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Formação Docente

Autor

Redação revista Educação

Publicado em 22/05/2025

Brincar, sonhar e contar histórias com Mia Couto, Jeferson Tenório e Joaquim Falcão

Escritores se reúnem para debater literatura e democracia

Por Gustavo Lima | “Olhem para o céu do oeste, lá vão me encontrar. Pois como alguém me disse, todos têm direito de voar.” A frase é declamada pela atriz Myra Ruiz na montagem brasileira do musical Wicked. Na produção, Myra é Elphaba, a bruxa rejeitada do fictício mundo de Oz. O universo em que o musical se passa pode ser fantasioso, mas altamente relacionável com o mundo real. Seja pela discriminação sofrida por Elphaba pela cor de sua pele – verde –, pelo autoritarismo com que Oz é governada ou pelas mentiras contadas à população para que a inimiga número um do governo seja temida e rejeitada por todos, esse universo pode ser, de muitas formas, associado à realidade. Afinal, são mesmo todos que têm o direito de voar?

Não para o escritor Joaquim Falcão, responsável por iniciar a conversa com os também autores Jeferson Tenório e Mia Couto, no 6⁰ Congresso Socioemocional LIV*, no Rio de Janeiro, que aconteceu ontem, 21. “Não adianta dizer que todos têm direito de propriedade, se uma parcela significativa da população não tem. É uma constituição ilegítima porque a maioria da população não vive o direito de propriedade”, exemplifica. Democracia, sonhos e literatura permearam a conversa do trio de escritores.

Jeferson Tenório, autor de O avesso da pele (2020), já atuou em escolas públicas e particulares, nos ensinos fundamental e médio. Com a experiência, se intitula um “profundo observador da sala de aula”, onde, segundo ele, é possível identificar uma interessante dinâmica de poder. 

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“Já entendi que os maiores especialistas em professor são os alunos, que passam anos observando os professores. E nessas dinâmicas de poder, tem a relação com o docente, mas também a relação dos grupos que ali se formam. A sala de aula é um ambiente importante para exercitar a ideia que temos de democracia. O modelo não é perfeito, mas é o melhor que temos. Se conseguirmos ser críticos às coisas que acontecem na democracia, mas, ao mesmo tempo valorizá-la, conseguimos dar um passo importante”, defende.

Para Tenório, a escola é a última barreira antes da barbárie. Um espaço de resistência que, muitas vezes questionado, precisa ser fortalecido.

Mia Couto

Mia Couto, Jeferson Tenório e Joaquim Falcão discorrem sobre democracia e literatura (Foto: divulgação/LIV)

Brincar e contar histórias

Em suas obras literárias, Tenório e o moçambicano Mia Couto são conhecidos por abordar a realidade através da ficção. No cerne de suas carreiras, a contação de histórias é defendida pelos escritores como um modelo essencial de aprendizagem. Mia Couto também destaca o poder do lúdico. “Brincar é absolutamente essencial. É brincando que aprendemos”, diz. 

Em coletiva de imprensa com jornalistas da revista Educação, do Le Monde Diplomatique Brasil, do Porvir, da revista Crescer e da Nova Escola, Mia Couto também indica que, para usufruir da educação lúdica, o educador deve compreender se ele mesmo está se divertindo e se tem uma relação lúdica com a profissão. “Em sua formação como professor isso não é ensinado, é uma busca que deve partir dele.”

“Todas as disciplinas têm que ser tratadas como histórias, mesmo que seja física ou matemática. E aí não há uma grande diferença entre o escritor e o professor, ambos devem ser capazes de contar histórias”, acrescenta Couto. 

Tenório corrobora com o pensamento, já defendido por ele em um trabalho de conclusão de curso para a formação em letras – A poética do dizer: reflexões e anotações de um professor contador de histórias (2010).

“Lembro que [no período em que estive na sala de aula] contei a história de clássicos para os meus alunos sem que eles soubessem que se tratavam de clássicos, como Moby Dick. Eu os fazia acreditar que se tratavam de histórias minhas. Eles olhavam com certa desconfiança, perguntavam se era verdade e eu dizia que sim”, relata Tenório. 

Jeferson Tenório: “A escola é a última barreira antes da barbárie” (Foto: divulgação/LIV)

Todos têm direito de sonhar?

O escritor faz menção ao clássico Dom Quixote, do romancista Miguel de Cervantes, quando o personagem Sancho Pança diz: Você precisa continuar a sonhar para que a realidade tenha sentido. “Se é uma aprendizagem pela lucidez, a lucidez só se sustenta pelo sonho, essa é a dinâmica”, afirma Tenório.

“Quando fazemos um recorte de raça e de classe, a ideia de sonho tem um outro patamar. Digo isso no sentido de ter o direito de ter futuro. Em comunidades pobres, pretas e periféricas, a possibilidade de sonhar e vislumbrar um futuro para além do final do mês é um privilégio. Nem todas as pessoas têm o privilégio de sonhar com ‘o que eu vou ser quando crescer’. Primeiro porque uma criança na periferia já cresceu, não há tempo para se ter infância ou adolescência”, reflete.

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Voltando ao universo de Oz, a discriminação sofrida pela personagem Elphaba ilustra uma afirmação feita por Jeferson Tenório sobre a tendência da sociedade de colocar um juízo de valor ao lidar com o estranho. “É nessa comparação que algumas violências acontecem. Mas há uma outra forma de fugir dessa dinâmica opressiva, por meio de um exercício prático que podemos fazer no cotidiano: deixar de olhar para o outro pela diferença e começar a olhar para esse outro pela singularidade. Não olhar para o outro como alguém que é diferente de mim, mas como alguém que é singular, que é único. Todos nós somos únicos e singulares e é por isso que a arte e a literatura nunca deixarão de existir, porque sempre existirão pessoas com suas trajetórias únicas e que produzirão coisas únicas.”

Mia Couto fala sobre o poder da educação lúdica para o aprendizado (Foto: divulgação/LIV)

*O repórter viajou ao Rio de Janeiro a convite do programa LIV (Laboratório Inteligência de Vida), focado em educação socioemocional.

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