ARTIGO

Olhar pedagógico

Rubem Alves por sua filha e orientando da Unicamp

A passagem de um dos maiores educadores do país completa 10 anos em julho. Conversamos com pessoas próximas que compartilham a importância de seu legado

Publicado em 18/07/2024

por Laura Rachid

“Há escolas que são gaiolas e há escolas que são asas”, alertava o grande Rubem Alves, educador crítico ao modelo tradicional de ensino e cujas bases de sua pedagogia estão no amor, na liberdade e na curiosidade. Nascido em 15 de setembro de 1933, em Boa Esperança, Minas Gerais, sua passagem, aos 80 anos, completa 10 anos em 19 de julho de 2024. 

Rubem está vivo em seus 160 livros publicados em pelo menos 12 países, entrevistas, estudantes que tiveram nele a figura docente e por quem o conheceu de diferentes formas. Nisso, continua inspirando pessoas que admiram a simplicidade (esplendorosa) da vida e que acreditam na humanidade.

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Conversamos com sua filha caçula Raquel Alves, seu orientando na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), localizada no estado de SP, Severino Antônio, e a presidente do Instituto Rubem Alves, Maria Amélia Moscom.

Raquel Alves e a linguagem do acolhimento

Raquel é a mais nova dos três filhos de Rubem e a única mulher. Ela nasceu com lábio leporino, o que fez os textos acadêmicos de seu pai darem espaço para poesias recheadas de empatia, respeito e sensibilidade — características fundamentais para Raquel Alves crescer acreditando em si e em seus potenciais. Afinal, a riqueza do mundo é a diversidade humana e da natureza, já o julgamento só impede o crescimento. 

Quando seu pai escreveu A operação de Lili (ed. FTD Educação), a caçula tinha entre cinco e seis anos.

“Eu estava no hospital a caminho de uma cirurgia e ele criou essa história para me ajudar a lidar com o medo. Já com a camisa pré-cirúrgica, a enfermeira veio me buscar. Nisso ele falou: espere só um tiquinho. E em papel datilografado leu a história, me conduziu a refletir quem eu era ali e que tudo daria certo”, lembra Raquel Alves, hoje com 48 anos.

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No contato diário entre pai e filha, a caçula diz ter aprendido que história e livro são coisas separadas. “A história entra na gente, o livro não. Porque continuamos falando sobre a história mesmo sem ter o livro.” Outro exemplo desse ensinamento é notável em Como nasceu a alegria (ed. Paulus), em que Rubem escreveu por conta do sofrimento de bullying vivido por Raquel. “Me sentia diferente e um dia chorei. E ele conversou: ‘Lembra como a florzinha era amada? Como ela fazia as flores em volta dela, no jardim, sorrirem?’”.

Raquel Alves é pós-graduada em arquitetura e urbanismo, mas desde a passagem do pai tem intensificado sua atuação como escritora e palestrante, levando adiante o legado de Rubem. Os momentos de leitura e conversa após uma história que vivenciou com seu pai reforça para Raquel a importância de conduzir a criança, uma vez que ela ainda não tem bagagem de vida para associar todas as mensagens. Como palestrante, destaca a importância da leitura para o desenvolvimento da segurança emocional.

Sabedoria

Simplicidade e humanidade estão entre os maiores ensinamentos que seu pai a repassou. Contudo, Raquel tem dificuldade de definir em palavras, preferindo compartilhar o momento que o acompanhou para palestrar em um congresso com duas mil pessoas. 

Ela com frio na barriga ao ver o pai no palco, já ele parecia calmo. Na volta perguntou se o pai não tinha medo. Com o rosto risonho lhe respondeu: ‘filha, são pessoas como nós’. Resposta essa que coloca a todos em posição de igualdade. “Carrego essa mensagem porque hoje sou palestrante. O lábio leporino e a baixa visão contribuem para eu ter um medo maior, mas quando lembro dessa frase sinto que posso contar com a compreensão e empatia das pessoas.”

Rubem orientador

Hoje com 72 anos, Severino Antônio, conselheiro do Instituto Rubem Alves e autor de obras de educação e de literatura, conheceu Rubem nos anos 90, em sua entrevista como parte do processo seletivo para o mestrado em educação na Unicamp.

“Um professor de meia idade, sentado ao meio da mesa dos avaliadores, surpreendentemente me pediu que falasse das coisas de que gostava. Foi uma experiência de espanto e, ainda mais, de liberdade. Já trabalhava como professor de literatura e redação há mais de 10 anos. Tinha me preparado para as arguições convencionais, sobre autores, leituras, argumentos e contra-argumentos. E, com a inusitada provocação, pudemos conversar genuinamente sobre muitas questões. Dentre elas: os múltiplos sentidos de educar, de aprender e de ensinar; a necessidade vital da arte e da literatura; a importância da beleza e da afetividade na educação das crianças; a dimensão poética da linguagem e da existência”, recorda Severino Antônio.

Ao final desse dia, o professor mineiro o surpreendeu ao dizer: “vamos conviver bastante”. Convivência que Severino conta ter continuado nas aulas em que foi seu aluno e orientando, e que perdurou por três décadas. 

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“Era como se estivéssemos continuando a conversa primeira, que ia ampliando as suas margens, inclusive na companhia de autores que juntamente admirávamos, como [Gaston] Bachelard, Guimarães Rosa, Octavio Paz, Fernando Pessoa, entre outros. Quando rememoro o primeiro encontro, sinto que ele foi um símbolo da filosofia e dos propósitos do Rubem Alves como educador, propósitos que são inseparáveis do seu pensamento em teologia e de suas histórias para crianças. E hoje essa convivência continua no Instituto Rubem Alves”, compartilha.

Segundo Severino, que o teve como orientador de seu mestrado e doutorado, o pensamento pedagógico de Rubem dá rosto e palavras a uma vertente neorromântica e humanista de educação, “que reitera o primado da sensibilidade, da imaginação e engenho criativo, da educação dos sentidos, da leitura como relação lúdica e amorosa com os textos, da atitude de cultivar sempre a curiosidade, da beleza como forma de sabedoria, da escuta que acolhe a voz do outro, da necessidade de priorizarmos a felicidade das crianças em seus aprendizados dentro e fora das salas de aula”.

Severino

Severino Antônio teve Rubem como orientador de seu mestrado e doutorado na Unicamp (Foto: reprodução)

Em tempos de crise civilizatória que ameaça a sobrevivência de todos no planeta, Severino Antônio reforça caminhos, como os propósitos da educação humanista. “Dentre eles, os textos de Rubem Alves e suas falas continuam sendo inspiração e esperança para muitas das pessoas que convivem com as crianças, ensinando e aprendendo, criando e recriando o trabalho educativo e a própria existência.”

Ato de educar

Se para Severino a convivência é um dos marcos que teve com Rubem Alves, sua filha Raquel utiliza a mesma palavra para definir como seu pai traduziria o ato de educar no ambiente escolar. “Quando a gente convive, a gente observa os outros”, destaca Raquel, que entende essa prática como a espinha dorsal das habilidades socioemocionais, uma vez que assim é possível notar que cada pessoa tem suas próprias particularidades, comportamentos e questões.

“A segunda questão [do ato de educar] é que a escola tira o prazer pela leitura e pelo próprio aprendizado, porque ela vai entrando nas minúcias, como se ela sempre começasse pela partitura e não pela música. O encanto pela aprendizagem, a vontade de querer aprender, tem que estar muito ligada com o sentido que aquilo faz”, analisa Raquel Alves.

Agentes de mudança para transformar e libertar 

Fundado em 2012, o Instituto Rubem Alves mantém viva sua filosofia e está localizado em Campinas, cidade que o educador morou por anos. Já teve Raquel Alves como presidente e hoje tem à frente Maria Amélia Moscom. A entidade se compromete em preservar e disseminar suas ideias sobre educação, cultura, espiritualidade e amor. 

 

 

 

 

Rubem Alves

Rubem Alves no Prêmio Jabuti 2009, cujo seu livro ’Ostra feliz não faz pérola’ (ed. Planeta do Brasil) ficou em 2º lugar na categoria Contos e Crônicas  (Foto: arquivo familiar)

“Para os que, a exemplo de Rubem Alves, buscam crescimento pessoal, e o fazem, também por meio da literatura, da poesia, da filosofia e das questões fundamentais da existência, oferecemos um espaço físico e virtual de acolhimento e conexão. Também promovemos a inclusão, a diversidade e o respeito à natureza, seguindo os valores humanistas e a visão holística que Rubem tanto defendeu”, conta a atual presidente.

Maria Amélia conta que o Instituto segue os preceitos de Rubem voltados à essência da vida, são eles: 1. A vida na sala de aula; 2. A vida no meio ambiente; 3. A vida na espiritualidade. E 4. Conexão com a vida.

Saiba mais em https://www.institutorubemalves.org.br/.

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Crônicas de Rubem Alves

Organizado por sua filha Raquel Alves, com prefácio de seu amigo e também professor José Pacheco, o e-book Entre o saber e o sabor: os dilemas da educação (ed. RFM) reúne crônicas de Rubem Alves no período em que foi colunista na revista Educação, de 2007 a 2012. Está dividido em quatro capítulos: O dilema da educação; A sabedoria da convivência; A arte de pensar; e O prazer de ler. Compre o e-book por R$ 30,00. Envie um e-mail para karlita@rfmeditores.com.br com o assunto E-book Rubem Alves.

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Amante do conhecimento

O tamanho de suas habilidades e conhecimento também era o mesmo de sua humildade: Rubem Alves foi educador, escritor, teólogo, psicanalista, pastor presbiteriano sem catequizar, mestre em teologia, perseguido pela ditadura empresarial-militar, professor emérito na Unicamp, colunista na revista Educação, entre outros marcos. Seu doutorado em filosofia nos EUA, no final dos anos 60, teve como tese a teologia da libertação, sendo então, um dos percursores. 

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Autor

Laura Rachid


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