NOTÍCIA
Estudantes pretos e pardos têm uma década de atraso em relação aos brancos no que se refere à conclusão do ensino fundamental — e esse é apenas um dos muitos indicadores da desigualdade. Especialistas indicam como a escola pode ser mais atraente e promover a equidade
*Por Fernando Leal e Paulo de Camargo | Na complexa, diversa e desigual educação brasileira, os números mostram um país com desafios de acesso e aprendizagem. Mas há um cenário ainda pior — a dos estudantes pretos e pardos. Segundo dados do Anuário Brasileiro da Educação Básica, publicado em novembro, de cada 100 estudantes pretos e pardos que ingressam na escola, apenas 82 conseguem concluir o ensino fundamental aos 16 anos — patamar alcançado pelos alunos brancos há uma década.
Esse é o Brasil segmentado por cor/raça, bem distante daquele composto por alunos brancos. No ensino médio, a desigualdade segue expressiva: os dados de conclusão atingidos hoje por estudantes pretos e pardos foram alcançados há oito anos pela população branca.
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Pela primeira vez, o Anuário Brasileiro da Educação Básica, fruto da parceria entre o movimento Todos Pela Educação, a Fundação Santillana e a Editora Moderna, conta com um capítulo dedicado à equidade étnico-racial.
As inequidades raciais entre essas duas realidades educacionais se tornam ainda mais relevantes quando se analisam os indicadores de aprendizagem. Os dados mais recentes disponíveis mostram diferenças da ordem de 25 pontos percentuais entre o percentual de alunos brancos e pretos com aprendizagem adequada tanto no ensino fundamental como no ensino médio. E isso se reflete, por exemplo, na presença da população de 18 a 24 anos no ensino superior: cerca de 33% das pessoas são brancas e 17% pretas, nessa faixa etária.
O percentual de jovens que concluem cada etapa da idade esperada é especialmente significativo por se relacionar com outros indicadores, como explica Jackson Almeida, analista de políticas educacionais do Todos Pela Educação. “Ao buscar os fatores pelos quais estes alunos e alunas não conseguiram concluir, encontramos maiores taxas de reprovação, evasão e abandono, e, consequentemente, maior distorção idade-série”, explica.
Ao mesmo tempo, é essencial explorar os motivos que levam os estudantes a deixarem a escola, tendo em mente que não há um único fator que possa ser isolado. A vulnerabilidade socioeconômica, muito associada também ao critério racial, leva à evasão dos jovens que tentam assumir o papel de provedores financeiros de suas famílias. Mas há razões menos tangíveis. “Muitas vezes, no ambiente escolar, pouco se fala sobre este aluno preto, seus ancestrais e sobre perspectivas para seu povo. Isso torna a escola pouco atrativa para este estudante que, apenas em raros momentos, consegue perceber de que forma aquela instituição é capaz de fazer diferença para mudar o contexto em que está inserido”, conta Jackson.
Daí o imperativo da implementação efetiva de projetos sobre relações étnico-raciais e racismo nas escolas, incluindo a lei 10.639/2003 (mais tarde alterada pela lei 11.645/2008), que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas. Os estudantes precisam se sentir pertencentes a uma escola — que, para isso, não pode estar orientada apenas pela cultura e história construída pelos brancos. É preciso que autores, escritores, artistas, políticos, enfim, personagens que foram importantes para a história dos povos afrodescendentes façam parte de estudos na escola. O mesmo vale para os povos indígenas e outros grupos tradicionais.
Nessa frente de ação, o Anuário também evidencia que há um longo caminho a percorrer: a abordagem do tema étnico-racial e projetos pedagógicos para combater o racismo estão presentes em apenas 50,1% das escolas públicas brasileiras, segundo dados colhidos no Saeb de 2021. Trata-se da menor taxa da série histórica, desde 2011.
Além disso, um levantamento inédito do Ministério da Educação (MEC) avaliou os avanços da Política Nacional de Equidade, Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola (Pneerq) nos estados e municípios. A ferramenta foi desenvolvida a partir dos dados compilados pelo Diagnóstico Equidade, questionário respondido por prefeitos ou secretários de Educação dos estados, dos municípios e do Distrito Federal.
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As respostas do Diagnóstico Equidade permitiram a construção de seis índices de educação para as relações étnico-raciais (Erer): institucionalização; formação; gestão escolar; material didático e paradidático; financiamento; e avaliação e monitoramento. A média ponderada de todos os índices levou à criação do Índice Geral de Erer, que ficou em 47,7 na esfera estadual e 27,1 na municipal, numa escala que vai até 100. Os menores resultados foram aferidos em financiamento e gestão escolar, ambos abaixo de 45.
O cenário de lacuna prática na aplicação da legislação, demonstrado por esses estudos, é resultado de desafios significativos, que demandam um esforço coordenado entre governos, instituições educacionais e a sociedade civil. Na avaliação da professora Eliane Cavalleiro, diretora pedagógica do Instituto Cultural Steve Biko, de Salvador, BA, um aspecto relevante é a falta de capacitação e formação continuada — que pode resultar em insegurança ou desconhecimento por parte dos professores para tratar do tema em sala de aula —, aliada à falta de recursos e materiais didáticos que contribuam para a incorporação efetiva aos currículos.
Também neste caso os números confirmam a percepção de quem está na linha de frente. De acordo com a pesquisa Percepções e desafios dos anos finais do ensino fundamental nas redes municipais de ensino, realizada pelo Itaú Social e pela Undime (União dos Dirigentes Municipais de Educação), apenas 7,9% das secretarias de Educação abordam a temática étnico-racial regularmente nas formações com professores.
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Em Salvador, dos 40 estudantes que integravam a classe de educação profissional de Péricles Pinheiro, apenas três estão hoje cursando uma faculdade. Um deles é o próprio Péricles, que ingressou em 2023 no curso de medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e que, para isso, contou com o apoio e o incentivo do Instituto Cultural Steve Biko, inclusive na preparação para o vestibular. “Os professores nos mostram que, apesar das dificuldades, somos capazes de nos superar e ocupar espaços importantes da sociedade”, conta.
Laiane de Jesus, que também fez parte de um dos programas do instituto e atualmente cursa engenharia elétrica, tem uma visão semelhante. “É muito motivador estar entre pessoas pretas que têm o mesmo objetivo e confiança de que podem vencer os desafios”, lembra. “Nunca tinha vivido isso na escola”, acrescenta.
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“Uma formação consistente deve considerar a carga horária e o aprofundamento sobre o tema de forma ampla e sistemática, alcançando todas as pessoas envolvidas no processo educacional, para que a escola como um todo possa refletir sobre seu papel na construção da equidade racial”, explica a especialista.
Esse trabalho começa cedo, ainda na educação infantil, como destaca Jussara Santos, pesquisadora sobre infâncias e antirracismo nesta etapa da trajetória escolar. “O antirracismo não é um tema a ser abordado. É uma concepção que organiza todo o trabalho do ano”, afirma. Na prática, isso significa que a história e a cultura afro-brasileira devem estar presentes nas músicas e ritmo tocados no parquinho, nas histórias contadas, nas bonecas e nos bonecos usados nas brincadeiras. “E as crianças negras devem ser protagonistas nas vivências realizadas, reforçando a autoestima e confiança delas”, acrescenta.
Se, por um lado, evidencia desigualdades, o Anuário também traz boas notícias: entre 2013 e 2023, a distância entre os índices de conclusão de estudantes pretos e brancos teve uma redução de 14 pontos percentuais no ensino fundamental e de oito pontos percentuais no ensino médio.
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Na avaliação de Nilma Lino Gomes, ex-ministra das Mulheres, Igualdade Racial, Juventude e Direitos Humanos, os avanços são resultados de um processo que caminha ainda muito lentamente a partir de respostas do Estado brasileiro (principalmente no período de 2003 a 2016), por meio de políticas públicas, à situação de racismo na educação e na sociedade denunciada pelo movimento negro. “Precisamos garantir a cooperação federativa para a superação do racismo nas escolas e a implementação real da lei 10.639/2003”, afirma.
Ao mesmo tempo, porém, Nilma, que é a primeira mulher negra a comandar uma universidade pública federal, em 2013, a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), acredita faltar à sociedade uma tomada de consciência em relação à urgência da mudança. “A luta contra o racismo não pode ficar confinada às pessoas negras ou àquelas interessadas no tema. É fundamental que seja parte do projeto político-pedagógico da escola, da orientação dos gestores e das gestoras e das ações e práticas dos professores e das professoras no dia a dia da sala de aula.
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