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Colunista

José Pacheco

Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)

Publicado em 16/08/2024

A manipulação das tecnologias digitais

Escolas esqueceram de desenvolver autonomia e senso crítico. Por que não usar o digital a serviço da humanização?

Vila Wesley, 22 de junho de 2044 

O episódio aqui descrito ocorreu no tempo do WhatsApp e do Facebook, que, há uns 20 anos, eram modos de as pessoas inventarem fofocas e conversarem sobre insignificâncias. Estávamos no tempo das ditas ‘novas tecnologias’, mas, na verdade, eram tecnologias digitais rudimentares e, não raras vezes, utilizadas para manipular ou criar dependentes de ágeis polegares.

Recordo-me de te ver, querido Marcos, às voltas com sites de design, na Internet. E da Alice pesquisando numa plataforma digital disponibilizada pela faculdade de psicologia. Foi numa empresa de produção dessas plataformas que o episódio incluso nesta carta se desenrolou. O dono da empresa quis conversar comigo e foi até Cotia, à Escola do Projeto Âncora. Conversamos: 

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“Professor, você tem aqui um belo projeto. Trabalham com plataforma de ensino?”  

“Não. Nós criamos uma plataforma, mas de aprendizagem” — respondi.  

“De aprendizagem? E essa plataforma tem o currículo todo, os conteúdos?” 

“Não. Aqui, os jovens não consomem currículo. Eles constroem currículo, produzem conhecimento, a partir de projetos.” 

“Que tipo de projetos os professores preparam para os alunos?” 

“Não preparam. Constroem projetos com os seus educandos. Elaboram roteiros de estudo, acompanham a pesquisa, ajudam a criar evidências de aprendizagem, que, depois, eles partiham com os colegas.” 

“E têm lousa digital nas salas de aula?” 

“Não há salas de aula. Nem lousas digitais.” 

“Como? Então…” — E a conversa ficou densa, carente de explicitação.  

Para a suavizar, perguntei:  

“Quais são as vantagens de uma plataforma de ensino?” 

“A vantagem é que os alunos podem escolher o que querem estudar.” 

“Dá-me um exemplo, por favor.” 

“Por exemplo, um aluno escolhe estudar raiz quadrada.” 

“E por que razão ele escolhe estudar raiz quadrada nesse dia?” 

Após alguns segundos, com ar de quem reflete, respondeu: 

“Nunca tinha pensado nisso.” 

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Pois não… Naquele tempo, os alunos consumiam um currículo “pronto-a-vestir”, em plataformas digitais. Aulas previamente planejadas quase dispensavam o professor. Os pais queixavam-se de ver os filhos amarrados a computadores, esquecendo que, quando bebês, ao invés de chupeta, lhes tinham posto nas mãos um computador, para que se calassem.  

As ‘novas tecnologias’ transformaram-se em panaceias do modelo escolar. Apenas serviam para o consumo acéfalo de conteúdo, na dependência de vínculos afetivos precários estabelecidos com identidades virtuais. 

tecnologias digitais

Nesses recuados tempos, a democracia viveu tempos sombrios. A sociedade padecia de medo, egoísmo, fundamentalismos. A escola pública estava à mercê de interesses vis, subserviente, mercantilizada (Foto: Shutterstock)

A internet era generosa na oferta de informação. Tudo o que um professor pudesse ensinar estava disponível, de modo mais atraente, num computador. Os professores mantinham-se ancorados em práticas obsoletas, servidas em lousas digitais, ou replicando aulas congeladas no YouTube. O modo como utilizavam a internet fomentava imbecilidade e solidão. As escolas tinham-se enfeitado de informação sem cuidar da comunicação, sem lograr desenvolver autonomia e senso crítico.  

Nesses recuados tempos, a democracia viveu tempos sombrios. A sociedade padecia de medo, egoísmo, fundamentalismos. A escola pública estava à mercê de interesses vis, subserviente, mercantilizada.

Educadores atentos aperceberam-se da sua quota-parte de responsabilidade. E, no início dos anos 20, a crise cedeu lugar a novas práticas sociais. O espectro de novas inquisições se desvaneceu. Chegara o tempo de usar o digital ao serviço da humanização da escola.

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