É professor de Língua Portuguesa e orientador educacional
Publicado em 15/01/2020
Citando Sócrates e Mário Quintana, João Jonas Veiga Sobral reflete que o questionar também é saber
Famoso dito popular chinês nos sugere que, para escapar das trevas da ignorância, devemos sair pelo mundo a fazer perguntas e indagações: “Quem pergunta é ignorante por cinco minutos; quem não pergunta é ignorante para sempre”. Sócrates, o filósofo grego, era, como os chineses sábios, um perguntador tenaz. Sua filosofia consistia em fazer inquirições para levar o inquirido a reflexões a respeito das coisas do mundo e da vida. Não se imolava com a própria ignorância e tampouco se orgulhava dela. “Só sei uma coisa, é que nada sei.” O pensador sabia que se reconhecer ignaro era o caminho para buscar a verdade; e para buscá-la, ele costumava caminhar pelas ruas de Atenas fazendo pergunta às gentes que via, sobretudo jovens.
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Sócrates, em suas indagações, buscava salvar o interlocutor do erro da obscuridade tacanha, convidando-o a trilhar pelo caminho da reflexão, da sabedoria e da dúvida, uma vez que propunha – na interlocução – o questionamento das verdades preestabelecidas e não raro inconsistentes, porque normalmente irrefletidas. Nesse percurso, o filósofo desejava parir de seu interlocutor uma nova concepção crítica, desprovida de preconceitos e de superficialidades. Por isso, o pensador grego afirmava que seu método tinha função semelhante à de sua mãe, que era parteira. Ela dava a luz às crianças vindouras; e ele, às novas ideias, à razão, à sabedoria. O método incomodou muita gente, e as perguntas de Sócrates, somadas à sua descrença nos deuses, levaram-no à morte. Foi condenado por corromper os jovens atenienses.
O grego sábio fez perguntas que incomodaram mais pela exigência do esforço de pensamento crítico do que pela possibilidade de ofensa que elas suscitariam. No entanto, a despeito de Sócrates e dos sábios chineses perguntadores, será mesmo que algumas perguntas não podem ser ofensivas? Será que elas não trazem consigo, vez ou outra, a perfídia e “a baba de Caim”?.
É fato que o indagador, quando interpela alguém, visa, normalmente, saber aquilo que não sabe ou dirimir uma dúvida nebulosa ou reafirmar algum ponto de vista, mas nem sempre as perguntas possuem a virtude de quem deseja sair da obscuridade, às vezes elas flertam com as vicissitudes do escárnio, da má intenção e do jogo retórico acusatório.
Vejamos uma anedota para iluminar a questão proposta no parágrafo acima. Um marido desconfiado de suposta traição da esposa lança a seguinte pergunta, nada socrática: “Há um homem escondido no seu quarto?”. A esposa, incomodada com a interpelação ofensiva, questiona: “Se houver um, estará tudo acabado entre nós?”. O desconfiado e afoito marido, de pronto, responde: “Lógico que sim, estará tudo acabado entre nós”. Não satisfeita, a esposa, rebate: “Mas, se não houver, estará tudo acabado também. Tenha isso bem claro. Aliás, já está tudo acabado entre nós. A sua pergunta é o começo do nosso fim”. Veja, leitor, que a pergunta feita pelo ressabiado marido traz em seu bojo uma acusação prévia ou um desejo de confirmação daquilo que se suspeita.
Imagine agora um outro fictício casal em uma singela conversa: “Amor, você promete que será fiel, na saúde e na doença, até que a morte nos separe?”. Uma pergunta como essa é inocente ou ofensiva? Não se apresse a responder. Veja antes como a irônica canção Mil perdões, de Chico Buarque, compreende esse tipo de pergunta:
Te perdoo/ Por fazeres mil perguntas/ Que em vidas que andam juntas/ Ninguém faz (…)/ Te perdoo por ligares/ Pra todos os lugares/ De onde eu vim (…)/ Te perdoo/ Por contares minhas horas/ Nas minhas demoras por aí (…)/Te perdoo porque choras/ Quando eu choro de rir/ Te perdoo/ Por te trair.
O eu lírico da canção, de forma estranha e sarcástica, perdoa as perguntas feitas e a própria traição. Não parece um disparate, uma afronta? Sim, socrático leitor; talvez sim, talvez não. Mas a canção alerta que há perguntas que “em vidas que andam juntas, ninguém faz”. Sugere que se há dúvida de fidelidade, há traição por convicção e não necessariamente por fato. Talvez os perdões propostos na canção possam ser melancólicos, ou talvez provocativos, ou quem sabe até libertários.
Imagine agora que, em uma situação familiar, o filho se dirige ao pai com um forte e afetuoso abraço. O pai, surpreso com a manifestação de carinho do filho, pergunta-lhe se está querendo alguma coisa com isso. Essa situação bastante corriqueira entre pais e filhos não sinaliza que essas vidas já não andam juntas como a dos interlocutores das anedotas e das canções? Imagine outra situação corriqueira em uma sala de aula: “Professor, você vai corrigir a prova com carinho, né?”. A pergunta do ansioso aluno pode ofender o professor porque sugere desleixo do mestre na correção das provas ou pode sugerir uma atenção especial pouco lícita ao aluno ou pode simplesmente propor um desejo de que o rigor dos critérios seja afrouxado.
O poeta Mário Quintana, em As indagações, vaticina lacônico:
A resposta certa, não importa nada: o essencial é que as perguntas estejam certas.
*João Jonas Veiga Sobral é professor de Língua Portuguesa e orientador educacional
A língua do pensamento que inquieta pensadores e cientistas