NOTÍCIA
Se a razão de ser de um livro é ser lido, a razão de existir de uma biblioteca contemporânea não é mais guardar acervo, mas ofertar-se à comunidade como um espaço de interação social sim, mas, principalmente, de formação de leitores
Com um suspiro, a contadora de histórias fecha o livro e observa a plateia infantil. Olhinhos plenos do silêncio brilham de encantamento. Um garoto de 7 anos vai até ela: “Tia, quando crescer gostaria de ser um livro para mudar o mundo”. Sorrindo, ela disse: “Você pode escrever um” — ao que ele prontamente retrucou: “Eu gostaria de me tornar um livro mesmo, é mais divertido”. Essa cena aconteceu com Léia Felipe, agente cultural e pedagoga, durante suas andanças no Distrito Federal com o projeto Mala do Livro. Esse menino vê o livro como agente de transformação e, com poucas palavras e muito coração, confirma o poder da leitura.
Desde a Biblioteca de Nínive (668 a.C. a 627 a.C.), onde hoje é o Iraque, até a famosa de Alexandria (século III a.C.), no Egito, o livro e a biblioteca atravessam os tempos dizendo: “estamos aqui” e confirmam um postulado: livros são companheiros eternos, desde que o encontro com o leitor aconteça. Se a razão de ser de um livro é ser lido, a razão de existir de uma biblioteca no terceiro milênio não é mais guardar acervo, mas ofertar-se à comunidade como um espaço de interação social sim, mas, principalmente, de formação de leitores, pois é o vínculo livro-leitor que pereniza uma biblioteca.

Formação de mediadores de leitura da ONG Vaga Lume na comunidade Axipicá, em Oriximiná (PA). “Formamos voluntários da própria comunidade para atuarem como mediadores de leitura”, diz a diretora executiva, Lia Jamra (Foto: divulgação)
A biblioteca reúne, organiza, preserva e oferece conhecimento aos usuários, mesmo que nos primórdios fosse uma oferta bem mais elitista do que hoje. O fato é que, em diferentes contextos físico, político, econômico e cultural, estagnar nunca foi opção para a instituição biblioteca. Ela sempre se reinventa para manter-se ativa e atual, sintonizada com a longa trajetória evolutiva do sistema de produção e distribuição de mídia. De pergaminhos, tabletes de argila e códices saltamos para a era dos disquetes, CDs, pendrives, e-books, bancos de dados eletrônicos e tudo o mais que repousa no devir.
Maria Betânia Ferreira, pedagoga e amante da linguagem com vasta experiência em salas do Brasil adentro e afora, lembra da música Parabolicamará, de Gilberto Gil. A letra se refere a um mundo que se agigantou com o advento da antena parabólica. “Com a internet, essa transformação foi ampliada geometricamente, tempo e espaço inteiros aqui e agora em qualquer lugar. Portanto, rever o papel e atualizar vale para tudo e para todos”, diz Betânia.
Nesse movimento contínuo pela valorização do livro e da biblioteca, grupos de trabalho, em especial no terceiro setor, reúnem profissionais que lutam pela criação de políticas públicas que fertilizem o hábito da leitura nas escolas e implantem bibliotecas acessíveis a todos. Merece destaque a campanha Eu Quero Minha Biblioteca, visando garantir que todas as escolas brasileiras, públicas e privadas, tenham bibliotecas. Para isso, articula organizações, pessoas e ações para efetivar a Lei 12.244/10, que estabelecia a obrigatoriedade de bibliotecas em instituições de ensino até 2020. Isso não aconteceu. Para que tal lei fosse cumprida, o Brasil teria que construir, em uma década, 93 mil bibliotecas — só no ensino fundamental.
Reni Adriano, formador de mediadores de leitura: bibliotecas não precisam rever seu papel, mas reafirmar o quanto são fundamentais, especialmente hoje, com a “catástrofe cognitiva das mídias sociais plataformizadas” (Foto: arquivo pessoal)
Também é o caso da respeitada Organização Social Vaga Lume, que atua na Amazônia Legal brasileira, levando acesso à leitura para crianças e jovens de comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas da região. Lia Jamra, diretora executiva, analisa que “precisamos transformar a percepção de que a biblioteca é um lugar silencioso e restrito para ser percebido como um espaço vivo para convivência, trocas e celebrações”.
A última pesquisa Retratos da Leitura no Brasil revelou que as bibliotecas ainda são vistas como lugares de acervo e consulta. De fato, Lia conta que, nas comunidades onde a Vaga Lume atua, a biblioteca continua sendo um dos principais pontos de acesso à leitura, de encontros culturais, de valorização das identidades locais e de diversão.
“Somente em 2024, as bibliotecas emprestaram mais de 52 mil livros. Ou seja: não basta apenas investir em tecnologia, é preciso, sobretudo, manter-se conectada às necessidades e aos sonhos das comunidades. E isso só acontece com o contato entre pessoas no mundo real, estabelecendo conexões verdadeiras, olho no olho, fora do virtual”, diz Lia.
Betânia traz mais dados dos seus alfarrábios e cita um trecho da carta enviada a um amigo, pelo filósofo romano Cícero: “Si hortum in biblioteca habes, deerit nihil”. Ela traduz: “se é possível sentar para trocar ideias lá onde o saber está guardado, nada mais vai faltar (quando nos encontrarmos)”.
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Leitura é abandonada em casa e na escola
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De acordo com Betânia, o(a) bibliotecário(a) é “a pessoa guardiã desses lugares ainda sagrados como fonte de aprimoramento e é sua a tarefa de criar a oportunidade de estar com outras pessoas numa situação de troca, que é, justamente, o principal elemento para aproximar a comunidade da biblioteca”. Entenda-se situação de troca como toda e qualquer atividade que envolva compartilhamento de ideias, saberes, conhecimentos, informações, sabedorias, prazer estético, leituras, notícias — e tudo isso pode acontecer numa biblioteca.
“Afinal, as bibliotecas e os livros foram criados para que o que alguém sabe, viu, imaginou e experimentou seja apropriado pela humanidade. O que será compartilhado é infinitamente variado e amplo, porém simples, porque o mundo anda nos esgotando com superespetáculos e superinformação. A verbosidade que nos chega nem sempre é compreendida, visto que o analfabetismo funcional é cada vez mais sério e espalhado”, conclui Betânia.
Se há convergência entre as muitas vozes nessa seara é o esforço para compreender o papel da biblioteca contemporânea diante dos novos contextos sociais e tecnológicos. Alguns rótulos como ‘biblioteca viva’ e ‘biblioteca plataforma’ vêm surgindo, acompanhados de verbos como ‘redefinir’, ‘reinventar’ e ‘redesenhar’ na tentativa de nomear essa necessidade de transformação. Resta-nos compreender, discernir e ter cuidado com a síndrome da inovação para não seguir adjetivando a biblioteca sem aprofundar discussões, como alerta Reni Adriano, escritor, dramaturgo e formador de mediadores de leitura: “A roda já foi inventada, mas os horários de funcionamento devem ser revistos. Se as bibliotecas só funcionam no horário comercial, como as pessoas que trabalham vão frequentá-la? A rigidez do horário comercial é sintoma de uma gestão pública que foca a instituição como uma coisa que existe por si mesma, independentemente das necessidades do público ao qual se destina”, diz ele.

Mediação de leitura durante a implantação da nova biblioteca em Axipicá, Oriximiná (PA). ONG Vaga Lume atua em 23 municípios da Amazônia Legal (Foto: divulgação)
No centro da tríade livro-biblioteca-leitores está o(a) bibliotecário(a). Quanto menos estática essa figura é, mais dinâmica a biblioteca será. É o que explica David Lanke, professor de Biblioteconomia na Universidade do Texas, em Austin (EUA), sobre bibliotecários(as): “são profissionais que podem promover um debate civilizado sobre como podemos nos reunir para pensarmos melhor. Fazemos isso via engajamento e não guardando livros. Fazemos isso criando conexões e não coleções. Fazemos isso por dedicação aos valores que nos sustentam há centenas de anos e à constante reinvenção do nosso propósito”.
Na Vaga Lume, explica Lia Jamra, “formamos voluntários da própria comunidade para atuarem como mediadores de leitura, e são eles que pensam e realizam as atividades. Pode ser uma roda de histórias, mediação de leitura, oficina de livros artesanais ou um ponto de encontro entre jovens”.
É evidente e consensual o fato de a internet ter mérito na disseminação do acesso, armazenamento e recuperação de informação. Reni Adriano ressalta que “o acesso à banda larga e dispositivos eletrônicos que propiciem esse uso supostamente substitutivo das bibliotecas é condição para privilegiados — neste país em que ter direito é privilégio. Considerando apenas o segmento hiperconectado, penso que chegamos a um ponto de inflexão crucial, uma espécie de ressaca do nosso imenso entusiasmo em acreditar que as redes nos tornariam mais democráticos”.
No pensar de Reni, as bibliotecas não precisam rever o seu papel, mas reafirmar o quanto são fundamentais, especialmente hoje, com a “catástrofe cognitiva das mídias sociais plataformizadas”.
De acordo com dados do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP), o Brasil registrou 5.293 bibliotecas públicas em 2020, com uma diminuição de quase 800 bibliotecas em comparação com 2015, quando eram 6.057.
Depois de conceber e coordenar a campanha Eu Quero Minha Biblioteca por 10 anos, Christine Fontelles, socióloga e consultora em mediação de leitura, é categórica ao afirmar que “a internet não é a vilã do baixo índice de leitura no país. O que vemos não é uma leitura digital, mas uma rolagem de tela. A tela e a internet podem ser aliadas, mas para enveredar nessa jornada é preciso formação de base. Sem isso, a gente pouco faz”.
Em relação às bibliotecas escolares, é cenário comum vermos esse espaço como um depósito de tudo aquilo que não se quer na escola, do qual livros fazem parte, empilhados em algum canto. “Vemos espaços ociosos, precários, sem valor, sem sentido”, diz Christine. “Sabemos da quantidade de professoras afastadas por motivo de saúde e são jogadas dentro das bibliotecas sem nenhuma formação ou apoio. De novo, é uma questão de base, sempre. Nesse sentido, as bibliotecas comunitárias têm muito mais a falar e a oferecer, por terem sido um esforço da comunidade em suprir o que o poder público não oferta. Vai lei e vem lei e tudo fica como está, mostrando o desvalor da leitura em nossa sociedade. Se o desvalor existe no âmbito do papel, isso simplesmente se repete no digital. Não muda nada.”
Uma biblioteca deve estar atenta à programação de formação de leitores e à consolidação de uma cultura de leitura. “Não dá para se orgulhar de um grande número de frequentadores se, entre eles, pouquíssimos leem”, diz Reni. Afinal, o conhecimento envolve aspectos sutis e indizíveis capazes de fazer, por exemplo, uma criança querer ser um livro quando crescer. “Não se trata de mera cognição, mas da capacidade de fazer com que a forma de um texto suscite uma vibração que é da ordem do corpo mesmo. Educa-se para isso”, insiste Reni no tema da dimensão corporal da leitura.
Para vivificar as pesquisas e teses sobre a biblioteca do terceiro milênio, algumas pessoas vão para a arena com a cara e a coragem, transformando vidas por meio da leitura. Dilma Marques, por exemplo, criou, em São Sebastião (DF), o Instituto Biblioteca do Bosque (IBB), que há 18 anos funciona como espaço sociocultural. Sua história é contada no Catálogo Saberes de São Sebas, organizado pelo Instituto Garatujas e que reúne 16 lideranças femininas que transformam vidas.
“Nós usamos prateleiras nas laterais e, no fundo do espaço de 55 m² onde era a garagem de nossa casa, deixamos o salão para reuniões com a comunidade e gestores, pois trabalhamos literatura infantil, teatro e música com todas as faixas etárias”, conta Dilma, conhecida e querida por todos. Ela e o marido chegaram há 20 anos a São Sebastião e, ao perceberem a carência de livros, a alta reprovação escolar, mães que trabalhavam fora de casa sem tempo de acompanhar as crianças, o casal teve a ideia de montar a Biblioteca do Bosque, que hoje é Ponto de Cultura, aberto a todos, de domingo a domingo.

Dilma Marques criou em São
Sebastião (DF) o Instituto Biblioteca do Bosque (IBB), que há 18 anos funciona como espaço sociocultural (Foto: arquivo pessoal)
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Brasil tem mais não leitores do que leitores
Formar novos leitores para entenderem a si e ao mundo
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No Nordeste, na costa ocidental do Maranhão, Soraia Schalcher é a bibliotecária do Farol de Educação, no município de Guimarães. Ela não mede esforços para fazer a ponte entre os livros e a comunidade, organizando eventos dentro e fora do espaço. “Temos boa frequência dos estudantes pelo relacionamento que temos com os professores, mas procuramos marcar presença nos eventos da cidade, com o projeto Farol na Praça, por exemplo. Também promovemos rodas de conversa com escritores locais e oficinas de artesanato onde salpicamos literatura.”

Soraia Schalcher é a bibliotecária do Farol de Educação, em Guimarães (MA). Ela não mede esforços para a ponte entre livros e comunidade, organizando eventos dentro e fora do espaço (Foto: arquivo pessoal)
Léia Felipe costuma dizer que, onde há pessoas, lá está o seu projeto Leituras que Curam, viabilizado pela Mala do Livro, projeto do Governo do Distrito Federal (GDF). Léia acredita nas artes e no autoconhecimento como ferramentas para transformar o mundo. “Os livros resgatam nossa criança interior por meio do faz de conta, da imaginação, educam para o senso crítico e para o pensar questionador. Tudo passa pelo viés da leitura, todas as profissões precisam da profundidade da leitura. A Mala do Livro é ponte estreita para a comunidade ser incentivada a procurar as bibliotecas.”

“Os livros resgatam nossa criança interior”, avalia Léia Felipe, do projeto Leituras que Curam (Foto: arquivo pessoal)
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