um problema absolutamente real. É um beco sem saída. O cara está ali, enfrentando 40 alunos todo dia, e não existe outra perspectiva senão a de fazer alguma coisa que não seja estar ali. Isso precisaria ser repensado, com certeza.



Pensa em usar o material que ficou de fora?


Em princípio, não. O que funciona no filme é o diálogo de temas. Acho que o DVD talvez não tenha nenhum extra, porque não tem mais nada para desenvolver do que está ali. A não ser que houvesse um recurso para filmar o que aconteceu com eles. Mas também é tudo muito transitório ainda, tem de esperar mais tempo.



Não há material que se possa organizar sobre professores, por exemplo?


Não. Justamente o complicado é o depoimento do professor na expectativa de quem vai olhar para ele e do que vai pensar. Isso tem muito. O professor fala o que esperam que ele fale. Isso não tem muito valor, você já leu no jornal.



Pensa em tocar alguma das idéias que ficaram de fora em outro documentário?


Em princípio, não. Gostaria de fazer um filme de ficção.



O filme já foi exibido nas escolas que participaram?


Já exibi para as pessoas, no cinema. Usei um pouco a estratégia de dar a eles a dimensão de que eles fizeram um filme. No futuro, vou fazer exibições nas escolas, em abril ou maio, depois que passar a primeira fase de lançamento.



E o lançamento em DVD?


Vai depender da carreira nos cinemas. Se ela for mais longa, vai demorar mais. Eu gostaria que fosse ainda no primeiro semestre.

Autor

João Jardim


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