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Autor

Luciana Alvarez

Publicado em 06/05/2025

Autismo: educação inclusiva pede confiança no olhar docente

O diálogo sincero entre escola e família é fundamental para a construção de um ambiente verdadeiramente inclusivo. Mãe neurodivergente e dois pais de autistas que são também gestores escolares compartilham suas experiências

Aos 12 anos, Nicolas sempre acompanhou os aprendizados esperados para sua idade e demonstrava isso com boas notas na escola. Autista, o menino teve prova de ciências na semana seguinte que se mudou de casa. Nela, tirou zero. “Ele disse que simplesmente não conseguia ler os enunciados, que as palavras se embaralhavam na sua cabeça”, conta o pai, Rafael Matsudo.

O diagnóstico oficial de Nicolas veio só aos 10 anos, porque outras condições misturaram os sintomas — ele teve câncer quando bebê, fez um tratamento agressivo que exigiu isolamentos e provocou perda auditiva. Mas depois de ter clareza do autismo, passar por esse tipo de situação na escola ficou mais tranquilo. “Agora ele se sente mais seguro; antes não entendia o que acontecia com ele”, diz Matsudo, que é o diretor do colégio em que o filho estuda, o Le Petit Nicolá, em Mairiporã, São Paulo.

Embora o garoto tenha passado a se entender melhor, sabe que ainda tem um longo caminho até conseguir ser plenamente respeitado na sociedade e diz se irritar quando alguém usa o autismo para excluí-lo de certos convívios. “Tem colega que fala que eu não posso fazer isso ou aquilo porque sou autista. Mas eu posso sim. Não são todos que falam isso, mas quando falam eu fico bravo”, conta.

Para além de diagnósticos, “a gente tem de olhar com atenção para cada um, porque todo mundo, de vez em quando, pode precisar de uma diferenciação”, analisa Rafael Matsudo, pai de um autista e diretor do Colégio Le Petit Nicolá (Foto: arquivo pessoal)

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 Ter o diagnóstico ajuda, mas ter a sensibilidade de compreender o que cabe a cada um é fundamental. Contudo, nem sempre acontece, alerta Luciana Viegas, educadora e ativista autista. “É preciso um esforço consciente para sair do olhar médico, não ver aquele ser humano só como paciente. Quando se recebe o diagnóstico, quem fala com as famílias sobre o autismo é a equipe de saúde: fonoaudiólogo, neuropsicólogo, pediatra. A criança parece só um paciente e um amontoado de ‘nãos’: não fala, não anda, não se relaciona”, afirma ela, que também tem um filho autista.

O filho de Luciana Viegas estuda numa escola pública antirracista e anticapacitista (Foto: arquivo pessoal)

Com altas habilidades e, consequentemente, ótimas notas, Luciana só teve seu diagnóstico quando já era adulta. Ela conta que sua vida escolar foi marcada por desafios nas interações sociais, que poderiam ter sido abordados de forma mais produtiva se tivessem identificado o transtorno mais cedo. Seu filho Luiz, contudo, teve o diagnóstico nos primeiros anos de vida, porque Luciana reconheceu que ele não chegava a certos marcos de desenvolvimento quando ainda era um bebê. Desde então, o menino tem acompanhamento na área da saúde.

Em vez de olhar para os ‘nãos’ e os limites, Luciana prefere focar nas possibilidades e potencialidades do filho. Para isso, conta com a parceria não apenas da equipe de saúde, mas de toda a comunidade escolar. “Ele estuda numa escola pública antirracista e anticapacitista, em que todos acreditam na capacidade de inclusão, desde a faxineira até o diretor”, elogia a mãe.

Luiz está matriculado na rede municipal de São Paulo, na Escola Maria Aparecida Rodrigues Cintra, zona norte. “A pessoa que serve a merenda na cantina, por exemplo, sabe que ele precisa desenvolver sua autonomia; isso faz toda a diferença”, defende.

Aumento do número de alunos com autismo

O desafio de conseguir oferecer uma educação de fato inclusiva se torna cada dia mais urgente, até porque a presença de crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA) nas escolas vem crescendo rapidamente. Em 2017, segundo dados do Censo Escolar da Educação Básica, o total de alunos com TEA em escolas públicas e privadas não chegava nem a 100 mil. Em 2023, passaram a 607 mil, um aumento de 600% em seis anos.

Se o crescimento é inequívoco, Mariana Rosa, conselheira do Conselho Nacional de Educação (CNE), ressalta ainda que a realidade brasileira é de subnotificação, porque grande parte da população depende do Sistema Único de Saúde (SUS) e frequentemente enfrenta dificuldade e lentidão para conseguir consultas e avaliações. Portanto, o esforço da escola de inclusão deve começar antes de qualquer laudo médico. “A maior parte da população brasileira não tem acesso a laudos porque é pobre. E são pessoas discriminadas mesmo sem laudo”, afirma.

O foco da escola, defende a conselheira, deve ser em eliminar as barreiras que impedem os alunos de acessarem o conteúdo pedagógico, independentemente de diagnósticos médicos. “Em vez de pensar na comunicação aumentativa ou alternativa de quem tem TEA, ela deve ser para quem não se comunica com oralidade. Isso pode abranger estudantes com paralisia cerebral, talvez até com síndrome de Down e outros. O recurso não deve ser segmentado e também deve ser apropriado por todos os alunos e professores, porque aquele estudante vai se comunicar com os outros, ele não se comunica no vazio”, exemplifica a especialista em inclusão.

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Vale lembrar que o TEA abarca pessoas com quadros bem diferentes; há desde aquelas de ‘grau 1 de suporte’, que são mais independentes, até as de ‘grau 3’, que precisam de auxílio mais próximo e, muitas vezes, não falam, por exemplo. Por lei, as escolas não podem recusar matrículas de estudantes com TEA ou com qualquer outra condição que exija inclusão. No ano passado, o chamado Parecer 50, elaborado pelo CNE e homologado pelo MEC, estabeleceu algumas diretrizes sobre como a questão deve ser tratada pelas escolas, mas sem apresentar de fato novidades em relação a outros documentos que já tratam da educação inclusiva.

Na rede particular, embora atendendo a um público que normalmente tem mais acesso a cuidados médicos, os desafios também têm crescido. E também os conflitos com as famílias, relata o advogado Ricardo Furtado, conselheiro da Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino.

Parte do desafio é financeiro, porque promover a inclusão acaba exigindo um maior número de professores e, em casos de litígios na justiça, gastos ainda maiores. “Você vê hoje na justiça decisões favoráveis a famílias pedindo atendimento individual, quando a exigência legal é que exista um atendimento especializado. E há pedidos de indenizações que podem levar as escolas à falência”, conta o conselheiro da Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino.

Segundo ele, a falta de conhecimento sobre inclusão escolar em toda a sociedade acaba gerando ruídos de comunicação e conflitos. “Existe uma descrença muito grande nos professores. As pessoas acham que a palavra do médico ou do juiz vale mais. É uma distorção de valores”, afirma.

As escolas têm de fazer o PEI (Plano Educacional Individualizado) e oferecer apoio pedagógico; quando há necessidade, são os planos de saúde que deveriam oferecer o profissional de apoio terapêutico. Mas, por conta de todos frequentarem a escola, muitas vezes os papéis acabam se embrulhando. E é preciso separar as coisas. “Tivemos o caso de um acompanhante terapêutico pago pelo plano de saúde, que estava dizendo que ele faria o PEI (Plano Educacional Individualizado). Mas a lei é clara ao determinar que a parte pedagógica cabe à escola. Muitas vezes essa situação vira um telefone sem fio entre escola e família”, relata.

Diálogo, diálogo e mais diálogo

Se por um lado mostra o zelo das famílias, a exigência de um profissional exclusivo para o aluno com TEA pode, em certos casos, representar até mesmo mais um tipo de exclusão, ao separá-lo do restante da turma em todos os momentos, acredita a psicopedagoga Nadia Bossa. Ela defende que a inclusão se faz, de fato, quando se inclui ‘toda a vila’ na conversa, ou seja, profissionais de saúde, de educação e também colegas e famílias dos colegas, para que a inclusão seja bem-sucedida.

autismo

“Uma escola verdadeiramente inclusiva não apenas adapta seu ensino para atender às necessidades da criança neurodivergente, mas se compromete com uma mudança estrutural e cultural”, diz a psicopedagoga Nadia Bossa (Foto: arquivo pessoal)

Na prática, isso implica aproximar diferentes profissionais. “O modelo ideal é que a equipe de profissionais da saúde tenha colaboração direta com a escola, que tenha feedbacks. Trabalho com uma escola que cria grupo no WhatsApp para facilitar essas conversas, deixar sem burocracia”, cita. Mas um papel que é exclusivo da escola é o de fazer a ponte com as outras famílias. “A escola é uma instituição social. Para apoiarem os professores e não acharem que o aprendizado da turma será prejudicado, todas as famílias precisam entender que algumas crianças terão demandas diferentes”, explica Nadia.

Muitas vezes, os colégios temem expor o estudante com TEA, mas Nadia defende a clareza sobre a condição, sempre. “Você não está expondo, está preparando, porque aquela criança vai mostrar suas características para todos no dia a dia”, garante. O projeto não é só da escola, ou da família neurodivergente, mas é um projeto de sociedade. “Uma escola verdadeiramente inclusiva não apenas adapta seu ensino para atender às necessidades da criança neurodivergente, mas se compromete com uma mudança estrutural e cultural”, diz a psicopedagoga.

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Durante seus muitos anos trabalhando em editoras de material pedagógico, o professor Juliano Costa conta que viu a emergência de famílias com crianças neurodivergentes. Depois, assumiu o cargo de vice-presidente na Rede Única, com 40 escolas particulares em três estados, e teve de lidar com as crianças e famílias no seu dia a dia profissional. Mas ele é também pai de um menino autista de 12 anos e, assim, tem experiências de lidar com o TEA de vários ângulos. Para ele, em qualquer um dos papéis que estiver, o melhor jeito de lidar com o tema é por meio de conversas sinceras com os envolvidos, para alinhar abordagens e expectativas.

Como pai, percebeu que a falta de conhecimento sobre o tema acaba criando problemas na escola, ainda que muitas vezes os profissionais tenham boas intenções. “Uma professora forçou meu filho a pisar na areia aos cinco anos; tenho certeza de que ela fez isso querendo ajudar, com o intuito de fazê-lo experimentar algo novo. Só que depois disso, ele passou anos sem ser capaz de andar descalço. Muitas crianças autistas, como o meu filho, têm dificuldade em dizer não na escola, então mascaram algumas reações. Mas, depois, em um ambiente mais confortável, elas têm uma espécie de curto-circuito cognitivo”, explica Juliano.

“Uma professora forçou meu filho [autista] a pisar na areia aos cinco anos; tenho certeza de que ela fez isso querendo ajudar…Só que depois disso, ele passou anos sem ser capaz de andar descalço”, conta o gestor Juliano Costa (Foto: arquivo pessoal)

Como gestor de uma rede de cinco mil alunos, conta que buscou ‘profissionalizar’ as relações ao pedir a todas as famílias que buscassem um laudo, porque havia muitos alunos considerados como sendo de inclusão sem nenhum diagnóstico oficial. “Vinha uma mãe e dizia que o filho era hiperativo; ‘vocês precisam dar um jeito’. Mas eu preciso entender como a condição se manifesta — e pedagogo não faz laudo”, afirma.

Ainda assim, o diálogo família-escola é insubstituível. “Tive o caso dos irmãos gêmeos com 10 anos de idade que eram não verbais, andavam com andador. Eles não conseguiam nem segurar o lápis, mas a mãe insistia muito que eles fossem alfabetizados. Era injusto com os filhos”, analisa. Segundo ele, há também famílias que querem que os professores sejam fonoaudiólogos, psicomotricistas, psicólogos, mais uma vez, com expectativas pouco realistas. Por isso, tenta sempre deixar muito claro quais são as atribuições da escola e o que cabe aos serviços de saúde.

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Costa lembra também que professor não é advogado. Portanto, se uma família chega junto a um advogado, sua orientação é para que não sejam atendidos pelo pessoal docente. “Advogado conversa com advogado, não com professor. Chamamos o jurídico da nossa rede. E tem sido muito positivo, porque a conversa deles vai ser muito profissional, desapaixonada; eles se entendem melhor”, defende.

Em sua experiência, estudantes que já chegam com laudo são problemas menores em relação a crianças que claramente têm algum transtorno, mas as famílias se recusam a buscar um diagnóstico e apoio de saúde. Para o gestor, toda escola deveria ter o compromisso ético de oferecer um bom serviço a cada um dos alunos. Portanto, o caminho é olhar para as necessidades do estudante autista em vez de procurar meios de ‘empurrá-lo’ para fora implicitamente.

Uma escola inclusiva não significa uma escola sem conflitos, mas sim com mais possibilidades de aprendizado. Durante uma crise, o filho da ativista Luciana Viegas acabou batendo em uma amiga, que queria ajudá-lo. Depois ele pediu desculpa e a mãe fez um vídeo explicando para as famílias da turma sobre as crises e até que ponto uma outra criança pode ajudar. “Em outros momentos da vida você pode se deparar com alguém numa crise de saúde mental, [e diante de orientação] passar a entender e administrar melhor sua reação. Faz parte da diversidade humana”, diz Luciana.

Uma escola inclusiva tende a ser melhor para todos. “A situação do zero do Nicolas na prova de ciências me fez pensar: e os outros alunos, os que não têm autismo, será que, eventualmente, também não precisam de um tempo extra, não passam por problemas que impactam na escola? A gente tem de olhar com atenção para cada um, porque todo mundo, de vez em quando, pode precisar de uma diferenciação”, orienta Rafael Matsudo, diretor da Le Petit Nicolá.

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Escola inclusiva tende a ser melhor para todos (Foto: Freepik)

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