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Entrevistas

Ruína da alma

É preciso estar ciente do "acidente dos conhecimentos" para enfrentar o terror do progresso e o sucesso das tecnociências, diz o autor de L'Université du Désastre (A Universidade do Desastre, 2007, ainda sem tradução em português)

Publicado em 10/09/2011

por Paul Virilio

O conhecimento é o motor dos desastres que assolam a humanidade, defende Paul Virilio, urbanista, filósofo e "intelectual de defesa" apaixonado pelo bunker e moldado pelos traumas da Segunda Guerra Mundial. Para o intelectual francês, a abertura de uma "universidade do desastre", com o objetivo de descobrir as novas humanidades frente à "desumanidade do progresso" é um imperativo. Em entrevista a Nicolas Truon, do Le Monde de l´Éducation, esse catastrofista esclarecido fala sobre a asfixia do tempo a que o homem contemporâneo está sujeito.  Seu último livro, A Universidade do Desastre, não é uma crítica ao desastre da universidade, mas um pleito para uma faculdade das catástrofes.


Por que o senhor considera que o acidente deva fazer parte do patrimônio mundial da humanidade?

O século 20 foi o século das grandes catástrofes científicas, técnicas e éticas, como ilustram Auschwitz e Hiroshima. O século 21 nos faz entrar num novo mundo globalizado, pondo-nos frente a frente com um acidente integral, que envolverá toda a humanidade. Como dizia [a filósofa] Hannah Arendt, "a catástrofe e o progresso são as duas faces da mesma moeda". Desenvolver uma técnica é desenvolver uma catástrofe específica. Inventar o trem é também gerar o descarrilamento; o barco, o naufrágio; o avião, a queda. E a internet carrega um acidente integral que virá, como deram mostras os ciberataques na Estônia na primavera de 2007. Todo progresso é um risco assumido.


Uma vez fascinados pelos prodígios e as invenções tecnológicas, os contemporâneos têm condições de medir a amplitude dos potenciais estragos do progresso?

Quando realizei a exposição sobre os acidentes na Fondation Cartier, intitulada "O que está acontecendo" (2003-2004), fiz uma experiência de pensamento com os visitantes. O Airbus A 380 é um avião de linha performático, mas significa também 800 mortos potenciais. Vocês consentem, eu lhes dizia, pois aceitam essa tecnologia. Amanhã, imaginem que engenheiros elaborem uma máquina voadora capaz de transportar 10 mil pessoas e que permita ir aos seus antípodas por 1 ou 2 euros. Vocês consentiriam? Sim. Então, continuemos. Imaginem agora uma ilha voadora, capaz de transportar 6 milhões de pessoas. Vocês não consentem mais. Assim nasce a noção de uma monumentalidade negativa. Do mesmo modo que há monumentos negativos da história, como Auschwitz, Hiroshima e Oradour-sur-Glane, não vejo por que as catástrofes técnicas não fariam parte do patrimônio da humanidade. Não no seio de um culto do desastre, mas no interior de um memorial do progresso.


Por que uma universidade e não um museu do acidente? E quais novas ciências humanas e disciplinas seria preciso ensinar nessa instituição?

Durante os anos 1980, eu queria realmente abrir um museu do acidente, depois um conservatório das catástrofes no qual pesquisadores praticariam testes de crash em todas as disciplinas. E depois as grandes manifestações contra o contrato do primeiro emprego (na França) questionaram a própria universidade. A questão da catástrofe deve colocar-se no nível do universal, isto é, do pensamento universitário, que nasceu entre Bolonha e a Sorbonne por volta de 1200. Na virada do ano 2000, precisamos fundar outra vez a universidade, não simplesmente sobre novas tecnologias de ponta ou autonomia econômica, mas sobre a inteligência do desastre. Seria conveniente, de fato, ensinar novas humanidades face à desumanidade do progresso. A civilização européia saiu da universidade dos conhecimentos judaico-cristãos, greco-latinos e árabes. É preciso agora fundar a universidade diante da nova barbárie, que é a catástrofe do progresso. Inaugurar uma universidade do desastre não é para atemorizar, mas para enfrentar o terror do progresso e o sucesso das tecnociências.


Num curso da universidade do desastre, seria preciso, segundo o senhor, ensinar a ecologia verde, mas também a ecologia "cinza". O que entende por isso?

Há duas ecologias. De um lado a ecologia das substâncias e da natureza, do esgotamento das reservas, da biodiversidade, e do efeito estufa. De outro, há a ecologia do esgotamento das distâncias e do tamanho natural. Pois não há objeto sem tamanho. No entanto, o tamanho está esgotado pelos fenômenos de aceleração dos transportes e das transmissões. Assim, nós não vivemos o fim da história, mas sim o fim da geografia: a Terra é pequena demais para o progresso. Quando você pega o TGV (trem de grande velocidade), a geodiversidade se esgota, do mesmo modo que as substâncias da biodiversidade das espécies se extinguem com a poluição atmosférica. Mas a ecologia "cinza" não deixa traços aparentes. Para o "dromólogo" que sou, "dromas" é "corrida" em grego, então para o fenômeno da velocidade que tento ser, a velocidade é uma poluição das distâncias que reduz a nada o campo da história. Atrás desse projeto da universidade do desastre, há alguma coisa de positivo: trata-se de encarar a medusa com um espelho para que ela própria se mate. Para resumir, diria que não sou pessimista, mas claustrofóbico.


A universidade do desastre tem antecedentes?

O modelo bárbaro da universidade do desastre tem um nome: Arsenal. O arsenal de Veneza inventou as catástrofes quando Galileu propôs sua famosa luneta, não para olhar a Lua, mas para fazer guerra no mar. O complexo militar-industrial nasceu no Arsenal. Hoje, os pesquisadores gostam da bomba antimatéria. A universidade do desastre já existe, portanto, mas para o mal. Mas a universidade que preconizo seria criada para enfrentar os acidentes. Não para produzi-los, mas a fim de evitá-los pelo pensamento e pela inteligência.


Em que medida o saber universitário é afetado pela catástrofe e ele próprio acidentado?

Ao acidente das distâncias e das substâncias acrescenta-se o acidente dos conhecimentos, isto é, da consciência, como os de Auschwitz e Hiroshima, que são metonímias deste. Lembremos que Auschwitz foi também um laboratório de biologia onde o médico Mengele "exercia" e não esqueçamos que a física posta em prática por Oppenheimer trouxe a possibilidade do fim do mundo. A frase de Rabelais, "ciência sem consciência só é ruína da alma" tornou-se uma realidade. É preciso hoje enfrentar o acidente dos conhecimentos. O que foi ferido durante o século 20 não foi somente a moral e os direitos do homem, mas também o saber e os conhecimentos. "Não há ciência do acidente", dizia Aristóteles. Exceto quando o conhecimento em si mesmo é a substância acidentada.


As dificuldades escolares não provêm em parte da contradição entre o tempo real e o tempo encurtado do mundo globalizado, entre a lentidão da lousa e a rapidez das telas eletrônicas?

 

É evidente. E a universidade se en­­con­­­­tra na mesma posição que a universidade da Idade Média às vésperas do Renasci­mento, que, com sua cosmogonia e sua nova perspectiva, revolucionava o pensamento estabelecido. Os tempos mudaram, o tempo também. A universidade atual está às vésperas de um renascimento que parte de um dado: o mundo é finito, limitado. A finitude terrestre ou humana não é triste. Para um homem, não é triste medir 1,80 m! O fim do mundo era a margem para Cristóvão Colombo. Hoje, o fim do mundo é o vazio interplanetário. A dromologia, economia política da velocidade, é uma musicologia, uma arte dos ritmos que pode contribuir para harmonizar as acelerações e as desacelerações, e não privilegiar "a aceleração e a história", como dizia [o historiador francês] Daniel Halévy.


Por que o senhor considera que a guerra foi "seu pai e sua mãe", como escreveu num de seus primeiros livros, A Insegurança do Território?

Filho da guerra, o conflito mundial foi minha universidade do desastre. Eu tinha 11 anos quando Nantes foi violentamente bombardeada, aos 16 e 23 de setembro de 1943. Destruir uma cidade num dia é um fenômeno de destruição do real. Foi um verdadeiro trauma. Até a guerra de 1914-1918, havia um front e um recuo. A guerra de 1939-1945 abolia essa separação e se encontrava perto de você numa manhã. Sou então um filho da Blitzkrieg, da guerra relâmpago que apaga a realidade urbana e conduz a Hiroshima e Nagasaki. Daí meu interesse profissional pela guerra, a fortificação e a velocidade. Meu trabalho é assim coerente com seu destino. De certa maneira, me tornei um intelectual de defesa que fez suas humanidades através dos dramas do século 20.


Em que sentido a cidade é o ponto nevrálgico da globalização?

No sentido que compreenderam os terroristas dos atentados do World Trade Center ou do metrô de Londres. A cidade é o hipercentro da globalização, que é antes de tudo a mundialização do tempo real. No espaço real, não há nada que tenha mudado. Os antípodas são sempre antípodas, os chineses na China e os franceses na França. O que criou a globalização é o tempo real. O centro do mundo se situa no tempo real da bitransmissão da informação, e não mais nos centros da cidade. A globalização é do tempo e não do espaço. O tempo novo criou a capital das capitais, cujo "centro está em todo lugar e a circunferência em lugar nenhum", como dizia Pascal. À perspectiva real, figurada e teorizada pelo Quattrocento, junta-se a nova perspectiva das telas de telecomunicações que criam o novo relevo do mundo.


O que nos prepara um mundo fabricando o que o senhor chama de "sincronização das emoções"?

Depois da padronização dos objetos das opiniões do século 19, assistimos hoje à sincronização das emoções, das quais o desembarque na Lua, os atentados do 11 de setembro em 2001 e o tsunami de 2004 são eminentes ilustrações. Vivemos um comunismo dos afetos. O comunismo do marxista estava ligado à comunidade dos interesses das classes sociais antagonistas. O comunismo dos afetos está em simbiose com a comunidade de emoções de cada um. Daí o individualismo de massa que se desenvolve hoje. A globalização dos afetos em tempo real é um fenômeno considerável que pertence ao religioso. É de algum modo uma espécie de parusia [a segunda vinda de Jesus Cristo à Terra, como descrita pelo apóstolo Paulo]! O coletivismo e o totalitarismo eram a possibilidade de controlar as massas pela polícia; o individualismo de massa permite controlar qualquer pessoa por um telefone celular ou por um dispositivo de identificação de radiofreqüência.


"Um otimista é um homem que vê uma chance atrás de cada calamidade", dizia Churchill, que o senhor cita em seu livro. Seria um bom resumo de sua filosofia?


Certamente. A aquisição dessa consciência do desastre é a própria esperança. A única esperança válida é a que surge no fim do vazio. Trata-se de inovar uma esperança na escala do desastre. O desastre ecológico deve fazer nascer uma esperança etnológica que uma nova universidade pode fazer surgir. A universidade do desastre é uma universidade da esperança e da resistência.
(Tradução: Mônica Cristina Corrêa)

Autor

Paul Virilio


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