É professor de Língua Portuguesa e orientador educacional
Publicado em 29/10/2021
O apocalíptico Lear é um rei visceral e mimado. Seu amor excessivo e obsessivo o leva para uma relação opressora, porque exige de suas filhas, sobretudo Cordélia, o maior amor do mundo
O apocalíptico Lear é um rei visceral e mimado. Seu amor incondicional excessivo e obsessivo o leva para uma relação opressora, porque exige de suas filhas, sobretudo Cordélia, o maior amor do mundo
O amor incondicional na relação entre pais e filhos é um mito. Crê-se, por pensamento mágico ou por conformismo, que há, no amor familiar, uma relação amorosa irrestrita, ilimitada e absoluta, embora a modernidade já mostrasse que as relações de sentimento e de afeto se baseiam na troca e na satisfação.
A condição no amor é marca indelével das relações modernas e determina categoricamente os afetos. Permanecemos nas relações porque elas valem a pena. A possibilidade de abandonar o parceiro amoroso ou até mesmo de aceitar sua partida é princípio que regula os afetos contemporâneos. A relação entre pais e filhos, que aparentemente seria infensa à volubilidade moderna, não escapa inocente desse princípio regulador.
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É claro que não se abandona pai, mãe e filhos em busca de nova jornada amorosa como se faz nos demais contratos de afetos, mas a condição é mais umbilical e medular do que supõe a crença e o desejo. As relações afetivas na modernidade são atestadas pela qualidade da experiência afetiva que as envolve. É ela que determina o ponto de fervura e de saturação.
William Shakespeare, o inventor do humano, segundo o crítico inglês Harold Bloom, é o pai da nossa modernidade. Em Rei Lear, o escritor inglês expõe de forma crua e cruel as relações condicionais estabelecidas nas vivências amorosas entre pais e filhos. O apocalíptico Lear é um rei visceral e mimado. Seu amor excessivo e obsessivo o leva para uma relação opressora, porque exige de suas filhas, sobretudo Cordélia, o maior amor do mundo – a honra absoluta e a reverência máxima na hierarquia e na paternidade.
Não à toa, o Bobo, humorista sábio da corte, leitor crítico das obsessões do pai apaixonado, diz ao rei: “Tu não deverias ter ficado velho antes de ficares sábio”. A modernidade na tragédia do rei Lear é lançar luz nas trocas afetivas e nas condições impostas por elas. Shakespeare compreende que o sentimento como moeda de troca na relação entre pais filhos leva a família à ruína moral.
Lear, exausto da idade e do governo, quer repartir seu reino entre suas três filhas. Impõe, para cada uma, a declaração de amor filial para que a partilha se dê entre elas. As irmãs mais velhas, Goneril e Regan, oferecem ao pai menos a verdade do que o esperado, declaram-se devotas e apaixonadas pelo único homem na terra digno de ser sumariamente amado por elas.
Cordélia, a mais nova, embaraçada com a situação, não expressa o desejado e provoca a ira paterna, que divide o reino entre as duas mais velhas – dignas do amor paterno porque se mostram gratas e apaixonadas. A caçula é deserdada sem reino. Adiante, depois de terem recebido a herança, são as irmãs mais velhas que deserdam o pai, que tolo fica obviamente sem filhas e sem reino. Não bastava ao velho Lear que sua filha Cordélia o amasse na condição de pai. Ele desejava mais, queria ser bajulado, amado e venerado. Era a condição para que ele oferecesse à filha a partilha e a prova também de seu amor.
Pais e mães modernos repetem a tragédia shakespeariana, quando disputam o amor pelo filho. Entre a carência afetiva e a coerência formativa, optam pela primeira.
Não hesitam em culpar um ao outro para receber do filho afeição. Basta um gesto ou uma fala que desautorize uma intervenção educativa para que isso venha à tona. “Não ligue, sua mãe está nervosa” ou “Não chore, seu pai não queria dizer exatamente isso”. Ambos buscam na cumplicidade com o filho a que lhes falta. Pais que declaram mais o amor ao filho do que aos princípios da família sofrem da síndrome de Lear, porque de alguma forma cobrarão desmedidamente o amor dado.
Quando, por exemplo, dizem aos filhos que se sacrificam por eles, reivindicam o reconhecimento do martírio. Não combinam previamente a dedicação e a cobrança, mas se sentem frustrados pela ausência de um acordo que nunca existiu. Há nisso uma perversidade não muito distante da de Lear.
As separações dos casais, motivadas pelo fim do amor, mudam o conceito de família tradicional e sugerem o conceito de famílias múltiplas. Pais, mães, padrastos, madrastas, namorados de mãe e de pai formam em torno dos jovens e das crianças um conglomerado de relações conflitivas e também voláteis. Os novos pares amorosos assumem papéis de pai e de mãe durante as relações estabelecidas. Quando se desfazem os laços amorosos entre os pares afetivos, as crianças e os jovens – filhos, enteados e filhos de namorados e de namoradas – perdem o vínculo estabelecido, pois estavam atrelados ao amor acabado dos adultos.
Estes, para não perder o amor dos filhos biológicos, no emaranhado das relações, muitas vezes, desautorizam os laços antigos e fazem do término da relação amorosa deles a dos filhos. Como se dissessem: “Aquela pessoa não ama mais a gente, não merece a partilha do nosso reino”.
Rei Lear abriu mão do amparo e da sabedoria quando decidiu ser antes namorado das filhas do que pai. Se a leitura da tragédia de Shakespeare se faz necessária é porque pais modernos se orgulham de ser amigos dos filhos – já contaminados pela falsa noção de amigo imposta pelas redes sociais.
Ferem os filhos porque estes não sabem mais o que esperar dos adultos e dos amigos e os desamparam porque subtraem deles a ideia de consistência adulta, confundindo na cabeça jovem, em formação, o conceito de amizade, de paternidade e de maternidade. E filhos perdidos com essa partilha, como mostrou o bardo inglês, compartilham o amor e amparo com as noções e os valores confusos que têm.
*João Jonas Veiga Sobral é escritor, professor de língua portuguesa e orientador educacional