NOTÍCIA
ECA faz 15 anos, mas é desconhecido por escolas
A cena se repete em várias escolas do país. Um professor chama a atenção do aluno, que responde com a frase: “Você não pode fazer nada porque eu sou
de menor
, e a lei está do meu lado”. A lei em questão, à qual se referem os estudantes com menos de 18 anos, é o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei 8.069, que completa, em 13 de julho, 15 anos. Ainda representa uma incógnita, no entanto, para muitas pessoas que trabalham diariamente com os temas por ele tratados.
Manifestação, no início dos anos 90, por direitos da infância |
“A má interpretação, a falta de conhecimento e o senso comum são os fatores que fazem com que o ECA seja apontado como a lei que dá direitos e não deveres”, afirma José Fernando da Silva, presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). “Os professores, assim como a maioria da população, não conhecem o Estatuto.” O desconhecimento leva à idéia de que a lei serve como uma arma para os adolescentes, quando na verdade se trata de um escudo.
A principal reclamação de educadores é de que a lei veio para tirar a autoridade docente. “Os alunos se sentem no direito de fazer o que bem entenderem, sem o mínimo de respeito pelo professor”, afirma Gláucia Piovezan, professora de matemática que dá aulas em colégios particulares de Campinas, Indaiatuba e Jaguariúna, no interior de São Paulo. Ela acredita que os adolescentes são “muito protegidos” pelo ECA. “Às vezes a lei exime a pessoa de seus atos somente por ela ser menor de 18 anos”, concorda o professor carioca Francisco Tomas.
Segundo Neyse Kozac, coordenadora pedagógica de 5ª à 8ª série do Centro de Ensino Candanguinho, em Brasília (DF), muitos professores reclamam que os adolescentes “jogam na cara” o ECA. Mônica D’Ávila, coordenadora pedagógica da Escola Estadual Godofredo Furtado, em São Paulo (SP), pensa que os educadores não sabem mais como lidar com os adolescentes. “Nós não impomos mais limites, porque não sabemos até onde podemos chegar.” Conceição Carvalho, coordenadora pedagógica do Colégio Brasília, em Aracaju (SE), diz que os professores sentem-se “inseguros e tímidos na hora de exercer suas atividades”.
O procurador de justiça Paulo Afonso Garrido de Paula, co-autor do ECA, explica que a visão desses professores é fruto da mudança de paradigmas na abordagem legal da criança e do adolescente. “Eles passaram com o ECA a ser sujeitos de direitos, não objetos dele.” Em nenhum momento, argumenta ele, a lei determina que professores não tenham mais autoridade sobre os alunos. “Eles não podem é desrespeitar os alunos, da mesma forma que não podem ser desrespeitados.”
Mesmo quando lido, o ECA é interpretado de modo confuso. Cristina Albuquerque, gerente da Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, vinculada à Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, afirma que isso ocorre principalmente no caso da inimputabilidade do adolescente. “As pessoas lêem a palavra ‘inimputável’ e acham que o adolescente sairá impune de qualquer situação.” Ela explica que a criança e o adolescente não podem ser culpados por eventuais delitos que cometam em relação ao Código Penal. “O ECA estabelece medidas socioeducativas, que podem até privar o adolescente de liberdade.”
Essas medidas podem ser aplicadas, segundo o artigo 98 do Estatuto, quando houver ação ou omissão da sociedade ou do Estado, falta, omissão ou abuso dos pais ou responsáveis, ou em razão do comportamento do adolescente – e aqui está incluído o comportamento nas escolas. Depredação de patrimônio, agressões físicas, desrespeito aos professores e colegas, e porte de armas e drogas, para citar alguns exemplos, são passíveis de repreensão. Atos infracionais menos graves podem motivar advertência, obrigação de reparar o dano e prestação de serviços à comunidade. Nos casos mais graves, os adolescentes podem cumprir Liberdade Assistida (LA), semiliberdade ou internação, a critério do juiz da vara da infância e juventude.
As duas primeiras relacionam-se diretamente ao dia-a-dia da escola. A LA determina que o adolescente permaneça em liberdade quando comete algum ato infracional, desde que seja supervisionado, freqüente a escola e se apresente periodicamente aos órgãos responsáveis. No caso da semiliberdade, o adolescente passa os dias em liberdade e as noites em unidades de semiliberdade, ou vice-versa. Ambas têm como pressuposto que o adolescente esteja matriculado e freqüentando uma escola. Muitos adolescentes que saem das unidades de internação cumprem as duas medidas.
A aplicação delas, porém, encontra dificuldades, em boa parte por conta do preconceito que o adolescente sofre quando chega à escola e também pelo despreparo dos educadores em lidar com o assunto. “Já vi muitos casos de adolescentes que abandonaram a escola por terem sido discriminados”, diz Conceição Paganele, presidente da Associação de Mães e Amigos dos Adolescentes em Risco (Amar), que cuida de adolescentes que cumprem medidas socioeducativas. “As pessoas vêem que o menino está cumprindo medida e tudo que acontece vira culpa dele. É claro que ele vai se afastar.”
“É muito difícil lidar com estes adolescentes”, explica Neyse. “Até porque o garoto é pego com uma arma na escola, encaminhado ao Conselho Tutelar, sai de lá sem acontecer nada e volta para a escola.” O ECA prevê que crianças e adolescentes sejam “prioridade absoluta”. Para isso é necessário que exista rede de atendimento, composta por assistência médica, alimentação, escola, lazer e, caso necessário, acompanhamento especializado. Todos esses direitos devem ser garantido pelo poder público. “O problema é que essa rede muitas vezes não existe e, quando existe, é incompleta”, afirma Osmar Dettmer, coordenador geral do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente de Santa Catarina.
Educadores queixam-se de que a falta dessa rede de atendimento sobrecarrega as escolas e os professores, que têm de cumprir as funções de pais e assistentes sociais. “Não temos condições de resolver todos os problemas das crianças”, reclama a professora Maria Luisa Blanco, que dá aulas em duas escolas em São Paulo (SP). “Tenho mais de 600 alunos, como posso saber dos problemas de todos eles?”
Há dificuldades na aplicação das medidas mesmo quando a escola se dispõe a ajudar. “Faz dois anos que tento arrumar um fonoaudiólogo para um aluno, sem resultados”, conta Mônica. “Quando conseguimos detectar o problema do aluno, não temos como resolvê-lo.”
“Conheço, mas não li”
Entre mais de 30 educadores da rede pública e particular, consultados por Educação em sete estados (São Paulo, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Sergipe, Maranhão, Ceará e Santa Catarina), todos disseram conhecer o ECA. Quando perguntados se o tinham lido na íntegra, porém, apenas cinco responderam afirmativamente. Em todas as escolas consultadas, há um exemplar do Estatuto na biblioteca.
Se está nas escolas, por que não é lido? “Acredito que seja um problema de desconhecimento geral da lei, não só do ECA”, afirma Wilson Tafner, promotor da Vara da Infância e Juventude. Fernando Silva, do Conanda, aposta na capacitação de professores e no debate entre escola, família, governo e movimentos sociais. “O único modo de combater a desinformação é promover cursos e palestras para os professores”, afirma.
“O problema é que mal temos tempo para cuidar das aulas, provas e trabalhos”, afirma a professora Yara Lúcia Calles, que já foi candidata a conselheira tutelar. “A culpa não é do professor, a rede pública é que não abre espaço para a discussão sobre o Estatuto.” Segundo o professor Djacir de Souza, que dá aulas há 20 anos na rede pública e particular de Fortaleza (CE), a formação dos professores deve incluir debates com gestores da educação, juízes e conselheiros tutelares.
Pelo menos três secretarias estaduais de Educação – de Goiás, Rio Grande do Sul e São Paulo — já distribuíram o ECA para as bibliotecas de todas as escolas da rede. Está prevista para 2005 a distribuição de 2 milhões de exemplares, graças a parceria entre a Secretaria Especial dos Direitos Humanos, o Conanda e a Nestlé. Desse total, mais de 600 mil serão distribuídos pelo MEC a escolas de todo o País. O restante será destinado a delegacias, pastorais, Centros de Defesa e Conselhos de Direitos.
Entre os poucos professores que leram o Estatuto, há reclamações sobre a “subjetividade” da lei. “Faltam ali coisas mais específicas”, explica Mônica D’Avila. Ela cita como exemplo um adolescente que quebra um vidro da escola. “Se o pai não tem dinheiro para reparar o dano, o adolescente faz serviços comunitários, mas o vidro continua lá, quebrado.”
Ângela Novaes, diretora da Escola Estadual Miguel Kruse, de São Paulo (SP), lembra-se de um caso de um adolescente que agredia fisicamente os colegas e os professores. Conta que a escola chamou a atenção do aluno várias vezes, chamou os pais e pediu acompanhamento especial para ele. Tudo sem efeito. “Os pais não podiam vir com o filho na escola porque trabalhavam e, aqui, não temos como deslocar uma pessoa de suas funções para cuidar dele”, diz Ângela. “O ECA é uma lei muito clara, mas e quando não temos instrumentos para cumpri-la?”
Na fiscalização, conselhos autônomos
Não bastassem os problemas de interpretação da lei, as escolas têm de lidar com problemas estruturais, que impedem o cumprimento do ECA. Segundo os educadores, a falta de profissionais para atender as crianças – psicólogos, orientadores educacionais, médicos, dentistas – sobrecarrega a escola. Para fiscalizar essa rede de atendimento, foram criados os Conselhos Tutelares, órgãos autônomos, não subordinados a qualquer autoridade governamental, formados por representantes da sociedade civil eleitos para zelar pelo cumprimento do ECA.
O problema, segundo educadores, é que muitas vezes o Conselho Tutelar exige medidas que as escolas não são capazes de cumprir. “Nunca um conselheiro veio até a escola para ouvir a versão que temos sobre um problema”, lamenta Ângela Novaes. “Tudo o que fazemos na escola é baseado no ECA, não desrespeitamos a lei.”
Os conselheiros defendem-se, dizendo que são encarregados da fiscalização, e que suas deliberações precisam ser acatadas. Eles afirmam que a escola desconhece a função do Conselho Tutelar. “Os professores são mal preparados, não procuram se aprimorar”, afirma Antônio de Oliveira Gomes, conselheiro tutelar de São Paulo.
Outro problema recorrente refere-se à falta de vagas para as crianças. Os conselheiros tutelares cobram das escolas, que, em muitos casos, alegam não ter condições para cumprir a determinação legal. “Se o juiz manda colocar o aluno na sala de aula e não tem vaga, não é culpa da escola”, explica Fernando Silva, do Conanda. “A culpa é do governo, que não construiu mais unidades de ensino.”
O promotor Wilson Tafner lembra-se de quando trabalhava como promotor de infância em cidades da Grande São Paulo. “A escola comunicava ao conselho que tal criança não ia mais à escola e, quando o conselho checava o que estava acontecendo, via que o menino não ia porque não tinha tênis.” A professora Maria Luisa Blanco conta que, muitas vezes, os alunos não têm dinheiro para pegar o ônibus e chegar à escola. “Quem tem de providenciar isso? A escola e o conselho eu sei que não, apesar de muitas vezes fazermos voluntariamente.”
O fim do “menor”
O ECA foi criado para complementar o artigo 227 da Constituição Federal, que aponta como dever da família, da sociedade e do Estado zelar pela integridade física e moral de crianças e adolescentes. Movimentos sociais de promoção dos direitos da infância mobilizaram-se para a inclusão desse artigo na Constituição. Milhares de crianças entregaram um abaixo-assinado com mais de 1 milhão de assinaturas a representantes da Assembléia Constituinte. A partir daí, o Código de Menores precisava se adequar à nova Constituição.
A doutrina da Proteção Integral, na qual o Estatuto foi baseado, diz que todas as crianças e adolescentes são prioridade absoluta — em qualquer decisão tomada, eles têm de ser os primeiros a se levar em conta. Investimentos em educação e saúde, por conta disso, precisam ser pensadas primordialmente para eles.
Esse conceito sucedeu a Doutrina da Situação Irregular, presente no Código de Menores (Lei 6.697/979), que previa a intervenção do Estado somente quando crianças e adolescentes se encontravam em risco social. É do Código de Menores que vêm termos utilizados até hoje: “menor abandonado”, “menor carente” e “menor delinqüente”. O termo “menor” foi abolido pelo Estatuto por ser considerado pejorativo.
Outra mudança promovida pelo ECA foi a descentralização do atendimento. Desde 1990, não só os governos têm obrigação de garantir direitos. A sociedade, por meio dos Conselhos de Direitos e dos Conselhos Tutelares, pode também participar das decisões e fiscalizar se as políticas são implementadas. Em caso de descumprimento, pode-se acionar o Ministério Público. “É mais fácil um município saber quais são suas prioridades em relação às políticas de atendimento do que o governo federal”, explica Osmar Dettmer, do Conselho Estadual de Santa Catarina.
Sujeitos de direitos e de desejos
Com a promulgação da atual Constituição, em 1988, diversos movimentos sociais começaram a surgir para a defesa das mais variadas causas, como a preservação da Amazônia e a garantia de acesso ao sistema público de saúde. Nesse contexto de extrema mobilização, foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990. A partir de então, várias organizações não-governamentais foram criadas para garantir o cumprimento da lei. Outras expandiram a noção dos direitos da infância.
O Projeto Axé também completa 15 anos, levando às crianças de rua de Salvador (BA) a idéia de que elas não são apenas sujeitos de direitos, como diz o ECA, mas também “sujeitos de desejo”. A “pedagogia do desejo”, como foi denominada pelo pedagogo italiano Cesare de Florio La Rocca, criador do projeto, consiste em “trazer a melhor educação aos filhos da exclusão social”. Foi junto ao amigo Paulo Freire que La Rocca começou a pensar nessa pedagogia, baseado no conceito de que crianças e adolescentes precisam ter prazer no que fazem. A arte-educação foi o instrumento escolhido para viabilizar a proposta.
Hoje, assim como o ECA, o Axé é referência mundial e atende mais de 1.500 crianças — já foram 13.700 desde sua fundação. Veronildes Santos, 22 anos, começou a ser atendida pelo projeto há 10 anos e hoje trabalha na ONG como recepcionista. Os planos para o futuro incluem cursar uma faculdade. “Uma das coisas que eu aprendi aqui é que eu tenho capacidade de fazer o que eu quiser.” Robson Souza, 21 anos, concorda. Ele também foi atendido pelo Axé e hoje desenvolve projetos em parceria com a ONG. “Eu sempre tive sonhos na minha cabeça, mas sem a ajuda do projeto talvez eu não acreditasse em mim o suficiente para colocá-los em prática.”
A Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente é outra importante ONG criada no ano de promulgação do ECA. O foco principal era o combate ao trabalho infantil. Hoje, é reconhecida principalmente por projetos como
Prefeito Amigo da Criança
e
Presidente Amigo da Criança
, em que candidatos a cargos executivos se comprometem, se eleitos, a trabalhar em defesa dos direitos de crianças e adolescentes. “A fundação é uma grande articuladora da sociedade”, afirma Rubens Naves, diretor-presidente. Ao captar recursos de empresas e redistribuí-los a projetos sociais, além de incentivar políticas públicas, ela não atua diretamente no atendimento, responsabilidade dos 14 projetos que ajuda a manter.
Reportagem: Jéssika Torrezan (Agência Repórter Social)