Artigos escritos por pesquisadores do laboratório de ciências para educação do Instituto Ayrton Senna (eduLab21)
Publicado em 12/08/2024
A alternância entre línguas desenvolve e exercita o controle inibitório e outras funções, como a flexibilidade cognitiva
Por Janaina Weissheimer do AprendiLab*: O termo ‘bilíngue’ tem se tornado cada vez mais presente no nosso cotidiano e é utilizado para se referir a um indivíduo que transita entre duas línguas. Com o advento da educação bilíngue no início dos anos 2000, o termo se tornou ainda mais popular e corriqueiro, mas trouxe também uma série de questões a serem discutidas.
O cérebro da criança nasce e cresce mudando a todo minuto. Essa incrível e dinâmica capacidade de organização e mudança do cérebro se chama neuroplasticidade.
A neuroplasticidade depende da experiência que a criança tem com o ambiente que a cerca. Quanto mais rico for esse ambiente, em termos de estímulos e oportunidades de aprendizagem, mais o cérebro da criança poderá se beneficiar, criando novas redes sinápticas, fortalecendo conexões e gerando memórias significativas de aprendizagem.
Há muitas vantagens em se estabelecer uma base bilíngue sólida nos primeiros anos de vida. Graças aos chamados períodos sensíveis, em que os neurônios estão ávidos por fazer novas conexões, começar a aprender uma segunda língua cedo reconfigura o nosso cérebro e o torna mais apto a aprendizagens futuras.
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Crianças bilíngues que iniciam sua experiência de forma precoce têm suas funções executivas impactadas positivamente pelo bilinguismo. As funções executivas referem-se a um conjunto de habilidades indispensáveis à saúde mental e física, bem como ao desenvolvimento psicológico, social e cognitivo.
Isto porque essas funções desempenham um papel importante na cognição complexa e são processos necessários para o raciocínio, o planejamento, a resolução de problemas, o processamento da memória e da linguagem, entre outros.
A constante alternância entre línguas, que é natural para a criança bilíngue, parece muitas vezes uma ‘salada linguística’, sobretudo, aos olhos leigos. Essa ideia equivocada advém justamente do uso de uma régua monolíngue para ‘medir’ o bilíngue.
O que para alguns parece confusão e mistura aleatória é, na verdade, a interação complexa de dois sistemas linguísticos que formam um único repertório e, assim, são passíveis de ativação paralela. Essa interação é rica e representa a possibilidade de o bilíngue se valer dos dois sistemas em sua comunicação.
Ademais, o bilíngue desenvolve naturalmente, com o tempo, a habilidade de monitorar esses sistemas e controlá-los, inibi-los ou permitir sua interação de acordo com o ambiente, o contexto e as pessoas com quem se comunica.
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O mais interessante é que a alternância entre línguas desenvolve e exercita o controle inibitório, uma das funções executivas em que participa nossa atenção e que é responsável pela inibição de respostas impulsivas, criando uma reserva cognitiva que será útil ao bilíngue durante toda a sua vida, inclusive para retardar os efeitos do declínio cognitivo no envelhecimento.
Em nível cerebral, os efeitos desse exercício de controle inibitório podem ser percebidos pelo aumento no volume de massa cinzenta no córtex pré-frontal dos bilíngues — a parte do cérebro que é importante para o pensamento de alto nível, como a tomada de decisões e a resolução de problemas. Mas os benefícios não param por aí, a flexibilidade cognitiva, outra função executiva afetada pelo bilinguismo e que corresponde à nossa habilidade de pensar em diferentes estratégias para atingir objetivos, torna o falante bilíngue mais empático e sensível culturalmente a outros indivíduos e suas necessidades comunicativas.
O termo biliteracia refere-se ao processo de alfabetização ocorrendo de forma paralela e concomitante em duas línguas. Estudos mostram que as crianças podem aprender a ler em duas línguas ao mesmo tempo, sem que haja prejuízo para nenhuma delas.
Nos Estados Unidos, crianças que são alfabetizadas em espanhol e inglês simultaneamente costumam atingir uma maior fluência de leitura em inglês, quando comparadas às crianças monolíngues, alfabetizadas unicamente em inglês.
Isto acontece porque o espanhol, uma língua de ortografia mais transparente que o inglês, parece facilitar bidirecionalmente o processo de associação entre letras e sons. Aqui no Brasil, uma pesquisa recente com crianças em escolarização bilíngue inglês-português revelou padrões de escrita e oralidade muito semelhantes no desenvolvimento das duas línguas, enquanto as crianças eram alfabetizadas simultaneamente.
Por fim, é claro que podemos aprender novas línguas durante a vida inteira e uma pessoa pode se tornar bilíngue de várias maneiras, em várias etapas da vida. No Brasil, temos uma enorme diversidade linguística, com cerca de 330 línguas coexistindo diariamente.
Por isso, pesquisas com bilíngues no contexto brasileiro, envolvendo populações indígenas, fronteiriças, migrantes, surdas, bilíngues escolares, entre outras, são fundamentais e urgentes para se traçar um panorama representativo do bilinguismo no país e apoiar políticas públicas e educacionais mais justas para essas populações.
*Janaina Weissheimer é pesquisadora do AprendiLab no Instituto do Cérebro da UFRN e membro da coordenação da Rede Nacional de Ciência para Educação, parceira do eduLab21 do Instituto Ayrton Senna.