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José Pacheco

Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)

Publicado em 28/07/2025

Apenas crianças… sem rótulos

Quando o fundamentalismo religioso invade a escola, a abertura estreita de uma ‘burca mental’ somente permite ver o que é permitido num horizonte encurtado pelo fanatismo

Torres Vedras, 30 de abril de 2045 | E lá fui mais uma vez, até junto da Laura e das suas educadoras. Decorria o conclave, para eleição de novo Papa. E não tardou que conversássemos sobre educação… religiosa.

O pai do Abel era agnóstico. E, naquele bairro, o seu filho era a única criança não batizada. Chegado o tempo de ir à escola, todo mundo ficou sabendo. Não tardou que o Abel acordasse, a meio da noite, chorando, vendo ‘o diabo’ em pesadelos. Um amiguinho lhe dissera que, como ele não era batizado, quando morresse, iria para o inferno, onde estava o dito… diabo.

Na escola da primeira infância, o Abel viu respeitado o seu peculiar estatuto. Era uma escola que acolhia a diversidade (também) religiosa, confessional. Um pai pediu transferência do seu filho para essa escola, alegando que, numa outra, a criança sofrera humilhação por ser uma ‘criança adventista’. Perguntei-lhe se conhecia crianças ‘católicas’, ‘socialistas’ ou ‘flamenguistas’. E se não haveria apenas crianças… sem rótulos. 

Conversamos, de pai para pai, e aquele pastor evangélico entendeu as palavras de Khalil Gibran:

“Vossos filhos não são vossos filhos. São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma. Vêm através de vós, mas não de vós. E embora vivam convosco, não vos pertencem. 

Podeis outorgar-lhes vosso amor, mas não vossos pensamentos, porque eles têm seus próprios pensamentos. 

Podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas; pois suas almas moram na mansão do amanhã, que vós não podeis visitar nem mesmo em sonho. Podeis esforçar-vos por ser como eles, mas não procureis fazê-los como vós, porque a vida não anda para trás e não se demora com os dias passados”.

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Trabalhei com educadores de todos os credos, crente de que, em matéria religiosa, nenhuma crença vale mais do que outra e sendo necessário assegurar o respeito pela criança. Não compete à escola ensinar uma religião, nem ensinar o ateísmo. Quando o fundamentalismo invade a escola, a abertura estreita de uma ‘burca mental’ somente permite ver o que é permitido num horizonte encurtado pelo fanatismo.

No tempo da ditadura, Portugal era uma quase teocracia. Salazar assinara uma Concordata com a Santa Sé e determinava que os portugueses só poderiam ser católicos. Quando, já em democracia, se discutia o uso do crucifixo nas escolas, uma professora escreveu num blog:

“As pessoas que são contra o uso do crucifixo, que se mudem para outra terra”.

Quando o seu filho mudou de escola, o pai do Abel foi obrigado a requerer dispensa das aulas de ‘religião e moral católica’. No primeiro dia de aulas, o professor dessa disciplina, apesar de ter conhecimento de que o pedido fora deferido, obrigou o Abel a entrar na sala de aula. Mandou-o rezar uma Ave-Maria. O Abel não sabia o que isso era. Virou alvo de escárnio geral. A turma inteira se aliou ao professor, para humilhar o Abel. O domínio do secular não deveria ficar subordinado a ‘verdades reveladas’. Muito menos deveria ficar nas mãos de ensinantes, que se consideravam proprietários da consciência e se assumiam como reserva moral, exercendo sobre os seus alunos sutis formas de condicionamento espiritual.

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Num tempo marcado pelo fanatismo, a imposição de um ensino confessional pressupunha uma visão redutora do ser humano e de mundo e valores eram transmitidos contaminados pelo sectarismo.

Numa escola brasileira, assisti a uma cena degradante: uma professora ‘católica’ acusava de todos os males os evangélicos, e uma professora ‘evangélica’ replicava no mesmo tom.

Enviei a Deus uma prece:

“Deus misericordioso, tem piedade das crianças que caem nas mãos desta gente!”.

fundamentalismo religioso

Foto: Shutterstock

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